Os casos mais graves que o Governo enfrentou, nestes seus nove meses de maioria absoluta, mostram que não há circuito de escrutínio que resista à falta de bom senso e, especialmente, à ausência de critérios éticos, expostos em comportamentos que estão marcados pelo sentimento de impunidade, desligamento da realidade e desrespeito pelas instituições. Não é necessário nenhum circuito, os que existem são mais do que suficientes se quem nos governa deixar que eles funcionem e seguir princípios éticos mínimos na escolha de governantes. Já para quem sai do Governo, parece ser preciso ir mais longe nas sanções.

Comecemos pelo caso mais antigo, do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro Miguel Alves. Que circuito adicional precisava António Costa se já sabia que o ex-presidente da Câmara de Caminha estava a ser investigado em dois processos? Claro que ser arguido não é estar acusado, mas convidar para o Governo alguém que está a ser investigado em dois processos é correr riscos que acabaram por se concretizar. Com a agravante de se ter denunciado, através de uma investigação do jornal Público, um terceiro caso, o do famoso pavilhão de 300 mil euros que não existe, com um suposto empresário contratado pela Câmara a deixar-nos boquiabertos.

Miguel Alves toma posse a 16 de Setembro de 2022 e demite-se a 10 de Novembro, com menos de dois meses de mandato e uma exposição pública aterradora da sua actividade como autarca. António Costa só se pode queixar de si próprio. Podia não conhecer o caso do pavilhão, mas conhecia, ou tinha obrigação de conhecer as linhas gerais dos processos que estavam a correr na Justiça.

Foi a flexibilidade de critérios de António Costa e não a ausência de informação que o fez escolher Miguel Alves para seu adjunto. Nenhum novo circuito o salvava do juízo que fez, dos riscos que quis correr.

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No caso de Alexandra Reis, a secretária Estado do Tesouro escolhida por Fernando Medina, estamos mais uma vez perante informação que estava disponível e que não foi valorizada o suficiente para desencadear um alerta. Fernando Medina disse no Parlamento que sabia que Alexandra Alves tinha saído da TAP em conflito com a CEO – informação que não era pública nem oficial, uma vez que a CMVM ainda tinha o comunicado a dizer que a administradora tinha renunciado.

Ou seja, Medina teve acesso a informação que não era pública. Mas vamos admitir que não lhe passou pela cabeça que tinha sido paga uma indemnização. Havia no Governo quem o soubesse: pelo menos o secretário de Estado das Infraestruturas sabia que Alexandra Reis tinha recebido aquela indemnização e nem quando o seu Ministério decidiu nomeá-la para a NAV se acendeu qualquer alerta.

Mais uma vez, para que serviria um novo circuito de escrutínio se os governantes não usam nem trocam entre si a informação que têm disponível? Informação que poderia ser até mais completa não tivesse o Governo capturado a CreSAP, ou seja, se esta entidade fosse de facto independente em vez de satisfazer, como acontece, os caprichos das nomeações do PS.

O mais recente caso é o da secretária de Estado da Agricultura, que o foi por pouco mais do que um dia. Faltou a Carla Alves capacidade de auto-avaliação, afirma-se. Mas isso não é de estranhar uma vez que era, desde 2018, sem nenhum problema, diretora regional de Agricultura e Pescas do Norte. Porque pensaria que não podia ser secretária de Estado? A própria ministra da Agricultura Maria do Céu Antunes não terá considerado como importante o facto, o que também não é de estranhar.

Maria do Céu Antunes é a governante que verbalizou de forma mais transparente aquilo que todos nós receamos que seja o entendimento que o PS tem de ser Governo: o Estado e o dinheiro do Estado é do PS ou, “O Estado é o PS”. Em Agosto de 2022 a ministra fez a extraordinária declaração, quando respondia a críticas do sector pela falta de medidas de combate à seca: “É melhor perguntar porque é que durante a campanha eleitoral a própria CAP aconselhou os eleitores a não votar no Partido Socialista”. Ou seja, quem se mete com o PS, quem critica o PS que é igual a Governo, já não leva, apenas, fica também sem os apoios do Estado. É, pois, natural que uma ministra que assim pensa sobre o papel de um governante considere natural escolher para a sua equipa uma pessoa com problemas com a Justiça. Desde que seja do PS não há nenhum problema, parece ser a lógica.

E é essa mesma perspetiva de impunidade, de convicção de que basta ser do PS para tudo ser permitido, que explica o à-vontade e até a desfaçatez com que a ex-secretária de Estado do Turismo Rita Marques viola uma lei que a impede, durante três anos, de trabalhar numa empresa que tutelou e que recebeu apoios decididos por si. Rita Marques saiu do Governo há menos de dois meses, na sequência de criticas que fez ao seu próprio ministro, sinalizando já aí que vive numa bolha de impunidade.

“Tendo desenvolvido toda a minha atividade profissional no setor privado, era para mim evidente que esta exoneração implicava o regresso ao mundo empresarial. Assim acontece.” Foi a resposta de Rita Marques quando confrontada com o facto de se ter tornado administradora da Fladgate Partnership para gerir o projeto que tinha isentado de pagamento de taxas, quando era governante. Devia ter esperado três anos, esperou menos de dois meses para saltar para a empresa que beneficiou. Como a sanção é não poder exercer cargos públicos, imaginamos que não se preocupe.

O caso de Rita Marques traz-nos à memória o de Manuel Pinho. Quando saiu do Governo foi dar aulas para Nova Iorque e tentou por todos os meios que não se soubesse que estava a leccionar uma cadeira paga pela EDP, empresa que tutelou enquanto ministro. Claro que Manuel Pinho recebeu dinheiro do BES quando era ministro, que hoje tenta justificar. Mas a diferença em relação àquilo a que assistimos hoje, mantidas as devidas distâncias, é que Pinho tentou esconder, disfarçar. Rita Marques nem sequer consegue perceber qual é o problema de ter sido contratada por uma empresa beneficiada pelas suas decisões.

Alguém dizia por estes dias que estamos a viver uma “emergência ética”. E não há circuito nem leis que salvem pessoas que não conseguem distinguir o mal do bem, o certo do errado. Nem tudo o que é legal se pode fazer, mas há neste PS quem considere que é dono do País. Até há bem pouco tempo víamos essa atitude de “Portugal é do PS” de forma mais ou menos disfarçada. Nestes últimos tempos deixou de se disfarçar e o mais grave é começarmos a detectar que o sentido de impunidade e de poder absoluto, sem limites legais e éticos, se generalizou ao ponto de nem sequer se ter a noção de se estar a ser assim.

Quando os governantes começarem a perceber que há coisas que se podem fazer, mas não se devem fazer, o problema do escrutínio prévio está resolvido. E os conflitos de interesses pós-governação também. Não vai ser fácil se quem tiver tomado o poder tiver problemas éticos e morais em geral e desrespeito pelas instituições, a democracia e a liberdade, sem sequer se aperceber que tem esses problemas.