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40 anos depois de ser apanhado, há uma série documental que conta a história do estripador de Yorkshire

Peter Sutcliffe deu origem a um dos mais complexos casos policiais do Reino Unido no século XX. Praticou pelo menos 13 homicídios de mulheres, declarou-se culpado e morreu preso, há poucas semanas.

Morreu a 13 de novembro Peter William Sutcliffe, camionista britânico que dizia obedecer a uma voz divina e que matou com extrema violência 13 mulheres no norte de Inglaterra entre 1975 e 1980, tendo sido detido pela polícia em 1981 e condenado a uma pena de prisão perpétua. Nos últimos dias de vida estava internado no University Hospital of North Durham. Sofria de diabetes e problemas cardíacos, terá sido infetado pelo coronavírus e presumivelmente recusou tratamentos médicos.

Um mês depois, a Netflix estreou uma série documental de quatro episódios onde reconstitui os crimes do homem conhecido como o Estripador de Yorkshire — e que perturbou os britânicos no fim de uma década de 70 sombria, marcada pelo desemprego e pela agitação social.

A série intitula-se O Estripador (“The Ripper”), tem realização de Ellena Wood e produção de Liesel Evans. Com estreia mundial a 16 de dezembro, surgiu nos primeiros dias em sétimo lugar no “top 10” da versão portuguesa da Netflix. São quatro episódios, já todos disponíveis, com a duração de cerca de 50 minutos cada. É o clássico documentário televisivo: entrevistas atuais, imagens de arquivo e relato cronológico, por vezes com descrições e pormenores macabros e um prolongamento exaustivo dos momentos de suspense.

Título “irresponsável e insultuoso”

Ao que escreveu há poucos dias o site da revista Newsweek, pelo menos nos EUA houve quem achasse que a série, por causa do título, seria sobre Jack, O Estripador — um dos mais famosos assassinos em série de todos os tempos, a quem são atribuídos pelo menos cinco misteriosos homicídios de mulheres no fim da década de 80 do século XIX. Mas este estripador é outro, aparentemente mais perigoso, alvo de uma caça ao homem durante cinco anos e responsável por semear o pânico junto das mulheres britânicas, que temiam ser as próximas vítimas.

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O título tem aliás sido criticado por descendentes das mulheres assassinadas, alguns dos quais foram entrevistados para o documentário. Por exemplo, Richard McCann, fillho de Wilma McCann, primeira vítima de Sutcliffe, em outubro de 1975: reconheceu que se trata de um trabalho audiovisual de qualidade, mas mostrou-se desiludido com o título, que inicialmente seria Era Uma Vez em Yorkshire (entretanto passou a ser a designação do primeiro episódio e não o título genérico).

Numa carta aberta divulgada pelo Sunday Times, familiares disseram que O Estripador é um título “irresponsável e insultuoso”, que oferece a Peter Sutcliffe “um estatuto de celebridade que ele não merece”. Em resposta, a Netflix fez chegar à imprensa uma declaração segundo a qual “a série não evidencia Sutcliffe”, antes “dá destaque às mulheres que morreram” e “analisa os crimes à luz do contexto britânico” da segunda metade dos anos 70.

Em rigor, o quarto episódio é quase todo sobre o assassino. Segundo um porta-voz da Netflix, Tamsyn Zietsman, todas as pessoas entrevistadas foram convidadas a ver os episódios antes do lançamento oficial e “estavam a par do título”. Um artigo da revista Forbes escrito por uma especialista em cinema europeu, Sheena Scott, sublinhava na semana passada que neste caso estamos longe do registo habitual dos documentários sobre assassinos em série, porque o ponto central são as vítimas e os efeitos dos crimes na vida social.

Investigação enganada por cassete recorreu a médium

Entre outubro de 1975 e janeiro 1981 mais de cinco mil agentes da polícia procuraram pistas que levassem ao criminoso, o que terá correspondido a quase 200 mil inquirições, 30 mil buscas a casas e 180 mil automóveis vigiados, segundo a imprensa portuguesa da época. Um dispêndio de muitos milhões.

Sutcliffe chegou a ser ouvido pelos investigadores, há quem aponte cinco vezes, há quem diga que foram nove, mas escapou sempre — até 2 de janeiro de 1981. A falta de organização e a incompetência da polícia, que mudou várias vezes de liderança e ignorou pistas e declarações, a astúcia do matador e a crise social que se vivia em Inglaterra são referidas no documentário como os principais motivos que permitiram a continuação da atividade criminosa.

“Teve também a ajuda [provavelmente inadvertida] de um farsante com sotaque de Sunderland que se intitulava Jack de Wearside, quem em 1978 provocou a polícia com uma gravação em cassete que desviou as atenções, ao dizer: ‘Sou o Jack, parece que ainda não tiveram a sorte de me encontrar’”, escreveu o jornal The Guardian há poucas semanas.

“A polícia foi levada a ignorar as suspeitas sobre Sutcliffe, por este ter sotaque de Yorkshire. O impostor, um alcoólico chamado John Humble, só seria descoberto em 2005, ano em que o prenderam por oito anos, e morreu no ano passado.”

Em 1979 entrou em cena a mais famosa médium britânica da época, Doris Stokes, requisitada pelo jornal popular "Sunday People" para fazer o perfil do criminoso, o que se revelou um fracasso, embora tenha atraído a atenção da polícia.

As primeiras vítimas eram mulheres que se dedicavam à prostituição e por isso foram tidas como alvos normais ou naturais. O preconceito então existente é destacado no documentário e corresponde a uma interpretação hoje consensual de que a divisão entre “mulheres inocentes” e “mulheres não-inocentes” constituiu um erro por parte das autoridades. “A imprensa e a polícia deduziram que se tratava de um homem que odiava prostitutas. Plantaram na cabeça das pessoas a ideia de que se não fôssemos aquele tipo de mulher, com ‘muitos namorados’, não corríamos riscos”, analisa na série Christa Ackroyd, então jovem jornalista.

Acontece que a partir de junho de 1977 começaram a aparecer mortas mulheres com vidas consideradas comuns e sem ligação a atividades ou ambientes à margem das regras. E foi aí que o pânico moral se estendeu a todo o condado de York. Qualquer mulher sozinha deixou de sair de casa depois do anoitecer, muitas vezes a partir das quatro da tarde.

“Quando saíam, andavam acompanhadas e traziam quase sempre consigo aerossóis defensivos ou armas para fazerem frente a qualquer eventualidade”, notava em 1981 o Diário de Lisboa, que nos primeiros dias do ano dedicou pelo menos três notícias à detenção do assassino (nos anos anteriores, a cobertura do já extinto vespertino foi escassa ou nula no que a este caso diz respeito, o que pode querer dizer que fora de Inglaterra tinham sido fracos os ecos destes crimes).

"Diário de Lisboa" acompanhou o caso nos primeiro dias de janeiro de 1981

A comoção pública foi tal que em 1979 entrou em cena a mais famosa médium britânica da época, Doris Stokes, requisitada pelo jornal popular Sunday People para fazer o perfil do criminoso, o que se revelou um fracasso, embora tenha atraído a atenção da polícia, de acordo com o relato do Guardian. Ainda hoje, em inúmeros países, a investigação policial pode aceitar o contributo de pessoas com alegados poderes paranormais, como fez questão de esclarecer há poucos anos a agência pública britânica responsável pela formação de polícias.

Violência doméstica na infância

Descrito pelo Diário de Lisboa como um trabalhador “consciencioso” da empresa de transportes Clark, em Bradford, Sutcliffe levaria uma vida aparentemente tranquila ao lado da mulher, Sonia Szurma, professora de origem checoslovaca com a qual se tinha casado cinco anos antes. Ao saberem a verdade, os vizinhos mostravam espanto, pois tinham a imagem de um casal tranquilo e simpático. Acrescentava o jornal, naquele janeiro de 81:

“Curiosamente, uma fotografia de Sutcliffe, sentado ao volante do seu camião, foi escolhida para ilustrar um cartaz de publicidade da empresa em que trabalhava.” Durante anos, jamais alguém suspeitou.

A jornalista do Sunday Times Joan Smith diz no documentário que o ambiente de misoginia e violência doméstica em que Sutcliffe cresceu pode ter explicado a aversão às mulheres e a ideia de violência que se formou nele. Nascido em 1946 em Bingley (West Yorkshire) numa família da classe baixa, era o mais velho de seis irmãos. O pai trabalhava na marinha mercante, a mãe cuidava da casa e dos filhos e o rapaz foi muitas vezes ridicularizado por não gostar de jogar à bola e passar muito tempo em casa.

Na escola era também alvo de violência verbal. Deixou de estudar em 1961, com 15 anos, e na adolescência teve diversos trabalhos, um dos quais como coveiro, tendo cedo começado a comprar sexo nas ruas. Antes de começar a matar, agrediu várias mulheres com pedras e martelos, incluindo uma adolescente de 14 anos, Tracy Browne, que teve de se submeter a uma operação cirúrgica ao crânio.

A detenção e o julgamento do assassino em série comoveram os ingleses

As vítimas do criminoso

Curiosamente, a detenção do Estripador de Yorkshire, não aconteceu por causa dos homicídios ou das tentativas que levou a cabo. A polícia de Yorkshire Ocidental (Leeds), liderada pelo controverso Ronald Gregory, deteve-o por acaso às 23h00 de 2 de janeiro de 1981, uma sexta-feira, numa zona de prostituição em Sheffield, dentro do próprio carro, um Rover, na companhia de uma mulher. Motivo: dois agentes de serviço suspeitaram, e depois confirmaram, que a matrícula era falsa. Percebeu-se mais tarde que esse era o esquema que muitas vezes tinha permitido ao criminoso escapar à constante vigilância policial.

Detido e interrogado sobre os crimes, Sutcliffe não hesitou em confessar. Ofereceu à polícia um relato detalhado, pessoa a pessoa, data a data, diálogo a diálogo, de tudo o que tinha acontecido entre 1975 e 1981. Depois acrescentou em julgamento que a “missão de matar”, a que se sentia obrigado, tinha tido início na adolescência, quando trabalhara como coveiro e ouvira um dia “a voz de Deus” vinda de uma pedra tumular. Considerou-se “escolhido por Deus” para limpar as ruas de prostitutas. Mas nem todas as vítimas o eram.

Três psiquiatras ouvidos em tribunal diagnosticaram-lhe “esquizofrenia paranoide”, a imprensa levantou dúvidas sobre se estaria perante um mentiroso ou um doente mental. O tribunal não acolheu o argumento da inimputabilidade. A 23 de maio de 1981, depois de 14 dias de audiências em Old Bailey (perto da Catedral de São Paulo, em Londres), foi considerado culpado por 13 homicídios consumados e sete homicídios tentados, numa decisão maioritária de jurados (2 contra 10). “Tenho dificuldade em encontrar palavras adequadas para descrever a brutalidade e gravidade destes crimes”, afirmou o juiz Leslie Boreham.

Ao longo de cinco anos, Wilma McCann (outubro de 1975), Emily Jackson (janeiro de 1976), Irene Richardson (fevereiro de 1977), Patricia Atkinson (abril de 1977), Jayne McDonald (junho de 1977), Jean Jordan (outubro de 1977), Yvonne Pearson (janeiro de 1978), Helen Rytka (janeiro de 1978), Vera Millward (maio de 1978), Josephine Whittaker (maio de 1979), Barbara Leach (setembro de 1979), Marguerite Walls (agosto de 1980) e Jacqueline Hill (novembro de 1980), a mais nova com 16 anos e a mais velha com 47, foram mortas e mutiladas, com recurso a martelos, facas e chaves de fendas.

Condenado a prisão perpétua, com a indicação de cumprir pelo menos 30 anos, acabou transferido para um hospital-prisão em 1984, quando o diagnóstico de esquizofrenia foi finalmente aceite. A mulher, Sonia, manteve-se ao lado dele, até se divorciarem em 1994. Em 2010 um tribunal decidiu que Sutcliffe deveria permanecer detido até ao fim da vida e cinco anos depois, alegadamente reabilitado da doença mental, foi transferido para o estabelecimento prisional de Frankland, em Durham.

No documentário da Netflix, jornalistas que à época cobriram o tema e pelo menos um descendente de uma das vítimas reconhecem que a imagem do “monstro” que se tinha formado nas suas mentes, antes da descoberta da verdade, caiu por terra quando o assassino apareceu em público pela primeira vez em 1981. A figura frágil de Sutcliffe escondia os horrores.

 
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