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Sabe quanto ganha o seu colega do lado?

Representantes de trabalhadores podem aceder a dados salariais e funcionários podem pedir investigação a diferenças. Mas direitos são pouco conhecidos. Diretiva levanta mais o véu.

Foi um “choque cultural” atrás de outro. Primeiro, quando na entrevista de emprego para o hotel onde agora trabalha, a recrutadora lhe disse que eram vizinhos, sem que Bruno Serra tivesse partilhado essa informação. “A agora minha chefe contou-me que vivíamos perto, que eu iria demorar oito minutos a chegar ao trabalho, o que seria ótimo. Eu fiquei: Ok…”, explica o português emigrado em Tromsø, na Noruega, há quatro meses.

A transparência salarial na Noruega vai muito além desta espécie de diretório online onde a partir de um nome e um número de telefone é possível chegar a uma morada de residência. Vai também às remunerações, num país onde já no século XIX qualquer pessoa podia saber o salário de qualquer outro através de um livro numa câmara municipal. Hoje é no site das Finanças que é possível a um trabalhador registado no país descobrir os rendimentos e o património de terceiros, mesmo que não sejam da mesma empresa.

Talvez por isso falar sobre salários entre colegas de trabalho, mesmo entre quem se conhece há poucos dias, não seja visto como uma intromissão na vida privada. Apesar de ter sido alertado para essa transparência, Bruno não conseguiu evitar um “choque cultural a sério” quando um colega lhe perguntou, sem pudores, qual o valor por hora que tinha acordado no contrato. “Eu respondi 213,95 coroas norueguesas [cerca de 18,80 euros] e ele disse que estava a receber o mesmo, mas que entretanto outro chefe de cozinha acabado de chegar estava a receber 239 [cerca de 21 euros]. E que, por isso, ia pedir um aumento. Pediu e recebeu”, conta Bruno Serra. Uma realidade bem diferente da que viveu em Portugal, onde chegou a ver uma colega responsável pela contabilidade suspensa de funções por divulgar salários de superiores.

A Noruega é um dos países do mundo com maior transparência salarial e o terceiro com uma menor discrepância entre homens e mulheres, em 144, num ranking do Fórum Económico Mundial em que Portugal ocupa a 29.ª posição. “Acho que uma coisa acaba por estar ligada à outra, mas é sobretudo um aspeto cultural. Sinto que se houvesse mais transparência em Portugal não haveria necessariamente maior igualdade”, diz por sua vez Gonçalo Pereira, engenheiro português na área das telecomunicações que trabalha em Oslo há dois anos. E que já antes, na Dinamarca, sentiu maior abertura para discutir salários do que em Portugal.

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A questão dos ordenados é, por cá, ainda vista como um “tabu”, um “tema sensível”, admite Vasco Salgueiro, diretor da Michael Page em Portugal, em declarações ao Observador. “É informação confidencial que tenho a certeza que os responsáveis de recursos humanos não transmitem aos trabalhadores”, refere. Basta, aliás, olhar para os gabinetes dos responsáveis pelo processamento salarial, que “muitas vezes têm um gabinete à parte, para tratarem desses temas de forma confidencial”.

Business Colleagues Discussing Strategy At Office

Em Portugal, se quiser saber quanto ganha, especificamente, o seu colega do lado ou o seu chefe só tem uma opção: perguntar-lhes diretamente

Getty Images

Mais do que uma vantagem, que permita esbater injustiças salariais, a transparência salarial é concebida pelos empregadores como uma potencial fonte de conflitos internos, acredita. “É, talvez, dos temas mais sensíveis nas empresas. Hoje em dia já se fala mais abertamente sobre orientação sexual ou de orientação política do que de salários.”

Lei obriga a políticas salariais transparentes, só que acesso a ordenados é limitado

Por cá, a legislação não vai tão longe quanto na Noruega. Em Portugal, a lei 60/2018, a primeira especificamente desenhada para combater a desigualdade remuneratória entre géneros, determina que os empregadores devem ter uma “política remuneratória transparente, assente na avaliação das componentes das funções, com base em critérios objetivos, comuns a homens e mulheres”. Em caso de alegação de discriminação remuneratória, cabe ao empregador demonstrar que possui uma política de remunerações transparente.

Mas se quiser saber quanto ganha, especificamente, o seu colega do lado ou o seu chefe só tem uma opção: perguntar-lhes diretamente e esperar que lhe respondam. Isto porque nada na lei obriga o empregador a divulgar essa informação mesmo pedindo.

Há, no entanto, formas de pelo menos ter uma ideia de quanto ganham os colegas, mas uma delas é dificultada se agir sozinho, sem uma comissão de trabalhadores ou sindicato. É a que decorre de uma lei de 2009 que obriga o empregador a prestar “anualmente” informação sobre a atividade social da empresa, sobre remunerações, duração do trabalho, trabalho suplementar, contratação a termo, formação profissional, segurança e saúde no trabalho e quadro de pessoal, no chamado “relatório único”. Essa informação é obrigatoriamente entregue aos sindicatos representativos de trabalhadores da empresa que a solicitem, à comissão de trabalhadores, bem como aos “representantes dos trabalhadores para a segurança e saúde no trabalho na parte relativa às matérias da sua competência”.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a transparência salarial.

Ou seja, os sindicatos ou as comissões de trabalhadores podem ter acesso a uma lista — desde que a peçam — com os salários de todos os trabalhadores onde não podem constar nomes ou outros “elementos nominativos” que possam identificar o trabalhador. A lei da igualdade salarial de 2018 introduziu uma exceção a esta regra: só o sexo do trabalhador pode ser identificado. “Tem de ser uma listagem anónima, fazendo apenas constar se é do sexo masculino ou feminino”, resume Carla Tavares, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).

Existem, porém, empresas que se “escudam” na lei da proteção de dados para não enviar esses dados ou para enviar apenas a informação dos trabalhadores sindicalizados no sindicato que fez o pedido, critica Sérgio Monte, secretário-geral adjunto da UGT. Só que além de essa prática deixar de fora os funcionários que são sindicalizados sem o conhecimento da empresa (por exemplo porque pagam as quotas autonomamente), também não dá acesso a informação completa que permita aferir se há desigualdade entre géneros. “Temo-nos batido para que esses dados nos sejam enviados, não expondo o nome do trabalhador, mas que se diga, por exemplo, que a empresa tem uma grelha salarial de dez níveis e com salário de mil euros existem x homens e x mulheres”, aponta o sindicalista.

High angle view of businessman giving presentation colleagues in board room at office

Do lado corporativo, a perceção é que levantar o véu dos salários traria "conflitos internos" que as empresas preferem evitar

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E um trabalhador sozinho pode ter acesso à informação? No entendimento da CITE, a informação tem de estar distribuída por categoria profissional, sendo que o trabalhador individualmente não pode a ela ter acesso (e sim os seus representantes). A mesmo interpretação da lei têm Sérgio Monte, da UGT, e Isabel Araújo Costa, associada sénior da área de direito do trabalho da Antas da Cunha ECIJA: “Não resulta inequivocamente da letra da lei que o trabalhador, individualmente, possa solicitar esta listagem das remunerações por género ao empregador. Pelo contrário. Parece indicar que só poderá aceder se e quando representado”, diz a advogada. Ou seja, se quiserem saber individualmente, só perguntando aos colegas.

Já Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados, tem outra interpretação e entende que um trabalhador sozinho pode pedir a listagem das remunerações por género. “Sim, atualmente, é possível aferir-se, na globalidade, a remuneração por categorias, escalões, sendo que muitas vezes não há distinção de género no Relatório Único. O trabalhador pode solicitar sozinho a listagem das remunerações por género, não carecendo de se fazer representar para o efeito”, considera. Certo é que, segundo as consultoras de recrutamento e recursos humanos ouvidas pelo Observador, não é um mecanismo que seja usado, ou até conhecido, pelo trabalhadores.

Trabalhadores podem pedir à CITE que investigue discriminação, mas direito só foi usado duas vezes

Há outro mecanismo, mas enquadrado na lei da igualdade salarial, e que apenas funciona se (aqui sim) o trabalhador ou o representante sindical alegar discriminação com base no género em relação a um ou mais colegas. E para isso, diz Carla Tavares, “presume-se” que o queixoso sabe quanto ganha o seu colega. Este mecanismo permite que um trabalhador submeta à CITE um pedido fundamentado alegando que está a ser discriminado com base no género para que esta investigue e se pronuncie. Para tal, tem de identificar o colega (ou os colegas) em relação ao qual (aos quais) se sente discriminado. Caberá ao empregador provar junto da CITE que não há discriminação com base no género e que o valor dos salários dos envolvidos tem por base critérios objetivos.

Só que esta possibilidade apenas existe para casos de alegada discriminação de género, ou seja, um trabalhador só pode alegar discriminação face a outro do sexo oposto. Não pode, portanto, ser usada em casos mais abrangentes, de eventuais injustiças salariais entre pessoas do mesmo género. Para isso, os trabalhadores podem sempre fazer queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) — que não disse ao Observador se recebeu queixas nesse sentido — ou, eventualmente, levar o empregador a tribunal.

O exercício deste direito junto da CITE tem sido muito residual. Em quatro anos de lei, só houve dois pareceres da Comissão sobre alegada discriminação com base no género — um pedido por um homem e outro por uma mulher. Em ambos os casos, a CITE concluiu haver indícios de discriminação. O número é tão residual porque Carla Tavares acredita que os trabalhadores, em geral, não têm conhecimento deste direito. “Se as pessoas souberem que o podem fazer, os mecanismos que a lei dispõe permite que se faça e que possa ter acesso à informação. Agora, na realidade, aquilo que resulta é que a maior parte das pessoas não tem conhecimento de que o pode fazer“, indica.

Nesses dois casos, as empresas forneceram a informação pedida pela CITE, mas não conseguiram provar a existência de critérios objetivos que justificassem a discrepância salarial. Que critérios objetivos podem justificar essas discrepâncias? A antiguidade, a experiência ou as qualificações profissionais, para dar alguns exemplos.

"Se as pessoas souberem que o podem fazer, os mecanismos que a lei dispõe permite que se faça e possa ter acesso à informação. Agora, na realidade, aquilo que resulta, é que a maior parte das pessoas não tem conhecimento de que o pode fazer."
Carla Tavares, presidente da CITE

Mas há outros critérios que confluem para o cálculo de um salário, mais difíceis de medir por serem mais subjetivos, como a habilidade, as competências efetivas ou até a capacidade de negociação de um trabalhador e a própria lei da oferta e da procura, que levam a diferenças salariais e sobre as quais as empresas tendem a guardar sigilo. E que as organizações podem não conseguir justificar perante uma entidade como a CITE. Por outro lado, há critérios que, sendo objetivos, denotam uma desigualdade de género. Carla Tavares dá um exemplo: trabalhar por turnos paga mais, mas os homens tendem a trabalhar mais por turnos do que as mulheres (porque estas ficam mais frequentemente com a tarefa de tomar conta dos filhos, por exemplo).

Carla Tavares admite que muitas empresas não estejam preparadas para implementar regras de igualdade salarial porque “é um processo muito técnico”. Aliás, para um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre transparência salarial, a CIP (Confederação Empresarial de Portugal) defendeu a necessidade de as leis serem mais divulgadas junto das empresas. É que, pela quantidade de micro empresas em Portugal, “o baixo conhecimento da lei portuguesa sobre transparência salarial dificulta a implementação“, com “muitos empregadores” a não entenderem as suas obrigações. A CIP pede, por isso, que os processos sejam simplificados e clarificados, e mais campanhas informativas.

A lei também prevê que o Gabinete de Estudos e Planeamento (GEP), do Ministério do Trabalho, publique um “balanço das diferenças remuneratórias entre mulheres e homens por empresa, profissão e níveis de qualificação”, construído com base no Relatório Único, mas tal não tem acontecido porque, como escreveu o Dinheiro Vivo em 2021, o Ministério do Trabalho entende que coloca em causa a proteção de dados. E se os trabalhadores não tiverem conhecimento de eventuais diferenças remuneratórias por género estarão menos propensos a pedir à CITE que as investigue.

A advogada Raquel Caniço lamenta que as empresas em Portugal “raramente” publiquem tabelas salariais e diz que os critérios utilizados para estabelecer salários “são ambíguos”, além de que há “muita dificuldade no cumprimento da legislação já existente em matéria de transparência salarial e isso também não é claramente fiscalizado”. “O controlo da aplicação das medidas nacionais não é exaustivo.”

Levantar o véu do “tabu” salarial traz conflitos ou igualdade?

Não é por a transparência ser regra na Noruega que ela se torna tema recorrente nas conversas diárias entre colegas na empresa de Gonçalo Pereira em Oslo. “Acho que uma das razões para não dominar as conversas é porque o sistema é bastante igualitário. A distância entre quem entra e quem está nas empresas e os níveis superiores é muito mais ténue do que em Portugal. Existe uma ideia de que o sistema funciona de forma justa, que não existem discrepâncias que não fazem sentido, enquanto se calhar em Portugal isso não acontece”, afirma.

Por isso, o engenheiro conta pelos dedos de uma mão o número de vezes em que pesquisou os rendimentos de terceiros na plataforma do Fisco norueguês. Fê-lo em relação a colegas de trabalho com quem tem pouca relação e até a um desconhecido (o agente imobiliário que lhe mostrou uma casa certa vez) por “curiosidade” e para perceber o funcionamento do site (desde 2014, o sistema notifica o contribuinte sobre quem pesquisou os seus rendimentos); não por ter expectativa de usar essa informação para melhorar o salário. “Tinha chegado recentemente ao país, a margem de manobra não seria muita. Foi mais por curiosidade”, admite. Até porque, acrescenta, para ter uma ideia de qual pode ser a sua progressão salarial na Noruega “acaba por ser mais útil” a informação disponível junto dos sindicatos.

[Pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África]

Na Noruega, os sindicatos têm uma particular força sindical — 52% dos trabalhadores, como Gonçalo, são sindicalizados, quando em Portugal são apenas 19% — e a contratação coletiva tem um peso forte, o que também ajuda à posição cimeira no ranking da igualdade de género: estando os salários definidos em contratos coletivos, não há tanto espaço para discrepâncias originadas por critérios não objetivos.

A contratação coletiva é, para Henrique Duarte, especialista em psicologia social e organizacional e professor no ISCTE, um fator de atenuação das desigualdades. Segundo o investigador, a transparência nos salários acaba por ser maior nas funções da base, que muitas vezes são remuneradas pelo salário mínimo ou pouco acima, do que nas funções intermédias e superiores, onde há maior variação salarial.

Na formação de um salário há fatores objetivos que se misturam com outros mais subjetivos, que dependem, por exemplo, da conjuntura ou da capacidade de negociação, e que podem contribuir para divergências salariais. Vasco Salgueiro, diretor da Michael Page em Portugal, explica que as empresas “geralmente” têm um intervalo de salário para cada candidato, consoante a posição ou a experiência, sendo na negociação que se definem valores finais, que podem variar para baixo ou para cima do leque consoante a capacidade negocial das partes. Mas há outras variáveis que entram em jogo.

Desde logo, a situação do mercado e a lei da oferta e da procura, que podem levar as empresas a oferecer maiores salários em períodos de escassez de mão de obra, aponta Ana Amado, diretora da WTW Portugal. A forma como cada um perceciona o risco também influencia os salários: uma maneira de subir o ordenado é mudar de empresa e “as mulheres tendem a ser mais avessas ao risco e a mudar menos vezes de emprego”. “Os homens têm, tipicamente, salários mais elevados também porque com a mudança conseguem subi-lo de forma diferente do que se estiverem na mesma empresa”, explica.

Salário médio real dos trabalhadores com ensino superior ainda está 134 euros abaixo do pré-troika

Muitas empresas têm estruturas de remuneração e de progressão na carreira definidas, conhecidas por todos os trabalhadores. Mas isso não exclui aumentos dirigidos para reter determinados funcionários na empresa, por exemplo.

Do lado corporativo, a perceção é que levantar o véu dos salários traria “conflitos internos” que as empresas preferem evitar. “Tenho dúvidas de que seria benéfico. Nas empresas existem enquadramentos completamente diferentes. Há pessoas que entram com e sem experiência e que negoceiam o seu posto. São realidades e experiências anteriores completamente diferentes que podem não ser bem interpretadas pelas outras pessoas, [saber o salário dos colegas] vai gerar frustrações desnecessárias“, defende Vasco Salgado. O responsável da Michael Page em Portugal acredita que saber os salários dos colegas “cria mais pontos a desfavor do que a favor porque as pessoas ficam frustradas e muitas vezes não compreendem o porquê de cada nível salarial“.

Ana Amado defende a existência de critérios objetivos “para que as pessoas que tenham competências mais importantes para aquela empresa sejam remunerados por isso”. Mas admite que uma transparência total poderia trazer à luz discrepâncias que não seriam aceites pelos trabalhadores. “As diferenças salariais entre juniores e seniores, por exemplo, são percecionadas muito bem por quem trabalha em recursos humanos, mas não pela maioria dos colaboradores. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de informação [salarial] dada às pessoas sem haver uma contextualização”, diz. Para as empresas seria “difícil, de repente, dar aumentos enormes a todas as pessoas, tabelar por cima”.

Vários estudos têm sido feitos sobre as vantagens e desvantagens das políticas de transparência salarial. Num deles, os investigadores Tomasz Obloj (HEC Paris) e Todd Zenger (Universidade do Utah) seguiram os salários de 100.000 académicos nos EUA ao longo de 20 anos e concluíram que a desigualdade salarial de género diminuiu 45% nas organizações que se tornaram mais transparentes, enquanto a variação salarial entre colegas na mesma ou em relação a outras instituições caiu 20%.

Mas há outra corrente de estudos: a que concluiu que as políticas de transparência salarial podem levar a salários médios mais baixos dentro de uma empresa, embora os ordenados subam para os que são hoje mais mal pagos. Só que há uma nivelação que prejudica os ordenados mais altos. Isto porque “ao revelarem os salários atuais ou leques salariais publicamente, os empregadores comprometem-se de forma mais credível a não negociar com potenciais ou atuais empregados”. Ou seja: “Podem afirmar que qualquer negociação individual em que se envolvam precipita a necessidade de negociar com todos os outros [trabalhadores]”, referem Obloj e Zenger, num artigo na Harvard Business Review.

Mais: quando os empregadores comprimem as remunerações como resposta à transparência salarial, e tornam a remuneração menos dependente do desempenho, arriscam a que os trabalhadores com melhor performance abandonem a empresa, “uma vez que procuram organizações mais dispostas a recompensar o seu melhor desempenho (e talvez a manter o seu salário elevado mais secreto)”. É por isso que Obloj e Zenger, que têm estudado a transparência salarial nos últimos anos, falam nos efeitos “complicados” deste tipo de política.

Segundo a diretiva da transparência salarial que está a ser discutida a nível europeu, estas políticas podem, porém, beneficiar os empregadores através de uma maior retenção de talento e melhoria da reputação.

“Desconfiamos uns dos outros porque as regras não são claras”

Falar de salários em Portugal ainda leva os interlocutores a baixar o tom de voz. “Continua a ser um tema muito confidencial nas organizações“, diz Pedro Amorim, corporate clients director do ManpowerGroup. Mas de forma não oficial “as pessoas acabam por saber ou partilhar os seus valores salariais” e “muitas vezes” acontece usarem essa informação em momentos de revisão e negociação salarial, admite.

Uma maior transparência salarial não iria ter impactos só na igualdade de género, acredita, mas também permitiria assegurar que “em funções e senioridades semelhantes, as pessoas ganhassem o mesmo”. “Não basta publicar a política salarial definida, algo que hoje muitas empresas já publicam nos seus canais de comunicação interna. Além do anúncio de níveis de responsabilidade e patamares salariais e benefícios associados, há que avançar mais, o que não é fácil, porque culturalmente tendemos a considerar essa informação como sendo da esfera privada“, frisa.

Henrique Duarte, professor no ISCTE, rejeita a ideia de que o sigilo à volta dos salários seja uma questão cultural porque essa visão adiciona um elemento “determinista” à equação, quase como se o tabu fosse uma inevitabilidade. “A cultura tem as costas largas. O que leva à cultura é que se há coisas que funcionam de uma certa maneira, apropriamo-nos desses valores. Cria-se uma certa disposição a isso, mas não é um determinismo.”

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Diretiva da transparência salarial foi proposta pela Comissão Europeia. Texto final ainda tem de ser aprovado no Conselho da UE

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Para o especialista em psicologia social, Portugal não é um exemplo de transparência salarial porque há na gestão empresarial “um enviesamento para se centrar na pessoa e não no coletivo”. Além de que nas relações de trabalho há “desconfiança”, o que se aplica às conversas sobre salários. “Somos uma sociedade com um fraco capital social. Não estamos habituados a trabalhar coletivamente em associações e criamos uma desconfiança sistemática entre nós e em relação a quem nos chefia. Desconfiamos uns dos outros porque as regras não são claras“, considera.

Mas Henrique Duarte admite que uma política de transparência salarial total, como a que existe na Noruega, poderia não ser usada da maneira correta numa fase inicial pela sociedade portuguesa. “Ia ser usada para se olhar para a exceção e não para regra. A minha intuição é que as pessoas iam ignorar que x pessoas ganham o mesmo e concentrar-se nas que não ganham o mesmo valor.”

Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, considera que há “poucas empresas” com programas de desenvolvimento pessoal ou de remuneração. E isso prejudica a igualdade. “Por não haver políticas de desenvolvimento das pessoas e salariais objetivas, com metas objetivas, gera-se mais desigualdades. Expor essas desigualdades parece tornar mais frágil a organização, na perspetiva em que os trabalhadores podem reivindicar. O facto de não haver critérios objetivos de recompensa faz com que seja um tema tabu”. Esse “tabu” estende-se até às relações pessoais. “É muito comum os amigos não saberem quanto ganham. Podem ter uma ideia mas não põem os números em cima da mesa porque há preconceito associado a essa exposição”.

Anúncios de emprego terão de ter salário proposto e recrutador não pode perguntar sobre histórico salarial

Pela Europa, são vários os países com leis de transparência salarial, em muitos casos mais detalhadas do que a portuguesa. Segundo um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do ano passado, cada vez mais países têm medidas para permitir que os trabalhadores possam pedir informação sobre o salário, sendo o direito exercido geralmente através de um representante do trabalhador. Na Noruega, os funcionários podem fazer o pedido diretamente, enquanto na Alemanha e em Espanha isso só acontece se não houver representação dos trabalhadores na empresa.

Há outras restrições: na Alemanha, a informação sobre salários só pode ser dada se houver pelo menos seis pessoas do sexo oposto para comparação; e em Espanha, se for o trabalhador sozinho a pedi-la por não haver representantes na empresa, só pode ter acesso à diferença salarial entre homens e mulheres. Já na Finlândia e na Irlanda para que essa informação seja transmitida, os trabalhadores visados têm de dar o consentimento.

Uma nova diretiva europeia, que aguarda por aprovação pelos Estados-membros no Conselho da União Europeia, prevê nivelar as políticas de transparência salarial a nível europeu. No entendimento de Carla Tavares, da CITE, Portugal não terá de fazer muitas alterações, mas entre o que terá de mudar está a inscrição na lei da proibição de os recrutadores questionarem os candidatos sobre o seu histórico salarial, bem como a obrigatoriedade de o candidato ser informado sobre o salário proposto ou o leque salarial antes da entrevista de emprego (não necessariamente no anúncio de emprego).

Discriminação salarial. Comissão Europeia quer que trabalhadores possam saber média salarial de colegas com a mesma função

Práticas que atualmente não são comuns nas empresas. “Não considero que esteja a aumentar o número de anúncios de emprego com valores“, diz Vasco Salgueiro, da Michael Page. E, considera, não o fazem por dois motivos: “Por um lado porque não gostam de expor este tipo de informação que consideram confidencial e, por outro lado, porque o valor pode ser visto como vinculativo” e, assim, afastar potenciais candidatos. “Temos de preparar as empresas para esta nova modalidade, como preparámos para o trabalho remoto. É mais um desafio na área dos recursos humanos”, indica.

Outras alterações da diretiva já existem na lei nacional, como a obrigatoriedade de as empresas com 100 ou mais trabalhadores reportarem as diferenças salariais por género às autoridades competentes — a lei portuguesa até é mais abrangente ao incluir as empresas com pelo menos 50 trabalhadores. As empresas que tenham divergências salariais iguais ou superiores a 5% são chamadas a justificar essas diferenças e, se não conseguirem fazê-lo, a corrigir a situação, como já acontece em Portugal.

A diretiva prevê que tanto os trabalhadores como os seus representantes possam aceder à média salarial por género para a mesma categoria, e os empregadores devem fornecer informação sobre a forma como os níveis remuneratórios são determinados, o que para a advogada Isabel Araújo Costa é uma redação mais clara do que a lei portuguesa. “Todos os trabalhadores e seus representantes devem ter o direito de obter informações claras e completas, a seu pedido ou através dos seus representantes, sobre a respetiva remuneração, sobre o nível de remuneração individual e sobre os níveis de remuneração médios, repartidos por género, para a categoria de trabalhadores que executam trabalho igual ou de valor igual”, lê-se na diretiva.

No que toca à proteção de dados, a advogada Raquel Caniço sublinha que a diretiva “faz essa ponte relativamente ao Regime Geral da Proteção de Dados considerando a possibilidade de haver um crivo de seleção de informação através das representações sindicais e da CITE (em Portugal) que prestarão a informação ao trabalhador de forma a cumprir com o Regulamento”.

Raquel Caniço acredita que haverá necessidade de ainda mais alterações na lei portuguesa, por exemplo “por se prever o conceito de forma mais específica de indemnização por danos decorrentes da violação do princípio da igualdade” ou por haver um reforço da fiscalização na aplicação.

Além disso, os Estados-membros terão de proibir cláusulas nos contratos que impeçam os trabalhadores de divulgar informação sobre a remuneração ou procurar saber a remuneração dos colegas da mesma ou outra categoria. Passos que na Noruega, para trabalhadores como Bruno Serra e Gonçalo Pereira, são já um dado mais do que adquirido.

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