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Literatura para um mundo atormentado: os 50 livros que mais gostámos de ler em 2023

Ao longo de um ano que somou dúvidas e dilemas, os livros continuaram a revelar-se como certeza inescapável. Das leituras que fizemos em 2023, estes títulos são os nossos favoritos.

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Um generoso equilíbrio entre a ficção e a não-ficção marca as escolhas de 2023 quando chega a hora de eleger os títulos que mais marcaram o ano dos jornalistas e colaboradores que habitualmente escrevem sobre livros no Observador. Mas seja entre o romance e o texto histórico e documental, há neste elenco literário uma tendência clara: o paralelismo entre um mundo atormentado e uma literatura que serve de janela para esclarecimentos e questionamentos.

Há explicações guardadas na História que este ano regressaram à superfície dos livros graças a títulos que rapidamente se mostraram fundamentais; houve prosa gerada em personagens construídas como espelho social, outra que continuou a explorar o mundo complexo da auto-ficção; e acolha-se a poesia que, desafiante e insubstituível, exige tempo e clareza. É daqui que surgem as escolhas literárias deste ano, com muito poucas repetições entre as obras diferentes leitores selecionaram como as favoritas.

Alexandre Borges

O Último Sonho
Pedro Almodóvar
(Alfaguara)

Essencial para apreciadores de Almodóvar, não é daqueles casos trágicos de artista que aprendemos a admirar numa arte e temos de ver, depois, despenhar-se, sem honra nem glória, numa dispensável incursão por outra. Pelo contrário: O Último Sonho é a confissão de que, mais do que um realizador extraordinariamente bem-sucedido, o marcante cineasta de La Mancha e ícone da movida madrilena se sentiu sempre um romancista falhado. Um livro de short stories que é também quase uma autobiografia.

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Os Últimos Dias de Roger Federer
Geoff Dyer
(Quetzal)

Nietzsche, Wagner, Coltrane, George Best, Kerouac, Miles Davis, John McEnroe, Muhammad Ali – e muitos mais andam por aqui. Mas não conte com capítulos nem entradas enciclopédicas sobre o crepúsculo de cada ídolo. Este “livro sobre como as coisas acabam” é uma deambulação diletante e deliciosa pela vida e pela cultura ocidental do último século e meio, que salta, com notável à-vontade, entre filosofia, courts de ténis e salas de concerto para jazz ou música erudita. Tão depressa estamos a discutir se Dylan já deveria ter saído de cena, como a recordar as raparigas que não chegámos a beijar.

Um Ocidente Sequestrado
Milan Kundera
(D. Quixote)

Lê-se em meia hora, mas pode levar-se uma vida sem entender. Um pequeno volume que reúne dois grandes textos: o discurso proferido ao Congresso dos Escritores da Checoslováquia de 1967, em plena Primavera de Praga, e o artigo publicado no outono de 1983 na revista Le Débat. Podia servir só para lembrar Kundera no ano em que nos deixou um pouco mais sozinhos na Terra, e já seria razão suficiente, mas é muito mais do que isso: um farol de lucidez, para nos ajudar a guiar no momento em que voltam as pulsões imperialistas e as leituras maniqueístas da História.

As Causas do Atraso Português
Nuno Palma
(D. Quixote)

Quem quer que já tenha tido o gosto de ouvir o autor em conferências e debates festejou a notícia da chegada deste livro como o golo de uma verdadeira seleção nacional que, por uma vez, nos ponha a pátria ao espelho para lá da monocultura da bola. O economista, historiador e professor da Universidade de Manchester é um desconstrutor de mitos que olha para Portugal com uma objetividade e um desassombro, lamentavelmente, muito pouco portugueses. Leitura obrigatória para nos ajudar a perceber como chegámos aonde chegámos e, quem sabe, começar a alinhar duas ou três ideias sobre como sair daqui.

Mulher, Vida, Liberdade
Marjane Satrapi (coord.)
(Iguana)

Marjane Satrapi, a escritora, ilustradora e cineasta iraniana, autora de Persépolis, coordena, a partir do exílio em Paris, o trabalho de 17 entre ilustradores e três académicos, que desenham e escrevem aquilo que o regime dos ayatollahs não deixa filmar nem fotografar. No ano em que o Nobel da Paz distinguiu Narges Mohammadi, ativista pelos direitos das mulheres que Teerão encarcerou, acusada de “propaganda contra o Estado” e um ano depois da morte de Mahsa Amini, jovem estudante de 22 anos, espancada pela polícia por se recusar a cobrir a cabeça com o hijab. Para marcar o primeiro aniversário do movimento Mulher Vida Liberdade e uma luta da qual falamos inexplicavelmente pouco.

As escolhas de Alexandre Borges

Ana Bárbara Pedrosa

O Perigo de Estar no Meu Perfeito Juízo
Rosa Montero (tradução de Helena Pitta)
(Porto Editora)

Rosa Montero tem dúvidas e o leitor também as tem. De tanta pergunta ali caída, para o leitor existe a clarividência de que a literatura não é uma resposta. Em vez disso, é mais uma forma de se ir tateando a vida, e quem sabe se se chega a um lado. Enfrentando o caos, a autora encontra a ordem, mesmo que a ordem seja o caos. Há um misto de divagação e relato e, acima disso, há um exercício de se pegar naquela coisa mágica que faz nascer a escrita, no mistério insondável que deriva na criação. Claro que, para o leitor, não convém confiar em tudo. Já se sabe como são os escritores: até nas confissões metem manipulação.

A Estrela da Manhã
Karl Ove Knausgård (tradução de João Reis)
(Relógio D’Água)

Depois de A Minha Luta, Knausgård volta a surpreender, desta vez num registo desligado dos seus traços biográficos. Como na série que o catapultou para o mundo, A estrela da manhã implica um feitiço – começar a lê-lo é uma queda. O primeiro parágrafo funciona como um gancho e o leitor, quando dá por si, já está dentro do romance, apanhado, sem hipótese de fuga. O conteúdo pode ser o nada do nada, que parece que nada disso interessa: com o autor norueguês, o mais mundano atinge o extraordinário.

Noite
Elie Wiesel (tradução de Paula Almeida)
(D. Quixote)

É mais um livro sobre o Holocausto, mas não é apenas mais um livro sobre o Holocausto. Ler sobre o assunto traz sempre o mesmo choque, e Noite choca do princípio ao fim. Finda a leitura, o leitor continua sem perceber como raio pode ter acontecido. O livro oferece a vida de um rapaz judeu e o seu pasmo: a cada movimento, ainda sobra a dúvida. O leitor coevo está à frente da ação, e nada do que ali é descrito deixa de arrepiar, e o matadouro de gente continua a ser inconcebível. Numa narrativa sem enfeites, sente-se a crueza da prosa e da vida.

Zuckerman Libertado
Philip Roth (tradução de Francisco Agarez)
(D. Quixote)

Roth é um selo de qualidade. Como noutros romances, eis o autor a brincar com a ambiguidade Roth-Zuckerman, numa proposta que já tem de fazer parte da receção do livro. Há elementos intra-literários que permitem o jogo de espelhos, numa volta que ironiza com a confusão entre autor e criação. O resultado nem chega a interessar muito. Dá a ideia de que Roth se diverte com a ideia de criar caos. Para o leitor, esse caos sabe a coisa fresca. Logo nas primeiras páginas, e porque Roth mete o leitor dentro da acção, já se percebe que será impossível não aviar o livro de enfiada.

O Árabe do Futuro 5
Riad Sattouf
(Teorema)

É o penúltimo volume da série, que deverá ser terminada em 2004. Aqui, temos uma história que é como uma janela aberta: Sattouf, filho de pai sírio de origem sunita e mãe francesa, usa o seu material biográfico para mostrar, pelo olhar de uma criança, um choque de culturas ao leitor. A partir de uma casa, vê-se o mundo, das grandes questões políticas que definem a vida de um país à forma como movimentos da História determinam o papel de cada um dentro de portas.

As escolhas de Ana Bárbara Pedrosa

Andreia Costa

Tudo é Rio
Carla Madeira
(Particular)

“Puta. Não tem outro nome para Lucy. De profissão ela era puta mesmo.” São as primeiras palavras de Tudo é Rio e, se não são suficientes para nos arrebatarem de imediato, chegam pelo menos para nos deixarem em sentido, curiosos com o que pode surgir de uma escrita assim, crua, brusca mas muito sincera. Tudo é Rio tem duas protagonistas. Uma é Lucy, provocadora e segura de si; outra é Dalva, calma e tradicional. Em comum parecem não ter nada, mas os seus caminhos vão cruzar-se e baralhar todas as nossas noções básicas de amor, ciúme, raiva e perdão. Nada é preto no branco. A história tem um momento trágico e violento logo no início que condiciona a vida destas mulheres mas, mais do que a narrativa tocante (e por vezes chocante) que se segue, o que impressiona neste livro é a escrita de Carla Madeira. Nesta que é a sua estreia literária (e que demorou 13 anos a estar concluída), a escrita é poética e melodiosa (mesmo quando os momentos são de uma brutalidade tal que precisamos de alguns minutos para digerir) e deixa a pairar a pergunta: “Mas como é que nunca pensamos nisto assim?” Há frases que são para guardar na memória (ou sublinhadas, para quem gosta de marcar os livros) e, no final, é preciso também deixar espaço para o luto. Não é possível terminar Tudo é Rio e passar logo para o livro seguinte, há que deixar estas personagens e este texto ocuparem o devido lugar nas nossas estantes e nas nossas cabeças.

Demon Copperhead
Barbara Kingsolver
(Suma de Letras)

Parece mais assustador do que é na realidade. São quase 650 páginas, a letra é mínima, mas Demon Copperhead consegue de tal forma transportar-nos para o universo das suas personagens que não é possível abandonar o comboio a meio. Esta é a história de um miúdo que tem o destino traçado à partida (e, spoiler alert, não é bom). Com o pai morto e a mãe constantemente a entrar e a sair da reabilitação, é ele que tem de ter os pés assentes na terra, mesmo quando deveriam estar no ar a rodopiar com simples brincadeiras de criança. Porém, os dramas não param por aí, sucedem e aumentam à medida que a sua vida vai avançando. O instinto de sobrevivência vai sendo suficiente para mantê-lo à tona, mas Demon parece andar sempre a correr atrás do prejuízo. Este livro não tem vilões nem heróis, mas também não precisa. Tem pessoas mesquinhas e gananciosas e tem outras que lutam uma vida inteira contra demónios e cuja sorte é uma palavra que passa sempre ao lado. Demon Copperhead é um David Copperfield moderno, embrulhado em violência, exploração infantil, famílias de acolhimento e uma epidemia de opióides (que aconteceu nos EUA nos anos 90 com a chegada ao mercado da OxyContin) e que a autora, por conhecer a realidade de perto, queria desesperadamente incluir numa das suas histórias. A escrita é fluída, crua e sem grandes floreados — tal como a vida — e isso deu à obra o Prémio Pulitzer na categoria de ficção. Muito merecido.

Lucy à Beira-Mar
Elizabeth Strout
(Alfaguara)

Foi um livro duríssimo de ler, coisa que não esperava, já que a sinopse não denuncia nada do outro mundo: quando a pandemia de Covid-19 se apodera de Nova Iorque, Lucy Barton muda-se com o ex-marido, William, para uma pequena localidade no Maine. Vamos então ver como é que estas personagens lidam com o distanciamento social, as idas às compras, o afastamento e a preocupação com as filhas, o confronto com as notícias televisivas que todos os dias fazem crescer o número de mortos, etc. O problema é o que o recordar destes tempos desencadeia em cada um de nós. As memórias de uma realidade quase distópica que, embora não esteja tão longínqua assim, às vezes parece nunca ter realmente acontecido. O mais certo é passarem ainda muitos anos até cada um de nós ter realmente a noção do impacto que essa fase teve. Logo, podemos não estar preparados para voltar a mergulhar nesses longos anos, coisa que em Lucy à Beira-Mar não é uma opção sequer. Estamos na pandemia e não saímos da pandemia, é aguentar. Porém, é graças à protagonista (que levámos três livros a conhecer: O Meu Nome é Lucy BartonTudo é Possível e Oh, William!) que não conseguimos parar de ler. Devemos-lhe isso, lealdade até ao fim. Até porque a acompanhamos em diversas fases da sua vida e o fim começa realmente a parecer próximo. A velhice é uma realidade e só agora é que algumas amarguras do passado começam a ter resolução (ou, pelo menos, apaziguamento). Tudo se encaixa, embora não da forma mais expectável, mostrando que raramente aquilo que sonhámos para a nossa vida se concretiza totalmente mas que, mesmo assim, pode estar tudo bem. A quarta obra desta coleção de Elizabeth Strout desencadeia no leitor uma luta interna com os respetivos traumas (não só em relação à pandemia, mas também sobre as escolhas que vamos fazendo ao longo da vida), mas é um círculo que se fecha de forma serena.

Os Esquecidos de Domingo
Valérie Perrin
(Presença)

Valérie Perrin é um caso comparável ao de Carla Madeira. A Breve Vida das Flores, da primeira, e Tudo é Rio, da segunda, são indiscutivelmente os seus livros mais fortes. Por sorte, ou por azar, são também os primeiros editados em Portugal, o que significa que os seguintes têm a ingrata tarefa de lhes chegarem aos calcanhares. Não é possível, nem justo, e por isso temos de tentar bloquear essa informação das nossas cabeças para podermos aproveitar realmente as outras obras. Os Esquecidos de Domingo tem como protagonista Justine, uma jovem de 20 e poucos anos que trabalha num lar. É lá que conhece Hélène, uma mulher de 93 anos com quem desenvolve uma ligação especial. É das memórias de Hélène e das trocas de vivências que vão surgir interrogações sobre a tragédia da vida da própria Justine. Comovente, surpreendente, doloroso, inquietante e simplesmente bonito, é assim o terceiro livro de Valérie Perrin (curiosamente a ordem está trocada, já que em França esta foi a sua estreia literária, em 2015, três anos antes do fenómeno que a tornou mundialmente conhecida). A escrita é sensível e cheia de empatia e mostra, mais uma vez, que não importa que mais nenhum romance da escritora francesa consiga igualar A Breve Vida das Flores, porque tudo o que continuar a ser publicado é de leitura obrigatória.

The Bee Sting
Paul Murray
(MacMillan Publishers)

Ainda não há versão portuguesa, mas vamos pedir com muita força ao Pai Natal que alguma editora já tenha comprado os direitos para traduzir este livro de Paul Murray e o colocar rapidamente nas prateleiras das livrarias. Esta é a história dos Barnes, uma abastada e conceituada família irlandesa que, após a crise financeira de 2008, está agora a atravessar inúmeras dificuldades. Este clã parece um vulcão a ameaçar entrar em erupção a qualquer momento e a narrativa vai ficando cada vez mais complexa, viciante e intrigante à medida que vamos conhecendo mais profundamente cada um. Dickie, o pai, não consegue fazer face às dívidas com o negócio de carros que gere e enterra a cabeça na areia enquanto se dedica à construção de um bunker à prova de qualquer guerra nuclear. Imelda, a mãe, remediou-se a casar com Dickie quando o amor da sua vida era na realidade o irmão dele, que morreu pouco antes do casamento. Vende agora online as joias da família, tentando recuperar alguma da fortuna perdida. Cassie, a filha, está a contar os minutos para fugir à castração de uma cidade pequena. Vai embalada com bastante álcool. PJ tem 12 anos e, nas barbas da distração de toda a família, conhece alguém num jogo de vídeo online que lhe dá a ideia de fugir de casa. Parece caótico o suficiente? É, sim, e escrito com tanto ritmo que nos transporta para uma viagem alucinante, sarcástica e perspicaz, com um sentido de humor muito inteligente. Como bónus até tem uma personagem que regressa da reforma em Portugal, Maurice, o rico pai de Dickie que poderá (ou talvez não) ser a salvação da família. Esperemos que a tradução de The Bee Sting para português seja mais rápida do que esta hipotética e milagrosa salvação. Até lá, a versão original está disponível em inglês por essa Internet fora.

As escolhas de Andreia Costa

Carlos Maria Bobone

A Trombeta Vaga
Simão Lucas Pires
(Quetzal)

Um pequeno livro de contos, escrito numa linguagem discreta, mas cheio de imagens poderosas. Reúne uma série de histórias modificadas por um golpe existencial que altera a perspetiva das personagens sem alterar o que as rodeia. Para quem se interessa pela análise de personalidades e pelas subtilezas que formam um carácter, não pode haver melhor.

As Causas do Atraso Português
Nuno Palma
(Dom Quixote)

Um panorama alargado da História de Portugal, que pretende mostrar quais são as razões para o atraso do país, montado numa análise das opções políticas feitas ao longo de quase oitocentos anos. Dos Descobrimentos a Pombal, das Colónias à República, o que está em causa é uma análise às consequências tangíveis das várias políticas, não fazendo caso da retórica – às vezes estabelecida há séculos – que defende ou ataca certas práticas.

Um País em Bicos de Pés
Diogo Ramada Curto
(Edições 70)

Um livro que reúne uma série de artigos sobre o mundo intelectual português, com o mérito de ir para lá do cânone já repisado de autores que formaram a tradição político-literária dos últimos duzentos anos. Resgata alguns esquecidos, como Marnoco e Sousa, e dá importância a alguns sectores da vida intelectual – como a Academia – que costumam ficar de fora do juízo generalista sobre a história das mentalidades.

Uma Família Monárquica na Guerra da República
Lívia Franco
(Dom Quixote)

Escrito a partir dos diários de um dos filhos dos Condes de Cartaxo, o livro consegue dar a estes diários uma perspetiva mais abrangente, convertendo o livro não só numa descrição dos problemas do CEP, mas também num estudo sobre o modo de integração das elites monárquicas na vida da República, naquilo que obrigou também a uma reformulação ideológica do regime e contribuiu – também – para criar as condições de possibilidade do 28 de Maio.

Nanbanjin — Os Portugueses no Japão
Luís Filipe Thomaz
(Gradiva)

A história da presença portuguesa no Japão da época das descobertas, escrita por um dos mais notáveis historiadores portugueses. A erudição de Luís Filipe Thomaz é inacreditável, e permite olhar para esta presença através de fontes que estão inacessíveis a investigadores sem o seu conhecimento linguístico e profundidade religiosa, que o leva a perceber de uma maneira muito particular os usos das diferentes sociedades orientais.

As escolhas de Carlos Maria Bobone

Cláudia Marques Santos

Um Dia na Vida de Abed Salema
Nathan Thrall
(Zigurate)

É um livro essencial para compreender os 70 anos de conflito israelo-árabe através do romance. Escrita não ficcional, a história da autoria deste jornalista norte-americano judeu a viver em Jerusalém parte do acidente de um autocarro escolar e da saga do pai, palestiniano da Cijordânia, em descobrir em que hospital estará o filho de 5 anos, e desdobra-se por outras personagens, igualmente reais, que garantem a complexidade àquela realidade no Médio Oriente.

Poesia Completa
Roberto Bolaño
(Quetzal)

Dele escreveu o espanhol Manuel Vilas, no prólogo, ter chegado à literatura através de poetas como Baudelaire e Rimbaud. Um ser deambulante e um escritor voraz nos últimos dez anos antes de falecer de doença hepática, aos 50 anos, a poesia – agora reunida – do chileno Roberto Bolaño é, à semelhança da prosa, como é o caso de Os Detectives Selvagens, um marco na literatura sul-americana, que se pretendeu sempre de rasgo, de contracorrente, de nudez e crueza perante a realidade que via à sua frente.

Viver Todos os Dias Cansa
Cesare Pavese
(Penguin Clássicos)

Edição há muito esgotada, foi agora resgatada pela Penguin para o seu segmento de Clássicos. O autor de quem Italo Calvino foi discípulo suicidou-se aos 41 anos, num quarto de hotel em Turim, pouco depois do lançamento do romance A Lua e as Fogueiras. Combatente anti-fascista, a sua visão do mundo virada à esquerda estava já presente neste seu primeiro livro de poesia, Viver Todos os Dias Cansa, de 1936.

Intérprete da Vontade do Pássaro
Joaquim Castro Caldas
(Exclamação)

A poesia é para comer todos os dias. Foi com esta premissa adaptada do último verso do poema A Defesa do Poeta de Natália Correia que o poeta Joaquim Castro Caldas iniciou as célebres noites de poesia às segundas-feiras na cave do Pinguim Café, no Porto, e que duram até hoje. Agora conduzidas pelo ator e dizedor Rui Spranger, foi numa destas sessões que foi lançado em novembro, juntamente com o também dizedor Isaque Ferreira, este livro que reúne a obra completa do poeta, provocador e dizedor que se autodenominava como “intérprete da vontade do pássaro”.

O Eu é um Outro
Jon Fosse
(Cavalo de Ferro)

Um tríptico composto por sete partes, a obra-colosso do Prémio Nobel da Literatura 2023 viu este ano editado em Portugal o segundo livro, composto pelos tomos III a V da Septologia. Numa sageza em termos de escrita que transcende o humano – o próprio disse em entrevista ao Observador que quando escreve se sente tomado pela transcendência –, um pintor desenha o mundo e assim pensa em Deus, na morte e na relação com o outro, através de personagens que mais não são que a decalcação de si próprio.

As escolhas de Cláudia Marques Santos

Guilherme P. Henriques

Coisa que não Edifica nem Destrói
Ricardo Araújo Pereira
(Tinta da China)

Um ensaio notável sobre o humor. Citar mitologia grega ou escritores trágicos do século XVI pode parecer um passo desnecessário ou demasiado obscuro para explicar uma coisa tão aparentemente simples quanto uma gargalhada; o dom de Ricardo Araújo Pereira está em tornar esse passo num exercício não só necessário como inteligível e engraçado. É difícil fazer chegar ideias filosoficamente estimulantes ao grande público sem que isso implique um esvaziamento do conteúdo ou uma falha de comunicação. Este livro prova que é possível fazê-lo. A rir.

Acolher
Claire Keegan
(Relógio D’ Água)

A história de uma menina irlandesa que vai viver por tempo indeterminado com um casal amigo dos pais. Numa recente entrevista ao The Guardian, Claire Keegan afirmou preferir, enquanto leitora, uma “prosa escrita de forma bela e económica”. Diríamos que é precisamente essa a frase que melhor descreve a sua ficção. Não há uma palavra a mais nem a menos: o texto é simples e é bom, com a vantagem adicional de nos pôr a pensar sobre coisas como as causas e as consequências de afetos de pais que não são pais, ou sobre a relação entre essas coisas e a chuva.

Montevideu
Enrique Vila-Matas
(Dom Quixote)

Considerado livro do ano pelo El Mundo em 2022, Montevideu é sobretudo um romance sobre a natureza do romance. O narrador deambula geográfica e tematicamente, conseguindo a proeza de suscitar, através da sua escrita, o prazer muito particular que sentimos ao ler escritores que escrevem sobre outros escritores, enredos acerca da dificuldade de criar enredos ou autoficções que questionam a sua própria existência (“porque tudo é autoficcional, visto que aquilo que se escreve vem sempre de nós mesmos”). Vila-Matas é um dos melhores escritores espanhóis vivos e este é um dos seus melhores livros.

A Admiração pela admiração: Ensaios para António M. Feijó
Vários autores
(Tinta-da-china)

Editado por João R. Figueiredo e Miguel Tamen, este livro reúne ensaios e textos breves escritos para António M. Feijó. Desde indagações acerca da influência de James Joyce na literatura brasileira até memórias sobre piadas de Feijó com Ozu e Portalegre na mesma frase, os temas dos ensaios e dos textos breves variam tanto quanto os interesses de cada um dos seus autores (ao todo, quarenta), aparentemente ligados pelo desafio que consiste em encurtar a distância que separa os objetos admirados da admiração pelos objetos. É talvez isso que faz um bom professor; é talvez isso que faz um bom crítico.

A Trombeta Vaga
Simão Lucas Pires
(Quetzal)

Um conjunto de oito contos de um novo escritor português cuja elegância reside no engenho de converter a complexidade de questões filosóficas e espirituais (ou a pompa de palavras como “Verdade” e “Deus”) numa ficção aparentemente simples, protagonizada por personagens demasiado vagas para enfrentar problemas demasiado concretos. Escrever bem é uma proeza de muitos; escrever bem dizendo mais do que se escreve está ao alcance de poucos, e as mais das vezes não é nas estreias que os encontramos.

As escolhas de Guilherme P. Henriques

Joana Emídio Marques

Noites de Peste
Orhan Pamuk
(Presença)

Muitos anos volvidos desde o inesquecível Museu da Inocência, o escritor e prémio Nobel turco regressa ao romance com as obsessões de sempre mas com numa forma totalmente nova, um labirinto de mistérios, símbolos, memórias da cultura ocidental, do império Otomano, mas também um ensaio político sobre a impossibilidade da inocência e da liberdade. Escrito em tempo de Covid, o escritor coloca-nos num cenário de peste bubónica, no início do século XX e faz ressoar Willem Defoe e Camus, mas também Artur Conan Doyle e Italo Calvino. Há uma ilha no Mediterrâneo, uma ilha que podia ter nascido das Mil e Uma Noites, mas onde também podemos ver Chipre e as guerras entre turcos e gregos pela sua disputa. Menos interessado na peste e mais determinado a reescrever, ainda e sempre, a Istambul da sua juventude, e a pensar como podem os estados cumprir os seus desígnios de liberdade, sem cair nos nacionalismos e nos regimes ditatoriais, este Noites de Peste, publicado este ano pela Presença, é um romance realista, daquele realismo que Pamuk inventou, de fronteiras alucinatórias com a fantasia, onde narrar sobretudo tentar agarrar muito que nos escapa, na vida e na História. Depois de 700 páginas Pamuk não nos dá mais nada senão uma grande questão: afinal o que é a inocência senão a promessa de uma liberdade sem mácula?

Ensaios
Michel de Montaigne
(E-Primatur)

Ao publicar pela primeira vez em Portugal os Essays de Michel de Montaigne, obra fundadora do humanismo e da modernidade europeia, a E-Primatur está a prestar um serviço sem preço à cultura portuguesa, uma vez que estes textos, escritos no século XVI, constituem a base do pensamento filosófico, político e científico da cultura Ocidental a partir do Renascimento. Essays cunha o que se viria a tornar um género literário, o Ensaio. Deixando para trás a teologia cristã, alheio à escolástica o filósofo e funda um pensamento a partir da cultura clássica grega e romana, assente na ideia de diálogo e não buscando uma visão totalizadora do mundo e das questões complexas dos indivíduos e das comunidades humanas. “Cada homem abriga em si a forma inteira da condição humana”, escreverá e recusa sempre ver-se como outra coisa que não um opinador. Ora, neste século XXI, onde a cidadania se confunde com o se consumidor e opinador nas redes sociais e onde a força do pensamento se confunde com charlatanice do mindfulness, nada como ler Montaigne cujo pensamento claro mas firme, sem sentimentalismo barato, sem proselitismo no ensina a refletir e a viver sem fórmulas prontas a usar, mas sim conscientes da inconstância do mundo. Depois de, em 2022, a E-Primitur ter feito sair o 1º volume destes ensaios, em 2023 saiu o segundo e o terceiro está previsto para 2024.

Poesia Completa
Horácio
(Quetzal)

Horácio, poeta romano nascido em 65 a.C, é um poeta mais conhecido e glosado do que muitos pensarão, nem que seja porque é dele a expressão tão usada quanto incompreendida carpe diem, que, ao contrário do que se pensa, não significa o fútil “aproveita a vida”, mas sim um bastante mais denso “colhe o dia” ou “colhe o fruto do dia”. Expressão que ao longo dos mais de dois milénios que passaram sobre o seu criador foi evocada por tantos outros poetas, de Walt Withman a Fernando Pessoa. Mas também Camões, Dante, Montaigne foram beber aos versos e à sabedoria estoica de Horácio, poeta da passagem do tempo e da brevidade da vida. A sua poesia, nomeadamente as Odes, devem, em parte, a sua originalidade ao facto de terem sido escritas em latim mas usando a métrica grega, o que lhes imprime o tom de canto e um ritmo únicos. Também foi ele o primeiro a criar aquilo que hoje se chama o “eu lírico”. Curiosamente, Horácio foi contemporâneo do imortal Virgílio e ambos escreveram sob a proteção do rico Mecenas e do imperador Octaviano Augusto. Pela primeira vez, desde o século XVII, a obra poética é integralmente publicada em português, traduzido por Frederico Lourenço. De referir ainda que também este ano saíram, nas edições 70, as Epístolas, do poeta, traduzidas por Pedro Braga Falcão, obra que já tinha sido editada pela Cotovia.

O Sonho de Ulisses
José Enrique Ruiz Domènec
(Temas & Debates)

Nesse mar Mediterrâneo, que é um lago quente, calmo e nutridor como um útero materno, nasceu uma história e uma cultura com uma relação vital com a água e é obcecada com os enigmas e a sua decifração, com a busca de respostas para a natureza humana e divina. Dessa relação com a água e o enigma, que impulsionou as navegações e com elas as trocas, as guerras, mas também a escrita pictográfica, hieroglífica e depois alfabética, o livro, a arte. Neste livro fascinante, que recupera milénios de acontecimentos, figuras, criações, o historiador espanhol José Enrique Ruiz Domènec põe-nos a olhar este mar como a nossa herança maior e lembra-nos que a nossa cultura foi forjada sobre a consciência da fragilidade humana mas também sobre a sua ousadia e na sua capacidade de reinvenção. O Sonho de Ulisses, mostra que, apesar das guerras, das desconfianças, que judeus, cristão e muçulmanos não tem apenas o mesmo deus, são um e o mesmo povo. Um livro absolutamente urgente, quando na Europa cresce a islamofobia e o anti-semitismo.

País Rato
Jorge Roque
(Maldoror)

Portugal é uma coisa que todos temos atravessada na garganta, uma questão que temos com nós mesmos. Como escreveu O’Neill, a única forma que temos de amar Portugal é odiando-o, chamando-lhe nomes, gritando-lhe impropérios. De Manuel Laranjeira a Oliveira Martins, de Eduardo Lourenço a Jorge Sousa Braga, passando é claro por Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, Lobo Antunes, de quando em quando precisamos, como povo, de gritar em português. O último grito, que é também uma peça de fino uso da língua e da ironia e do desalento surgiu este ano pela mão do poeta Jorge Roque, um desconhecido funcionário público, que apesar de vários livros publicados nunca mereceu um olhar atento do meio literário. Pais Rato, acabado de sair pela Maldoror, neste ano em que o ridículo do país parece chegar ao paroxismo, é um opúsculo sobre o desalento de um país “de ratos” onde nem sequer nos é permitida a ilusão de sermos outra coisa que não ratos. Jorge Roque não deixa nada de pé, nem sequer as nossas revoluções, e a seis meses dos 50 anos do 25 de Abril, lembra-nos que cada evocação não é senão um epitáfio. O poeta desconsolado calca e satiriza o nosso desconsolo: “quando a maioria finge que faz o resultado é um país a fingir”, onde “os heróis do mar recolheram à costa” e ante os chicos-espertos e os parvos só nos resta ser uma coisa ou outra, pois daqui não há como sair.

As escolhas de Joana Emídio Marques

José Carlos Fernandes

O Mar e a Civilização: Uma História Marítima do Mundo
Lincoln Paine (tradução de Miguel Mata)
(Edições 70)

Os franceses cunharam o termo roman-fleuve (“romance-rio”) para designar um conjunto de obras ficcionais que acompanham uma personagem ou uma família ao longo de um período dilatado de tempo e proporcionam uma perspetiva sobre essa época e a evolução da sociedade. Por analogia, poderia criar-se o termo “livro-oceano” para descrever obras que proporcionam uma visão ampla do mundo e da história e induzem no leitor uma sensação de imersão, de que esta obra do historiador americano Lincoln Paine (n.1959) é um paradigma. É uma viagem de 917 páginas e que implica numerosos transbordos, das pirogas polinésias aos navios porta-contentores de 230.000 toneladas, passando pelas caravelas portuguesas, mas em que o leitor nunca enjoa.

O Mundo Livre: Arte e Pensamento na Guerra Fria
Louis Menand (tradução de Paulo Tavares e Sara M. Felício)
(Elsinore)

O Mundo Livre tem um âmbito temporal bem mais restrito do que o do O Mar e a Civilização – os anos da Guerra Fria – mas a sua ambição, erudição e densidade não são inferiores (e a extensão é mesmo superior). Louis Menand (n.1952), professor de Inglês em Harvard, e um dos colaboradores mais antigos, assíduos e renomados da The New Yorker, recorre ao seu formidável cabedal de conhecimentos para esboçar um panorama da evolução da filosofia, das letras, das artes plásticas, do cinema e da música (de elites e de massas) no mundo ocidental, ao mesmo tempo que nos dá a conhecer as vidas e idiossincrasias das centenas dos artistas e pensadores que marcaram essa era. Um alerta para o leitor: O Mundo Livre não só requer um longo tempo de digestão, como a exploração das muitas obras seminais nele mencionadas e analisadas poderá prolongar-se por meses ou até anos.

Diálogos Vol.1
Lúcio Aneu Séneca (tradução, notas e introdução de Luís Coelho, Ricardo Duarte e Eduardo Ganilho)
(Edições 70)

Em tempos de estultícia, desnorte, inquietação e angústia, a humanidade tem-se voltado para os livros de auto-ajuda, para os workshops de desenvolvimento pessoal, para os gurus das TED Talks, para os life coaches, para os psicoterapeutas – e, todavia, muitas das respostas que procuramos já foram dadas há cerca de mil anos ou mais. “A filosofia não é um truque para cativar o público […] Ela molda e constrói a alma. Ordena a nossa vida, guia a nossa conduta, mostra-nos o que devemos fazer e o que devemos deixar por fazer. Toma o leme e define a nossa rota quando vacilamos no meio das incertezas”. Quem escreveu estas linhas foi Lucius Annaeus Seneca (c.1-65 d.C.), de que este volume reúne, numa edição servida por notas informadas, oportunas e esclarecedoras, seis dos dez “diálogos” do filósofo romano que chegaram aos nossos dias.

Os Gregos: Uma História Global
Roderick Beaton (tradução de João Coles)
(Edições 70)

Vivemos numa era deslumbrada com os formidáveis progressos da ciência e da tecnologia, que parecem tornar obsoletos e risíveis a sabedoria e usos do passado, mas ninguém sabe se o legado dos domadores de unicórnios e dos technokings que hoje excitam a imaginação coletiva virá a revelar-se mais duradouro e substancial do que o de Homero, Sócrates e Péricles. Este livro do helenista britânico Roderick Beaton (n.1951) não só destaca o contributo inestimável da Grécia Clássica para a definição das fundações da civilização ocidental como acompanha toda a história dos gregos, dos séculos de sujeição a outras potências, ao seu ressurgimento como nação independente no século XIX e aos conturbados eventos que marcaram a Grécia do século XX.

A Religião Woke
Jean-François Braunstein (tradução de Ana Pinto Mendes)
(Guerra & Paz)

Têm-se multiplicado os livros e artigos a denunciar os excessos do wokismo, essa “onda de loucura e intolerância [que] está a varrer o mundo ocidental”, mas poucos têm o rigor, a pertinência e a acutilância deste livro do filósofo francês Jean-François Braunstein (n.1953). Braunstein aborda a identidade de género, a abolição do corpo biológico, a “teoria crítica da raça” e a “epistemologia do ponto de vista” e analisa a sua génese e desenvolvimento, dando ênfase à forma como estes conceitos, originalmente marginais e minoritários, ganharam ímpeto, recorrendo a uma combinação de vitimização, petulância e agressividade, e estão a minar as fundações da sociedade.

As escolhas de José Carlos Fernandes

Maria Brás Ferreira

Poesia I e II
Teixeira de Pascoaes
(Officium Lectionis)

Teixeira de Pascoas, pseudónimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, assina uma obra vasta, contando com prosa, poesia e, ainda, em colaboração com Raul Brandão, uma peça de teatro. É uma figura incontornável para se perceber o modernismo literário português, bem como os movimentos que lhe são naturalmente devedores. Eis os primeiros dois volumes de uma coleção que visa compreender toda a poesia do poeta.

Cadernos do Cárcere Vol.I
Antonio Gramsci (trad. Miguel Serras Pereira)
(Edições 70)

Num tempo em que a descrença crescente, nociva e sintomática, na política e naqueles que compõem o seu aparelho, anda a par do desaparecimento da figura do intelectual, importa voltar a ler um pensador como Gramsci, até ao fim empenhado em ler o tempo que lhe coube habitar. É o primeiro volume (orientada pelo tópico da filosofia) da edição seleta das cerca de três mil páginas que o autor escreve encarcerado.

Aparas dos Dias
João Barrento
(Companhia das Ilhas)

João Barrento, este ano merecidamente galardoado com o Prémio Camões, reúne neste livro textos dispersos sobre assuntos diversos — da poesia à política —, reclamando o carácter fragmentário, isto é, quotidiano, e daí contínuo, do ensaio. São textos que partem e se debruçam sobre a atenção, cujo tempo e raridade constituem o meio salutar de permanecer em contacto com o mundo.

Linguaviagem
Augusto de Campos
(Língua Morta/Maldoror)

Valéry escreveu: “É poema o que não se pode resumir. Não se resume uma melodia.”. Augusto de Campos, poeta, ensaísta e crítico, tece um encontro entre dois pares de poetas — Mallarmé e Valéry, Keats e Yeats —, ensaiando afinidades e pontos de tensão entre si, num diálogo aberto, tão crítico quanto distante de pretensões sintéticas. O livro inclui as traduções dos poemas merecedores de comentário e reflexão.

Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea
Mário Cesariny
(Assírio & Alvim)

Trata-se de uma antologia, inédita há quase cinquenta anos, que inscreve um olhar surrealista sobre a história da literatura portuguesa. Coube a empreitada a Cesariny, aquele que mergulhou mais profundamente no jogo prestidigitador da poesia e da vida, encimando, não obstante e sem paradoxos, ao nível das priscas, o que o Surrealismo pôde e soube, num país como Portugal, magnetizar.

As escolhas de Maria Brás Ferreira

Susana Romana

As Primas 
Aurora Venturini (tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas)
(Alfaguara)

Cheguem-se para lá: este é o livro do ano. Inesquecível, incómodo, desbragado. A própria vida da autora, apenas consagrada com uns frescos 85 anos, daria um livro (o prólogo desta edição da Alfaguara, sobre o momento em que a escritora é descoberta num concurso literário, vale a pena por si só). Em As Primas é possível reconhecer alguns laivos autobiográficos do que foi ser uma mulher na Argentina dos anos 40, mas com uma camada de grotesco e de crueldade que nem por isso lhe retiram humanidade. As primas são Yuni e Petra, duas mulheres em nada normais, que lutam pela sua autonomia num contexto de homens abusadores ou ausentes — uma luta que pode ir até à vingança. Um livro descomplexado e com uma voz absolutamente autoral. É possível aos 85 anos ser-se abundantemente rock’n’roll.

Mulher, Vida, Liberdade
Marjane Satrapi (tradução de Inês Fraga)
(Iguana)

Os adeptos de novelas gráficas conhecem bem o nome de Marjane Satrapi, autora de uma das obras mais importantes dessa categoria: Persépolis, o livro autobiográfico onde fala sobre crescer e depois abandonar o Irão. Dissidente em França há muitos anos e voz crítica do regime do seu país, Satrapi saiu da reforma para angariar um naipe de autores para homenagear e gritar bem alto o nome de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que morreu em consequência de uma agressão da Patrulha de Orientação da República Islâmica do Irão por não estar a usar de forma correta o hijabe. Mulher, Vida, Liberdade vai buscar o seu nome à frase de protesto do movimento de independência curda e o objetivo da obra é mostrar, através da ilustração, o que não na altura pôde ser fotografado ou filmado devido à censura. Satrapi reuniu três especialistas — Farid Vahid (politólogo), Jean-Pierre Perrin (jornalista), Abbas Milani (historiador)  — e também dezassete autores de banda desenhada. O resultado é um documento histórico inabalável — e um livro belíssimo que, num mundo ideal, nunca deveria ter surgido.

Tudo é Rio
Carla Madeira
(Particular Editora)

É talvez um dos grandes fenómenos editoriais do ano no mercado nacional, sobretudo tendo em conta que não vem de uma editora particularmente grande. 2023 foi o ano em que a brasileira Carla Madeira, a autora mais lida no seu país, se tornou num nome conhecido junto dos portugueses — e muito devido a Tudo é Rio, um curto livro editado por cá em março (outros seguiram-se meses depois). Madeira começou na Matemática, fez carreira na publicidade e passou de autora de ficção autopublicada a campeã de vendas, em muito inspirada pela palavra cantada de Rita Lee, Chico Buarque ou Caetano Veloso. E o êxito chega merecidamente: esta história de um triângulo amoroso à força (entre a lânguida prostituta Lucy, a tradicional Dalva e o ciumento Venâncio) tem poesia, lágrima, obsessão, sorriso, tesão e até um twist final. Um daqueles livros que permanecem com o leitor muito depois de chegar à página final.

Limpa
Alia Trabucco Zerán (tradução de Isabel Pettermann)
(Elsinore)

“Eu nunca roí as unhas, nem a minha mãe. Para isso, acho eu, é preciso ter as mãos desocupadas.” A chilena Alia Trabucco Zerán debruça-se sobre um tema particularmente palpável para os sul americanos — o do tratamento das empregadas internas de famílias abastadas — para assim chegar ao tema universal da diferença de classes. Vinda do campo para a capital, Estela trabalha para o casal Jansen, convivendo de perto com o outro lado das aparências, com os acabamentos dourados que afinal escondem falhas sistémicas. Durante sete anos é invisível, algo que muda com a morte da filha do casal. Um romance cru, por vezes tão claustrofóbico como o minúsculo quarto de Estela, onde o privilégio ecoa no espaço deixado vazio pela falta de capacidade de olhar para o outro.

Um Golpe No Céu — A História Real de Um Crime
Jeanine Cummins (tradução de Luís Rodrigues dos Santos)
(Edições Asa)

Se o que faz um bom livro é o ato de morder o leitor na canela e não o largar até ao final, então Um Golpe No Céu é exatamente isso. Jeanine Cummins é mais conhecida pelo retumbante sucesso (e polémica) de Terra Americana, mas estreou-se em 2004 com esta obra autobiográfica, só agora editada por cá. Trata-se do detalhado relato real de uma noite em abril de 1991 e das suas consequências. Nessa noite, um vil ataque numa ponte sobre o Mississipi matou as primas da autora, Julie e Robin Kerry, e só por sorte é que o seu irmão Tom sobrevive. Porém, os problemas de Tom estavam apenas a começar e agravam-se conforme a investigação policial prossegue. Na altura, Jeanine é uma pré-adolescente. Porém, aqui tenta transformar-se numa narradora não participante, numa observadora do impacto que aquela noite tem na sua família, na sua comunidade e no próprio sistema de justiça norte-americano. Um daqueles livros impossíveis de pousar.

As escolhas de Susana Romana

Vasco Rosa

Nanban-Jin. Os Portugueses no Japão
Luiz Filipe F. R. Thomaz
(Gradiva)

Quando se assinalam 480 anos da chegada de portugueses ao Japão, um dos nossos mais proeminentes orientalistas coloca em contexto esse momento histórico, a que chama “a lenta aproximação dos dois extremos”. “De Sagres a Tanegaxima” é, por isso, o capítulo mais extenso. Obra profunda mas acessível, generosamente ilustrada e com bibliografia temática.

Jornadas pelo Mundo
Conde de Arnoso
(Quetzal)

O relato da viagem à China, em 1887, de Bernardo Pinheiro Correia de Melo (1855-1911), um dos Vencidos da Vida, que faltava resgatar do esquecimento. Bom trabalho de apresentação e anotação do próprio editor da Quetzal, Francisco José Viegas. Caso raro, e um exemplo para os dirigentes do mesmo ofício.

Vamos Correr Riscos. Textos escolhidos
Madalena Perdigão
(Fundação Calouste Gulbenkian e Tinta da China)

Na era dos curadores, o centenário de Madalena Perdigão foi o pretexto — como se fosse preciso um… — para recordar a figura criadora do Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte (ACARTE) da Fundação Gulbenkian, de tão grata memória. Trabalho coordenado por Rui Vieira Nery e Inês Thomas Almeida.

50 Anos de Políticas Ambientais em Portugal. Da Conferência de Estocolmo à atualidade
Luísa Schmidt (org.)
(Edições Afrontamento)

“Em Portugal, as políticas públicas ligadas à cidadania e à educação em prol do ambiente e da sustentabilidade foram globalmente marcadas por impulsos europeus e internacionais”. Atualíssimo balanço, resultante duma conferência que reuniu protagonistas, estudiosos e pensadores. O verde preto-no-branco, como deve ser.

A Construção do Algarve. Arquitetura Moderna, Regionalismo e Identidade no Sul de Portugal, 1925-1965
Ricardo Costa Algarez
(Dafne)

Sete anos depois da sua publicação em língua inglesa, pela Routledge, a Dafne conseguiu — com o apoio da Fundação Gulbenkian — colocar entre nós este livro essencial para uma redescoberta do Algarve e das suas arquiteturas. Vai certamente ajudar muitos a prestarem melhor atenção em passeios por Faro, Olhão e outras cidades daquele sul.

As escolhas de Vasco Rosa

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