Estou empolgado com ficção televisiva de qualidade! Fico sempre assim quando estreia a nova temporada de uma das minhas séries predilectas. E na semana passada estrearam logo duas: Succession, na HBO, e As aventuras da TAP, na ARTV. Uma é a saga da empresa milionária e das traições, maroscas, esbanjamento imoral e tolices de quem quer mandar nela; a outra é a história de Logan Roy e família.

Depois de assistir aos primeiros dois episódios de ambas, já decidi: vou dedicar o meu tempo à da TAP. Enquanto esta temporada de Succession é mais do mesmo, a da TAP, dedicada à Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP, introduz personagens novos que trazem frescura à narrativa. Até porque vêm tão focados limpar a imagem do Governo, que parecem lixívia com aroma floral.

O episódio de estreia é a audição a António Ferreira dos Santos, Inspector-Geral das Finanças, responsável pela elaboração do relatório que concluiu que Christine Ourmières-Widener é a única culpada pela indemnização ilegítima que Alexandra Reis recebeu. O episódio começa com a apresentação de Ferreira dos Santos, que diz aos deputados: “Entendemos que era importante ouvir as pessoas envolvidas ou que havia indício que conheciam o processo. Optámos por ouvir Alexandra Reis, o chairman, também o CFO e o ex-Secretário de Estado, a ideia era que eram as pessoas que havia indícios suficientes que tinham envolvimento directo no processo. As restantes, achámos que bastava por escrito”. Ou seja, a CEO, que é quem manda na empresa, que está tão envolvida que até é a principal responsável, não é ouvida. Numa frase, fica apresentada a personagem do Inspector-Geral das Finanças, mistura de dois outros famosos inspectores do audiovisual: o Inspector Clouseau, pela trapalhice, e o Inspector Max, pela fidelidade ao superior hierárquico.

Ferreira dos Santos explica porque é que optou por não ouvir presencialmente a CEO: “A questão para nós foi o facto de estarmos a falar – talvez achem graça – línguas diferentes. Percebemos, da audição que a senhora teve aqui, que talvez isso tenha sido utilizado para não responder a questões colocadas por deputados”. Vê-se que o Inspector-Geral fez o trabalho de casa. Assistiu à audição que Christine Ourmières-Widener já tinha prestado na Assembleia da República e apercebeu-se que, muitas vezes, ela não respondia directamente às perguntas que lhes eram colocadas. E apercebeu-se bem. Pelos vistos, a finta a questões é uma atitude típica de responsáveis quando são inquiridos. Basta ver que, nem uma hora depois de Ferreira dos Santos ter dito isto, alguns dos deputados que lhe estavam a fazer perguntas queixaram-se ao Presidente da Comissão de que o Inspector-Geral não se estava a deixar inspeccionar. Disse Hugo Carneiro do PSD: “Quando os deputados colocam perguntas, as perguntas têm de ser respondidas. A não ser que o depoente, ao abrigo dos seus direitos fundamentais, invoque, por exemplo, alguma causa que o possa prejudicar na sua defesa própria. E, se quiser, até se pode fazer acompanhar por advogado. Portanto, era bom termos perfeitamente noção do que estamos aqui a fazer. Se eu coloquei uma questão que não foi respondida, independentemente do meu tempo ter terminado, tenho direito a que a resposta seja dada, a não ser que alguma das causas que referi seja invocada”. E, momentos depois, Filipe Melo do Chega: “Eu entendo que, por estarmos numa Comissão de Inquérito, todas as questões devem ser respondidas. O sr. Inspector-Geral tem-no feito, de alguma forma, sem receio das palavras. Mas de outras notamos que tem alguma resistência em responder concretamente ao que é solicitado”.

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Ora, como Ferreira dos Santos não se esquivou em francês, conclui-se que, quando fala em “línguas diferentes” se deve estar a referir ao facto da CEO ter uma língua bífida, como as serpentes. Está a chamar-lhe ardilosa. Daí não ter querido encará-la pessoalmente, para não ser endrominado pelas sibilantes.

Como todos os bons primeiros episódios, a audição de Ferreira dos Santos termina com uma revelação bombástica: a TAP tem uma nova rota! Até agora, o voo mais longo da TAP era para São Francisco, mas, depois do depoimento do IGF, descobrimos que Fernando Medina foi transportado para um sítio ainda mais longínquo. Deve ser a Lua, porque Medina consegue estar mais afastado de qualquer responsabilidade na TAP do que eu, que o máximo prejuízo que dei à companhia foi ter ficado com os headphones num voo que fiz há 3 anos.

O segundo episódio também não desilude. Trata-se da audição do CFO da TAP, Gonçalo Pires. São quase cinco horas, todas passadas com Gonçalo Pires a afirmar, repetir, reiterar e repisar que não teve nada, absolutamente nada a ver com o processo da saída de Alexandra Reis, do qual, aliás, apenas teve vago conhecimento informal. Qualquer espectador com um mínimo de experiência a assistir a filmes de terror sabe que, se o realizador está a esforçar-se muito para mostrar que um túmulo está vazio, é óbvio que, quando achamos que a fita acabou, vai saltar lá de dentro um zombie. Neste caso, foi no pós-genérico: um dia depois da audição, a CNN publicou duas conversas de WhatsApp entre a CEO e o CFO, da altura em que se negociou a saída de Alexandra Reis. A primeira:

CEO: Acordo alcançado com a Alexandra.

CFO: Pensava que ia demorar mais tempo. Parabéns.

A segunda:

CEO: A Alexandra respondeu?

CFO: Não.

CEO: Liga-lhe, se fora necessário: Claro que tu não sabes de nada.

CFO: Claro.

Percebe-se que, afinal, Gonçalo Pires sabia do processo. Tanto que até tinha uma opinião sobre quanto tempo poderia demorar a ser alcançado. E participou nele, ao ponto de ter uma ordem da CEO para falar com Alexandra Reis, uma espécie de missão secreta sobre a qual deveria negar saber o que fosse. Ordem que, diga-se, cumpriu com excelência, como se comprovou pelas respostas que deu na audição.

Quanto à diferença que o CFO quis sublinhar entre conhecimento oficial e informal, fica uma bocado esbatida quando constatamos (também pela reportagem da CNN) que a informalidade das mensagens por telemóvel é a mesma que é usada nas comunicações entre a CEO e o Secretário de Estado da tutela a propósito das decisões do Ministro das Infraestruturas. Que, recorde-se, era Pedro Nuno Santos, outro que na altura também não sabia de nada. Logo, na TAP, o WhatsApp não é uma mera aplicação de telemóvel para combinar jogos de padel com os colegas, é uma ferramenta profissional utilizada ao mais alto nível. Gonçalo Pires está a fazer confusão entre “conversa informal” e “conserva em formol”. Só esta última permite a preservação.

Espero que nunca privatizem a TAP. Ficarei muito desgostoso se a venderam, especialmente se for à Lufthansa. Não me apetece nada ter de aprender alemão para poder assistir às peripécias da TAP nas comissões de inquérito do Bundestag. Já desliguei as legendas a ver uma série escandinava e não é nada divertido.