Os problemas essenciais do SNS dizem respeito a estrutura, recursos humanos e acesso. Dentro da questão vasta do acesso a cuidados de saúde, destacam-se as consultas, os meios complementares de diagnóstico, as intervenções cirúrgicas e os tratamentos. No campo dos tratamentos, os medicamentos assumem o relevo maior. Há problemas no acesso a medicamentos comercializados em Portugal e na introdução de inovadores. Nenhum destes problemas é novo. Apenas estão mais agravados. Há mais medicamentos, são mais caros, há mais doentes e o governo usa um austero controlo da despesa com saúde como nem no tempo da tróika.

O Estado tem a obrigação de garantir as condições para que os medicamentos comercializados, pelo menos esses, estejam disponíveis nas farmácias de oficina e/ou hospitalares. As quebras na cadeia de fornecimento de medicamentos não se vão resolver com reuniões entre associações de doentes e o INFARMED. Ambos sabem o que falta e os segundos até saberão porque falta. O problema só poderá ser tratado envolvendo o ministério da saúde, as farmácias, os distribuidores e a indústria farmacêutica. Todos terão uma parte da responsabilidade e ao Estado não chega prometer empenho.

Quando consideramos os medicamentos mais recentes, o problema não está em o Estado entender comparticipar apenas alguns, os melhores e verdadeiramente inovadores dos medicamentos novos. O Estado não tem de disponibilizar, muito menos de forma gratuita, todos os medicamentos que já foram inventados ou sejam comercializados na Europa ou Estados Unidos da América. O ritmo elevado de aprovações de novos fármacos e indicações, apesar de algumas dessas decisões me parecerem apressadas, tem vindo a colocar uma pressão crescente nos pagadores. O Estado não pode nem deve pagar tudo e por qualquer preço. Se o fizesse, estaria a prejudicar a saúde de todos os beneficiários do SNS. Logo, a correta avaliação do valor e oportunidade da introdução de um medicamento inovador é complexa. Exige saber, meios e muito trabalho. Em Portugal, a avaliação de tecnologias de saúde está eivada de erros para que tenho repetidamente alertado. O actual sistema de avaliação de tecnologias de saúde não serve os interesses do País. Foi o possível na altura em que foi desenhado, mas já é hora de mudar.

Todavia, nenhum problema se resolve quando um responsável se tenta esconder atrás de uma lei que é má e não serve. Servir más leis, nada fazer para as mudar, aceitar os seus defeitos e desculpar-se com a legislação para justificar arbitrariedades, não é solução. O problema não se esconde quando os peritos, quem os “comanda”, o INFARMED ou a ministra da Saúde, vêm dizer que para “risco de vida” nunca faltará nada. Não chega dizer que é a lei que limita as autorizações de uso especial para situações de “risco imediato de vida”. Se para “risco imediato de vida” haverá sempre autorização e se a autorização pode demorar umas semanas, o risco de vida não poderá ser eminente. Nem se pode confundir e tentar separar, como se fossem dois problemas distintos e antagónicos, uma suposta avaliação “técnica” de uma outra “clínica”.

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A avaliação que está em causa na sede da comissão de avaliação de tecnologias de saúde tem um caracter uno, integrado, deve ser científica e envolver aspectos de eficácia e fármaco-economia. É grave quando a avaliação fármaco-económica, no contexto de apreciação de um pedido de uso especial, se sobrepõe ao juízo de utilidade clínica que o perito decide ignorar ou nem tem capacidade para ajuizar. Nenhum problema se resolve com mentiras, como a de que o INFARMED tem um critério único, verificável e constante, para autorizar usos excepcionais de medicamentos. Tenho uma colecção de pareceres do INFARMED, emitidos sobre pedidos de medicamentos para doentes do nosso grupo de médicos, que demonstram precisamente o contrário. Umas vezes “não há risco de vida” e o tratamento é negado. Em outras situações, clinicamente idênticas e para o mesmo fármaco, já não foi preciso haver o tal “risco de vida” e o medicamento foi autorizado. Haja seriedade e bom senso.

Existem vários passos no processo de concessão de autorização de disponibilização de um medicamento na esfera da comparticipação em farmácias ou em hospitais do SNS. No caso da introdução de inovadores há problemas sistémicos e legais que têm de ser urgentemente resolvidos. Há problemas na forma como a avaliação da inovação é feita, no tempo que essa avaliação demora e na falta de transparência de todo o processo. Os contribuintes nada sabem do processo de introdução de medicamentos inovadores, para lá do que se vai ouvindo e sabendo por inconfidências, desabafos e notícias ocasionais. Os problemas não deixam de existir porque o INFARMED afirma que aprovou muitos medicamentos novos e caros. O problema maior reside na ausência de estratégia quanto à decisão sobre que medicamentos são prioritários. A questão não está em quantas aprovações de preços, mas em que tipo de medicamentos e quanto tempo demoram a chegar aos doentes. Mesmo depois de um processo de avaliação no INFARMED que pode ser demasiado longo, há tempos que não têm justificação, com esperas que se prolongam para lá dos acordos sobre preços, assinaturas pendentes e outras burocracias. Nada disto é tolerável para os doentes. O governo não pode eximir-se às suas responsabilidades quando elas já não são de mais ninguém.

O governo que temos, mais do que pactuar, estimula e promove o racionamento indiscriminado e injustificado no acesso a tratamentos. Na “geringonça” estamos na fase de ninguém ter tido culpa de nada. No entanto, sejam os três partidos do governo (BE, PCP e PS) ou sejam os da oposição, ninguém diz como vai resolver o problema da avaliação de tecnologias de saúde, se vai reforçar as capacidades do INFARMED, se vai criar uma nova agência, se vai introduzir tetos anuais globais de despesa com medicamentos inovadores, se quer um formulário fechado, se vai apostar nas redes de referenciação, se reforçará os orçamentos para tratamentos mais dispendiosos, se vai mudar ou, porque não, acabar com o regime iníquo das autorizações especiais de utilização. Ninguém fala do que pode ser impopular. As zonas cinzentas, os jogos de sombras, podem até nem dar votos, mas na dúvida é melhor nem correr o risco de os perder. Fica para depois. Logo se verá.

PS. Li este Verão um livro que recomendo sem hesitação. “Enlightment Now” de Steven Pinker. Nem tudo quanto ele escreve é certo. Não é isso que interessa. O relevante é ser um livro sobre ciência e bom senso. Deveria ser leitura obrigatória (já tem tradução portuguesa). Há uns anos, por causa da greta do Courbet, houve quem se tivesse irritado mais com a capa de um livro do que com o seu conteúdo. Agora, por causa de outra Greta, discute-se mais a patologia mental da menina Thornberg, os disparates que ela diz e a fazem dizer do que o problema concreto a que ela se tenta referir. Tudo isto no meio do embasbacamento estulto de uma multidão que finge que ouve, fala muito e quase nada faz. Aí, nesse ponto, a Greta tem razão. Os políticos tendem a não estar atentos à ciência. É justa a preocupação com a manipulação torpe que estão a fazer com a miúda que não tem culpa de se ter interessado por ambiente, como poderia ter sido por decorar a lista telefónica. No entanto, está na hora de deixar a Greta para trás, desligar do ruído de fundo e fazer o que tem de ser feito. As alterações climáticas já são um grande problema de saúde pública, hoje!