Não deixa de ser paradoxal que, no dia do trabalho e dos trabalhadores, por ser feriado, não se trabalhe. Esta comemoração tem a sua origem numa efeméride sindical, mas tem também uma conotação religiosa, na medida em que se celebra São José, operário.

Muito embora José não tenha sido, em sentido genético, pai de Cristo, legal e socialmente assumiu essa condição, como marido que era da sua mãe. Com efeito, até Nossa Senhora lhe dá o nome de ‘pai’ de Jesus (Lc 2, 48), apesar de que ninguém melhor do que ela sabia que o não era em sentido próprio, ou seja, em termos biológicos.

Como já havia, a 19 de Março, uma festa litúrgica de São José, que é padroeiro da Igreja universal, em que se comemora o dia do pai, a celebração do primeiro de Maio tem uma designação específica: São José ‘operário’. Mas, José foi mesmo operário?! A bem dizer, a questão não é muito relevante, até porque, no dia do trabalho não se trabalha; e, no dia do pai, se comemora um santo que o não foi em sentido próprio …

Como tinha sido profetizado que o Messias seria da linhagem do Rei David, São Mateus apresenta José como seu descendente (Mt 1, 20). Também diz que era carpinteiro (Mt 13, 55). Marcos, por sua vez, atribui a Cristo esta profissão (Mc 6, 3), o que sugere que possa ter sido aprendiz na oficina de seu pai adoptivo. Lucas narra a concepção virginal do filho de Maria, mas também o relato de Jesus perdido e achado no templo, em que sua mãe, quando o encontra, lhe diz que seu ‘pai’ e ela o procuravam cheios de angústia (Lc 2, 48). João, quando refere o primeiro milagre de Cristo, nas bodas de Caná, menciona Maria, mas não José, pelo que se supõe que já então era falecido (Jo 2,1-2).

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Se não restam dúvidas quanto à existência de José, à sua ascendência davídica e ao seu casamento com Maria, não consta que fosse ‘operário’. Com efeito, este termo designa um trabalhador por conta de outrem, um assalariado ou jornaleiro, mas é mais provável que José, sendo carpinteiro, o fosse por conta própria, talvez até dono de uma pequena oficina, onde o filho de Maria se teria iniciado no ofício. Depois da morte de José, pode ser que Jesus tenha ficado à frente da carpintaria, mas só até dar início ao seu magistério público, incompatível com aquele trabalho, que terá então deixado definitivamente.

São José era, contudo, um artesão modesto, como se prova pela sua oferta, quando Jesus foi apresentado no templo. A oferenda deveria ser de uma rês pequena ou, se se fosse pobre, de um par de pombas ou duas rolas (cf. Lv 12, 2-8), que foi o que José e Maria ofereceram (Lc 2, 24). Fizeram a oblação dos pobres, mas não a dos indigentes. Também não eram tão necessitados que não tivessem uma montada própria: o jumento que transportou Maria de Nazaré até Belém. Portanto, seria teologicamente mais correcta a menção de artesão, ou pequeno empresário, em vez de operário, que decerto não foi …

Não obstante a falta de fundamentação bíblica, prevaleceu a designação proletária e, por isso, na liturgia católica celebra-se ‘São José, operário’. Nem outra coisa poderia ser, de facto, nesse dia. Com efeito, foi no já longínquo 1 de Maio de 1886 que a polícia de Chicago, ao reprimir uma greve, causou a morte de vários operários. A partir desse dia, o primeiro de Maio passou a ser, muito justamente, uma jornada de luta pelos direitos dos trabalhadores que, nos finais do século XIX, quando o seu horário de trabalho diário podia totalizar 17 horas, exigiam uma jornada laboral de oito horas.

O Papa Pio XII, em 1955, instituiu, no 1º de Maio, a memória litúrgica de São José ‘operário’. Pode-se questionar a legitimidade da cristianização desta festa laboral, mas também é verdade que não era mais legítima a monopolização, pelos movimentos sindicais marxistas, da causa operária, que não tem por que ter essa conotação ideológica.

Na realidade, desde o princípio do movimento sindical, muitos operários, por serem católicos, não se reviam na doutrina e praxis do socialismo marxista. Por outro lado, a partir da histórica encíclica do Papa Leão XIII, Rerum novarum, de 15-5-1891, o magistério da Igreja tem-se pronunciado sobre a chamada ‘questão social’, opondo-se à exploração dos trabalhadores pelo capitalismo selvagem, bem como à sua opressão pelo regime comunista. Não foi por acaso que foi um sindicato cristão, o Solidarnosc, que pôs termo à ditadura marxista na Polónia, dando início à derrocada do comunismo na Europa.

A solicitude eclesial pelos trabalhadores deu origem à Doutrina Social da Igreja. Desde Leão XIII, praticamente todos os romanos pontífices dedicaram encíclicas a esta questão. Mas a Igreja não se ficou apenas pela enunciação de princípios: também se empenhou na acção, sobretudo através da Liga Operária Católica (LOC) e da Juventude Operária Católica (JOC).

A iniciativa dos padres operários, uma efémera tentativa de evangelização do proletariado através de sacerdotes que assumiam essa condição a tempo inteiro, em prejuízo da sua específica missão pastoral, levou à constatação de que a cristianização desses ambientes profissionais deve ser feita pelos cristãos leigos e não por clérigos disfarçados de operários. Não se é sacerdote para ser operário, nem líder sindical, mas para servir as almas, sem partidarismos políticos ou sindicais. A teologia da libertação, por sua vez, promovia a luta de classes, numa perspectiva mais marxista do que cristã e foi desautorizada por São João Paulo II e Bento XVI.

A presença cristã no mundo do trabalho não se pode restringir aos operários, nem aos patrões, porque todos os profissionais cristãos se devem santificar no seu trabalho profissional, que há-de ser ocasião para dar testemunho do Evangelho.

O apostolado através do trabalho não pode ser entendido como uma forma de domínio, nem os leigos são uma extensão, ou longa manus, da hierarquia na sociedade, em cujo caso seriam expressão de um anacrónico clericalismo. À Igreja compete dar formação a cada cristão, para que faça do seu trabalho uma ocasião de aperfeiçoamento pessoal e de serviço à comunidade, segundo os princípios do Evangelho. Os leigos estão chamados a ser santos na sua vida familiar, profissional, política e social, mas com toda a liberdade e responsabilidade pessoal.

É aliás neste sentido que têm vindo a surgir e a desenvolver uma meritória actividade várias associações de profissionais católicos – médicos, juristas, empresários, psicólogos, etc. – que, em cooperação com os outros profissionais, procuram contribuir para o bem comum, com a mais-valia do seu saber e experiência, não segundo uma lógica de poder, mas de serviço à sociedade.

Apesar dos dois últimos Papas – Karol Josef Wojtyla e Joseph Ratzinger – serem homónimos do ‘pai’ de Jesus, foi o actual Papa quem introduziu uma referência explícita ao esposo de Maria em todas as orações eucarísticas, logo após a referência a Nossa Senhora – não separe o homem os que Deus uniu! – e antes dos apóstolos e demais santos: pode-se dizer, portanto, que São José é o segundo maior santo cristão!

O Papa Francisco é devoto da imagem de São José dormindo, porque foi em sonhos que o esposo de Maria foi esclarecido, por Deus, sobre a filiação divina do filho de sua mulher. Como ainda há muitos que ainda não acordaram para o sentido cristão do trabalho e da vida, valha-nos, pois, São José!