Aos 29 anos, a escassos meses de completar 30, Bernardo Silva já conquistou Primeira Liga, Ligue 1, Premier League, Liga dos Campeões e Mundial de Clubes. Na memória de Bernardo Silva, porém, também está o que não chegou a conquistar: o Campeonato da Europa, já que falhou a convocatória de 2016 por lesão e não fez parte da Seleção Nacional que foi feliz em Paris.
No Euro 2024, oito anos depois, Bernardo Silva já é um dos líderes de Portugal. O jogador do Manchester City foi o capitão de equipa no recente particular contra a Croácia, na ausência de Cristiano Ronaldo e Pepe e mesmo com Bruno Fernandes em campo, e Roberto Martínez já mencionou várias vezes que nem sequer precisa de falar alto ou levantar a voz para impor alguma experiência e autoridade.
Com um palmarés extenso e a ideia clara e confirmada de que será treinador quando deixar os relvados, Bernardo continua a ser o “betinho” de Lisboa que andou num colégio e chegou a entrar na Faculdade de Letras. Nada que o impeça de ser o miúdo benfiquista que quer acabar a carreira na Luz e que continua a lutar todos os dias para provar que filho de doutor também pode dar jogador.
O melhor presente de aniversário e o amaldiçoado lateral-esquerdo de Jorge Jesus
Bernardo Silva é uma contradição em si mesmo: é o jogador menos normal de todos precisamente por ser tão normal. É um miúdo de Lisboa, filho de pai benfiquista e mãe sportinguista, com uma paixão assolapada por futebol que o tornou um dos melhores jogadores do mundo. Mas nunca deixou de ser normal. E agora é só um miúdo de Manchester, casado e pai de uma filha, com uma paixão assolapada por futebol que o tornou um dos melhores jogadores do mundo.
Nascido a meio dos anos 90 numa família sem dificuldades, frequentou o Colégio Valsassina e já disse que o melhor presente de aniversário que recebeu foi logo aos oito anos, quando o inscreveram nas escolinhas do Benfica nos Olivais. Por essa altura, já era um benfiquista assumido: ia ao Estádio da Luz com o pai e ao Estádio José Alvalade com a mãe, mas caiu para o lado paterno e a única tatuagem que tem (e que diz que alguma vez vai ter) é o lema do clube encarnado, E Pluribus Unum.
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No total, esteve 12 anos no Benfica — e foi apanha-bolas durante praticamente todo o tempo, assistindo com vista privilegiada ao regresso do ídolo Rui Costa à Luz. Mas foi também na formação encarnada que ouviu que “filho de doutor nunca dá jogador”, frase que sempre procurou contrariar apesar de assumir ser “um betinho”. Foi campeão nacional de juniores em 2013 e foi precisamente nesse ano que se estreou na equipa B e na Segunda Liga, com apenas 19 anos, merecendo desde o Prémio Revelação da temporada. Na equipa principal, porém, tudo foi mais complicado.
Em 2013/14, o treinador do Benfica era Jorge Jesus. Os encarnados foram campeões nacionais, conquistaram Taça de Portugal e Taça da Liga e viveram uma época de autêntica hegemonia interna. Pelo meio, o plantel contava com Nico Gaitán, Toto Salvio, Rodrigo e Cardozo, criando pouco espaço para a integração de jovens. Ao todo, Bernardo Silva jogou 31 minutos espalhados por três jogos, entre Campeonato, Taça de Portugal e Taça da Liga — e sempre na posição que acabou por ser uma espécie de maldição, lateral-esquerdo, quando tinha sido médio ou avançado ao longo de toda a carreira.
Bernardo Silva sobre Jorge Jesus, Mbappé e a inteligência que é “o mais importante no futebol”
Nesse verão, de forma pouco surpreendente, acabou emprestado ao Mónaco. “Nunca duvidei das minhas capacidades. O que pensei foi que tinha feito uma época boa na equipa B, que o Benfica na altura tinha um plantel muito forte e que eu não fazia parte das escolhas do treinador. Achei que sair seria o melhor para o seguimento da minha carreira. Apesar de me ter magoado um bocadinho, porque o meu sonho era estrear-me pela equipa principal do Benfica e ficar pelo menos alguns anos. Quando tomo a decisão de sair, para bem da minha carreira, custou-me um bocado. Mas sabia que era a decisão certa”, explicou o jogador numa entrevista ao jornal SOL.
E foi mesmo uma decisão certa. Com 20 anos acabados de fazer, Bernardo Silva saiu pela primeira vez do país, foi viver sozinho pela primeira vez e deixou de ter o apoio e o acompanhamento diários dos pais e das irmãs. Podia ter-se deslumbrado, entre os luxos do Principado e um salário como nunca tinha tido, mas nunca aconteceu — já confessou até que guardou e não gastou o primeiro mês que recebeu, que nunca quis ter um grande carro ou um grande relógio e que ficou chocado quando percebeu que o preço de um T1 no Mónaco dava para “alugar o Castelo de S. Jorge”.
Um príncipe no Principado e os oitavos de final que conquistaram Guardiola
Para trás ficou Lisboa — assim como a Faculdade de Letras, onde chegou a entrar para estudar Estudos Europeus. Participou em 15 jogos na primeira temporada, o suficiente para convencer Leonardo Jardim e a cúpula do Mónaco de que valia a pena tornar o empréstimo numa contratação definitiva. Os franceses pagaram cerca de 17 milhões ao Benfica e Bernardo Silva despediu-se dos encarnados. Mas nunca de vez.
Tal como já disse inúmeras vezes, o jogador português quer terminar a carreira no Estádio da Luz e ao serviço do Benfica, cumprindo o sonho ainda por concretizar de ser presença assídua na equipa principal. “O meu sonho sempre foi ser jogador do Benfica. Nunca sonhei jogar no City ou no Mónaco, era sempre o Benfica. O que viesse depois era um extra”, já confessou, garantindo que nunca irá representar outro clube em Portugal. Até porque “leão só de signo e azul só o do City”.
O Manchester City pagou 50 a 60 milhões por Bernardo Silva, o Messizinho do Seixal. Porquê?
Ficou mais dois anos no Mónaco, cruzando-se com Ricardo Carvalho e João Moutinho e também com Mbappé, e conquistou a Ligue 1 em 2016/17. Pelo meio, chegou à Seleção Nacional, estreando-se em março de 2015 num particular contra Cabo Verde, mas falhou o Euro 2016 por lesão: ou seja, perdeu a possibilidade de se sagrar campeão europeu, uma mágoa que ainda o acompanha e que faz com que o atual Euro 2024 se torne ainda mais importante.
O momento de viragem na carreira de Bernardo Silva, porém, apareceu no início de 2017. O Mónaco cruzou-se com o Manchester City nos oitavos de final da Liga dos Campeões e os franceses eliminaram os ingleses, caindo apenas nas meias-finais contra a Juventus. Pep Guardiola, treinador dos citizens, ficou encantado com as exibições do português em Inglaterra e no Principado — em pouco tempo, comunicou à cúpula do clube que Bernardo teria de ser uma das prioridades no mercado de verão.
E foi. Meses depois de eliminar o Manchester City na Liga dos Campeões, o jogador português assinou pelos ingleses a troco de mais de 50 milhões de euros. Foi de suplente muito utilizado a titular indiscutível e tornou-se assunto recorrente nas conferências de imprensa de Pep Guardiola, onde o treinador espanhol o descreveu como “perfeito” e chegou a dizer que o City era “Bernardo e mais dez”.
“É ótimo ouvir o treinador dizer isso, ainda por cima um treinador como o Guardiola, que toda a gente reconhece como uma figura muito importante no futebol mundial. É um prazer poder trabalhar com ele. Hoje em dia sinto-me muito melhor jogador do que quando cheguei ao City e é também porque aprendi imenso com ele. É um orgulho poder trabalhar com o Guardiola e poder jogar neste clube”, explicou numa entrevista recente. Certo é que, de 2017 para cá, Bernardo foi figura central de um Manchester City que conquistou a Premier League em seis ocasiões, duas Taças de Inglaterra, duas Supertaças e quatro Taças da Liga, para além de ter alcançado o sonho de vencer a Liga dos Campeões.
A elegância de Silva e a ética de Kanté no metro e setenta e três que nunca foi traído pelo físico
Ao longo do tempo e de praticamente uma década de carreira ao mais alto nível, Bernardo Silva tem sido o argumento contrário à alegada lei que implica que um jogador tem de crescer fisicamente para vingar no futebol atual. Tem 1,73 metros, já disse várias vezes que gosta de treinar mas prefere não fazer ginásio e nunca alterou propriamente a forma física, sendo-lhe louvada uma “elegância tipo David Silva e uma ética de trabalho tipo N’Golo Kanté”.
“Cheguei a pensar que a questão física podia ser um entrave, quando tinha 15 ou 16 anos e estava no Benfica, porque nem sequer jogava na formação. Mas a partir do momento em que fui para os juniores comecei a jogar e mesmo na equipa B nunca achei que o físico fosse um entrave. Até porque olhava para as principais equipas da Europa, e nessa altura o Barcelona era dominante e era treinado pelo Guardiola, e a maior parte dos jogadores eram minúsculos”, já recordou Bernardo, que não esconde que procurou melhorar outros aspetos para compensar a questão física.
“Eu acho que o físico é importante. Claro que se na próxima época puder ser um bocadinho melhor fisicamente, vou trabalhar para isso, porque é bastante importante. Claro que há pessoas que nascem melhor do que outras a nível físico e quem não é tão desenvolvido nessa vertente ganha outras coisas. Temos de compensar, tentar pensar mais rápido, perceber mais depressa onde a bola vai cair, meter melhor o corpo… Isto são tudo ferramentas que se vão ganhando com o tempo para compensar esse tipo de coisas”, acrescentou.
A inteligência, afinal, sempre foi uma das características primárias de Bernardo Silva. Filho de um funcionário numa empresa de segurança digital e de uma professora de História de Arte, era o típico aluno falador e distraído que não precisava de estudar muito para ter boas notas. Prefere a Netflix à PlayStation, um bom jantar no restaurante espanhol de Juan Mata em Manchester às discotecas e durante muito tempo só era visto a conduzir um Smart, algo que mudou a partir do momento em que foi pai. Pelo meio, já não esconde que quer ser treinador depois de deixar os relvados, “com Rúben Dias como adjunto”.
Com quase uma década de Seleção Nacional, Bernardo Silva um dos próximos grandes líderes de Portugal — que lhe deu a braçadeira no particular contra a Croácia, na ausência de Cristiano Ronaldo e Pepe e mesmo com Bruno Fernandes em campo, e que já referiu várias vezes que o avançado é o tipo de jogador que não precisa de levantar a voz para liderar. Em 2024, Bernardo vai procurar a alegria e vingar a lesão que o afastou da alegria de 2016.