Um mal muito português (embora seja cada vez menos exclusivo) é o clientelismo, o qual opera de forma paralela aos mecanismos regulamentares que disciplinam e orientam prioridades na formulação de políticas, na concessão de benefícios e na alocação de recursos por parte do Estado. Falamos, já se vê, em trocas de favores, trocas essas que conduzem ao palco das decisões políticas pessoas sem qualquer lastro profissional digno de nota, embora com curriculae vitae prodigiosos nas redes sociais da amizade.

Hoje existe um descontentamento generalizado quanto ao funcionamento das instituições e uma notável indignação pelas práticas corruptas de um número significativo das chamadas elites políticas e económicas, muitos nomes sonantes das quais não resistiriam a uma simples verificação cronológica e atenta das habilitações literárias que proclamam possuir. Se a tanto somarmos o indisfarçável sentimento de impotência pública a que se assiste diariamente, a insegurança laboral, as expectativas reduzidas e a dificuldade de melhorar a própria posição social, não será de admirar que o iliberalismo ou o autoritarismo vá somando cada vez mais adeptos um pouco por todo o lado.

Em Portugal, a legislação em vigor – que regula o exercício de funções por titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos (Lei n.º 52/2019, de 31 de julho), nomeadamente no que diz respeito ao regime de incompatibilidades e impedimentos – é absolutamente clara ao dizer o seguinte: «os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos contados a partir da data da cessação do respetivo mandato, funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado e que, no período daquele mandato, tenham sido objeto de operações de privatização, tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual, ou relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político.» (artigo 10.º n.º 1).

Ora bem, a letra da lei não deixa qualquer margem para dúvidas, demostrando, sem ambages, que nenhum titular de cargos políticos pode assumir funções de administração numa empresa privada com a qual houve relações estreitas.

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O problema é que temos uma norma proibitiva clara, mas despida de qualquer efeito sancionatório para a pessoa, que atinja no mínimo o seu património.

Parece-me evidente que se trata de uma sanção demasiadamente branda ou, até, caso tudo corra como esperado pelo infrator, nem sequer figure como sanção enquanto tal, nomeadamente para alguém que, por exemplo, não equacione regressar à política. O que temos é uma mera sanção política. A infração determina a inibição para o exercício de funções de cargos políticos e de altos cargos públicos por um período de três anos.

Perante comportamentos assim, a lei não é dissuasora das chamadas «portas giratórias» e da utilização da política como trampolim para atingir determinados cargos (altamente lucrativos relativamente aos cargos públicos anteriormente desempenhados) no sector privado.

Na verdade, no nosso país, o ex-governante tem a liberdade de escolher se respeita a ética, respeitando dito «período de nojo» dos três anos, ou colocando uma «venda na ética», saltita da governação para a administração de empresas do sector privado.

E porque já se tornou um hábito com quase meio século, sem contar com a I República, não podemos negar que em todas as nossas cabeças, que colocar «vendas na ética», não se resolvem com o preenchimento de questionários.

Por isso, duas perguntas me afloram ao pensamento: será que saltitar da governação para um cargo de destaque e altamente bem remunerado no sector privado não estará relacionado com pagamento de favores decorrentes do cargo político? E, nesse caso, quanto à empresa em causa não haverá qualquer sanção, ficando, desse modo, imaculada?

É claro que a empresa não poderá vir a ser responsabilizada/sancionada, o legislador não se lembrou de impor nem uma simples admoestação.

Não temos (nem, se calhar, se quer ou deseja) norma legal que determine qualquer consequência, nomeadamente a nulidade dos atos praticados pelo ex-titular do cargo político em violação da norma acima transcrita.

Também não se poderá, na tentativa de punir a empresa pela violação por parte do ex-titular de cargo político das regras relativas a incompatibilidades e impedimentos, revogar, sem mais, a concessão dos benefícios fiscais, pois a revogação deverá efetuar-se nos estreitos casos previstos na lei.

Em face de cenários de impunidade e de falta de transparência, o melhor mesmo é os governantes na porta da saída preencherem outro questionário de prevenção agora não com 34, mas com 68 perguntas.