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Diogo Lopes/Observador

Diogo Lopes/Observador

Sergi Arola: "Cheguei a ser expulso de um restaurante por me ter virado a um cliente"

Tem fama de 'bad boy', mas nunca se envolveu em escândalos; está no Guia Michelin há 20 anos, mas esteve muito perto de perder tudo. Conheça a história de vida do chef que queria ser rock star.

“Quando me pedem para fazer entrevistas lembro-me sempre de um programa de televisão, que havia há muitos anos, onde faziam entrevistas àquelas pessoas muito entendidas, grandes figuras da cultura e isso. Acontece que essas conversas ficavam guardadas e só eram exibidas depois do entrevistado morrer. Sempre achei isso muito mórbido, por isso, quando me pedem entrevistas destas, fico sempre meio nervoso. Se souberes quando vou morrer tu avisa-me! Assim já me vou preparando!”

Foi desta forma, entre risos, que o chef Sergi Arola começou a conversa de quase três horas com o Observador. O pano de fundo era uma das esplanadas do hotel Reid’s, no Funchal, Madeira, com um sol abrasador a deixar marcas do famoso “bronze à camionista”. “Podemos passar ali para aquela mesa? É que estou a tostar, aqui!”, exclamou o chef espanhol que decidiu apostar em Portugal há mais de uma década, primeiro com o Arola e, mais tarde, com o LAB by Sergi Arola. Ambos os espaços coabitam no luxuoso Penha Longa Resort, em Sintra, e um deles, o mais recente, é desde 2017 orgulhoso detentor de uma estrela Michelin.

Cabelo grisalho pelo pescoço, todo penteado para trás, cavanhaque bem aparado, óculos escuros, t-shirt preta, calças em padrão camuflado e ténis All Star azuis, impecavelmente limpos mas com uma certa patine vintage. Foi nestes preparos que Sergi se apresentou para a conversa, no rescaldo dos dois dias do festival gastronómico Art of Flavours, organizado nesta histórica unidade hoteleira. Irreverente e com um toque subliminar de bad boy, Sergi tem ar de que arranja problemas, cria confusões e faz tudo isso ao som de rock n’roll. Contudo, expressões como “as aparências iludem” foram criadas para pessoas como este catalão que celebrou em 2018 o seu 50º aniversário.

No total, soma mais de 30 anos de carreira. Aprendeu com o mítico Ferran Adrià, acompanhou de perto os primeiros anos do elBulli, foi discípulo do francês Pierre Gagnaire e em Espanha, já a título próprio — primeiro no La Broche e depois no Sergi Arola Gastro –, tornou-se num nome mais que respeitado. Caiu na desgraça por culpa da crise económica de 2008/09 e esteve à beira de perder tudo quando, de uma assentada, se viu afogado em dívidas a lidar com um divórcio e a ser rejeitado pelo seu país (“ninguém me deu a mão quando cai”). Em boa hora, explica, decidiu virar-se para Portugal e recomeçar quase do zero. É por tudo isto que diz que o nosso país lhe “salvou a vida”.

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Estes e muitos outros assuntos — como a sua íntima relação com a música que quase o tirou das cozinhas — marcaram a entrevista.

Sergi aparece à esquerda, com a sua guitarra, em plena adolescência

D.R.

Vivia mesmo na cidade de Barcelona ou nos arredores?
Nasci a 4 de março de 1968, em Barcelona, há 50 anos. Bem no centro. Naquela altura os meus pais, Enrique e Maria Dolores, moravam na Calle San Gullillermo. Mas eu não tenho relação com o meu pai desde os 16, 17 anos. Foi assim até ele morrer.

Os seus pais trabalhavam na restauração?
Nada disso. O meu pai era técnico de vendas numa empresa especializada em maquinaria pesada. A minha mãe era uma mulher maravilhosa que fazia aquilo que sempre a ensinaram a fazer: era dona de casa. Quando teve de começar a trabalhar, no início, custou-lhe muito, essencialmente porque na época dos meus avôs, era normal que a filha mais velha fosse uma espécie de criada que ajudava em casa. Era quem cuidava dos outros irmãos, quem ajudava os pais… A única coisa que ela tinha de fazer era casar-se com um homem e voltar a fazer tudo outra vez. Felizmente aprendeu muito com essa forma limitada de educar as crianças e sempre puxou muito pela minha irmã, deu-lhe uma educação fantástica. Ela [irmã] vive em Nova Iorque, estudou filologia alemã, inglesa, é tradutora. Ela não queria que a filha tivesse de viver o mesmo que ela.

Quantos irmãos tem?
Tenho dois irmãos e uma irmã, somos quatro. Há o Eduardo, o Ignacio e a minha irmã é Cristina. Eu sou o mais velho.

E foi o único que seguiu o ramo da hotelaria e restauração?
Como cozinheiro sim. Um dos meus irmãos é músico — é uma pessoa brilhante, incrível mesmo, é daqueles tipos que não tem inimigos nenhuns, nunca se ouve falar mal dele. O outro está mais ligado à hotelaria e sempre foi muito competitivo, sempre a ver quem era mais “Arola”. Eu nunca liguei muito a isso… Tenho pena porque acho que nos poderíamos dar melhor do que damos agora, mas pronto.

Disse que não tem ligação nenhuma com o seu pai. Como surgiu esse quebrar de relação?
É muito fácil: eu compreendo que em determinado momento da tua vida possas estar apaixonado por uma mulher mas que depois esse sentimento desapareça. Isso é humano, já me divorciei duas vezes, não sou ninguém para criticar, mas há uma coisa que se chama “filhos” e eles são uma responsabilidade repartida, não apenas da mãe. O meu pai não agiu corretamente com a minha mãe nesse tema. Consumiu-a — e ela não tinha nenhuma fonte de rendimento. Não vais encontrar ninguém mais a favor do divórcio do que eu, mas não é por estares separado que os teus filhos deixam de ser teus filhos. É preciso ajudar, dar dinheiro para a educação, recursos para a vida diária, tens de encontrar uma saída, sempre. Não é um assunto que passamos a outros e já está.

"Não vais encontrar ninguém mais a favor do divórcio do que eu, mas não é por estares separado que os teus filhos deixam de ser teus filhos. É preciso ajudar, dar dinheiro para a educação, recursos para a vida diária, tens de encontrar uma saída, sempre. Não é um assunto que passamos a outros e já está"

Então os seus pais divorciaram-se?
Separaram-se, só. Naquela época não se faziam divórcios e muito menos havia os instrumentos legais que te obrigavam a ajudar. A minha mãe era muito orgulhosa, uma pessoa linda, e recusou mendigar ou pedir-lhe o que quer que fosse. No final acho que o tempo acaba por pôr toda a gente no sítio correto. Logicamente que a empatia pelo meu pai foi algo que desapareceu e nunca mais recuperei. Os meus irmãos mantiveram algum contacto com ele, mas eu não. Quando comecei a destacar-me mais e a ser mais reconhecido, ele tentou retomar a relação, mas não tinha nada dentro de mim que me fizesse querer dar-lhe uma chance.

[Sergi Arola, à esquerda, a tocar num espetáculo de reunião de uma das suas bandas, os Los Canguros]

Tanto a cozinha, obviamente, como a música, tiveram papéis muito importantes na sua vida. Qual dessas paixões surgiu primeiro? 
Acho que as duas coisas surgiram quase ao mesmo tempo, são indissociáveis. A minha formação musical vem da minha mãe e dos meus avós maternos. A minha avó materna tocava piano, dava concertos e tudo! O meu avô tocava violoncelo e banjo… era um fanático por música. Já a minha mãe tocava piano — foi por causa dela que, desde muito pequeno, ainda bebé, comecei a ouvir as peças de Chopin, Beethoven, Debussy ou Rachmaninov que ela costumava tocar. Quando ouves, desde miúdo, pessoas a tocar ao pé de ti, não estamos a falar de música enlatada, estás a ver a tua avó a tocar, por exemplo, isso cria um vínculo musical muito grande. Com a cozinha, a ligação é diferente. Ela surge porque eu não gostava nada de comer. Era o típico miúdo conflituoso na hora das refeições e foi precisamente por causa disso que decidi, a certa altura, começar a cozinhar a minha própria comida. Tinha a sorte de passar muito tempo com o meu avô e ele, como sempre foi um bom garfo e tinha visitado alguns dos melhores restaurantes do mundo, quando era mais novo, começou a corrigir e a picar-me para ir cozinhando melhor. De uma maneira absolutamente natural, nada forçada, comecei a interessar-me por este mundo.

"Era o típico miúdo conflituoso na hora das refeições e foi precisamente por causa disso que decidi, a certa altura, começar a cozinhar a minha própria comida. Tinha a sorte de passar muito tempo com o meu avô e ele, como sempre foi um bom garfo e tinha visitado alguns dos melhores restaurantes do mundo, quando era mais novo, começou a corrigir e a picar-me para ir cozinhando melhor"

Lembra-se do primeiro prato que fez?
Se não estou enganado, acho que foi “guisantes a la francesa” [uma espécie de salada de ervilhas com presunto, cebola e alface]. Mas devo ter feito com uma receita muito diferente, acho que lhe tirei tudo o que não gostava nessa altura, a cebola, a alface… Basicamente devia ser bacon com manteiga e ervilhas [risos].

E quando é que começou a ter mais interesse na música?
Foi no liceu, creio. Acho que foi bastante normal… Não sou um músico excecional, sou muito standard (a puxar para baixo). Cheguei ao liceu vindo de um colégio privado e isso foi um choque para mim. De uma assentada percebi que não tinha muito jeito para o desporto, nem no futebol nem no basquetebol (se bem que mais à frente fiz um pouco de Taekwondo), os dois desportos mais populares nessa altura da vida. Não era especialmente atraente para as raparigas, não tinha nenhuma característica especial ou talento, por isso decidi, juntamente com o meu grupo de amigos, os “miúdos estranhos” da escola, vestir-me à anos 60, ouvir música dessa altura e finalmente acabei por decidir que queria tocar baixo como o Sting. A partir daí comecei a perceber que tocar baixo num grupo (também me metia com a guitarra) era um atrativo ótimo. Daqui a começar a escrever as minhas próprias músicas foi um instante.

"Escrevia sobre coisas do meu dia-a-dia e isso funcionou como catarse, muito importante. Um momento de reflexão que me fazia sentir livre, assim de uma assentada. Falava da minha mãe, das raparigas que me deixavam, das minhas frustrações... Isso deu-me uma visão muito distinta da música, acho"

Foi um passo importante, seguramente…
Compor deu-me uma visão diferente daquela que tinha em formato de banda. Como guitarrista era fraco, mas escrevia canções de que gostava muito e os outros também pareciam gostar. Escrevia sobre coisas do meu dia-a-dia e isso funcionou como catarse, muito importante. Um momento de reflexão que me fazia sentir livre, assim de uma assentada. Falava da minha mãe, das raparigas que me deixavam, das minhas frustrações… Isso deu-me uma visão muito distinta da música, acho. Acontece que em casa não havia quase dinheiro nenhum e por isso, para que conseguisse continuar a tocar e a ensaiar, precisei de ir trabalhar. A única coisa que sabia fazer (ou achava que sabia) era cozinhar. Como resultado disto entrei na escola de hotelaria — o que até me permitiu ter mais tempo para tocar. Foi a súmula destas circunstâncias que me colocaram nesta posição. Comecei a perceber que, à semelhança da música, que me fazia expressar a minha criatividade como se fosse uma necessidade quase biológica, a cozinha dava-me liberdade. Através da comida também conseguia exprimir-me e deitar para fora tudo aquilo que sentia — e é isso que continuo a fazer até hoje. Ser consciente e capaz de tratar as pessoas como gosto faz com que consiga sentir-me bem comigo mesmo, é uma forma de linguagem, de sentir, de viver as coisas. É por isto que hoje, nesta altura da minha vida, com 50 anos, posso dizer que não há nada no mundo mais bonito do que o meu trabalho.

Voltando um pouco atrás: falava da banda que que tinha com os seus amigos, na adolescência…
Sim, comecei nos Los Interrogantes e depois fui para os Los Canguros. Tinha uns 19, 20 anos quando comecei a tocar, tocámos em toda a Espanha, na França e acho que até tivemos uns concertos em Portugal.

Fazia digressões, então?
Sim sim! Mas não foi fácil ter a banda, por estranho que possa parecer, tivemos vários problemas de politiquices. Cantávamos em espanhol na Catalunha, que era extraordinariamente protecionista… Enfim, foi uma experiência muito bonita e que não renuncio de maneira nenhuma. De vez em quando ainda nos reunimos e tocamos mas honestamente, temos de ter sempre noção daquilo que fazemos bem e fazemos mal ou menos bem. Se eu tocasse guitarra como cozinho, teria uma carreira espetacular…

Lembra-se do seu primeiro concerto?
Perfeitamente, foi numa sala chamada Celeste, um local mítico em Barcelona. Lembro-me que foi um concerto desastroso, o típico espetáculo de miúdos que acaba por ser uma desgraça do caraças. [risos] Mas pronto, quando tocas, estás numa banda e queres tentar ter algum tipo de sucesso, por mais pequeno que seja, tens de te atirar aos lobos.

"Eu não queria trabalhar na cozinha, tinha medo. Era um mundo muito sórdido, achei eu assim que cheguei à escola. Os chefs, naquela época - em Espanha, atenção, nem falo nos franceses -, salvo pouquíssimas exceções, eram horríveis. Tinham imensos vícios"

E o ensino de cozinha, começou aonde?
Na Escola de Hotelaria e Restauração de Barcelona, em 1985. Ela era novinha em folha quando lá cheguei, tinha acabado de abrir e ainda não tinha todos os equipamentos que precisava, o que fazia com que não a levássemos muito a sério. A verdade é que foi dali que saíram cozinheiros como o Albert Raurich, o Carles Abellan… Éramos um grupo de miúdos muito inquietos, talentosos, o que é mais surpreendente se pensarmos que aquilo era uma mescla muito estranha, a maior parte dos alunos eram filhos de donos de restaurantes e hotéis e os outros eram outsiders completos, como eu. Curiosamente, os que chegaram mais longe fomos nós. Tivemos de ir atrás da vida, não tínhamos nada assegurado.

E gostava das aulas?
Não, nada! Mas pronto… Algumas coisas agradavam-me mais, outras nem por isso. Sentia que tudo era muito establishment, muito standard.

"A cozinha, no início, pareceu-me ser um sítio que não era para mim. Sempre tive muito medo dos vícios, o álcool, a droga o tabaco (nunca fumei um cigarro), não era uma questão de querer ser saudável, era mesmo por pavor. A melhor maneira de te protegeres de alguma coisa é não lhe dares o mínimo espaço para que entre na tua vida"

E a sua entrada no mercado de trabalho, como foi?
Curiosamente, foi como empregado de mesa. Não queria trabalhar na cozinha, tinha medo. Era um mundo muito sórdido, achei eu assim que cheguei à escola. Os chefs, naquela época — em Espanha, atenção, nem falo nos franceses –, salvo pouquíssimas exceções, eram horríveis. Tinham imensos vícios. Quando disse ao meu pai que queria ser cozinheiro ele perguntou-me logo se não conseguia lembrar-me de uma outra forma de perder o meu tempo, de desperdiçar os meus talentos. Um cozinheiro era um tipo agarrado a copos cheios de brandy, um viciado em tudo e mais alguma coisa, do jogo às putas, passando pelas drogas também. Tudo isto é verdade, quer queiras quer não. Tinhas acesso fácil a dinheiro vivo todos os dias… A cozinha, no início, pareceu-me ser um sítio que não era para mim. Sempre tive muito medo dos vícios, o álcool, a droga o tabaco (nunca fumei um cigarro), não era uma questão de querer ser saudável, era mesmo por pavor. A melhor maneira de te protegeres de alguma coisa é não lhe dares o mínimo espaço para que entre na tua vida. Não disse “não” por achar que era melhor que os outros, simplesmente não queria nada estar nesse mundo, não me fazia sentir seguro. Este ofício é muito pessoal, marca-te muito porque estás em constante luta interna para te superares. Há muita gente que não se dá conta que a pior coisa para um cozinheiro é a crítica que ele faz ao seu próprio trabalho. A maior parte dos bons cozinheiros que conheço nunca estão contentes com aquilo que fazem, mesmo que o cliente te diga que tudo foi maravilhoso. Há sempre um “mas” interno. Faz-me lembrar a música clássica, de certa forma. Podes estar a ouvir um concerto fantástico mas o maestro vai sempre notar as mais pequenas falhas nesta ou naquela nota. O problema é teres uma ideia tão clara na tua cabeça que depois acabas por não conseguir realizar tal e qual imaginaste. Isso pode ser muito frustrante.

Arola numa apresentação do Madrid Fusion, em 2006. O chef norte-americano Charlie Trotter observa com atenção

AFP/Getty Images

O Sergi teve um amigo próximo que lutou durante muito tempo contra a adição às drogas, não foi?
Tive mais que um, mas houve um caso em particular que me marcou, isto porque a pessoa em questão acabou mesmo por morrer. Logicamente, ao veres uma pessoa muito próxima, um amigo, que até tem tudo aquilo que tu não tens — era alto, bonito, inteligente, muitas namoradas lindas, uma família com dinheiro — mas que deixou que a heroína o levasse a um ponto sem retorno, fazendo com que se suicidasse, só te metias na droga se fosses estúpido. É engraçado que da mesma forma que era muito esquisito com a comida, que não conseguia comer nada que tivesse o mais pequeno pedaço de cebola, por exemplo, também nunca fumei porque dava-me um nojo tremendo ver as pessoas passarem cigarros umas às outras.

Como acabou por conseguir contornar essa aversão?
Aos poucos fui-me dando conta que gostava disto, ainda hoje adoro. O problema é que comecei a sentir que enquanto chefe de sala ou empregado não tinha muitas hipóteses de exprimir a minha criatividade. A juntar a isto há o facto de ser um tipo com um carácter muito forte. Tu enquanto empregado de mesa tens de engolir muitos sapos a lidar com clientes e tinha muita dificuldade em fazer isso. O que aconteceu, eventualmente, é que cheguei a ser expulso de um restaurante por me ter virado a um cliente que se tinha passado da cabeça com uma colega. Comentei este episódio com um professor que tinha tido na escola e ele disse-me: “Arola, eu conheço-te bem, és um empregado esforçado, mas tu não tens qualquer feitio ou savoir faire para exercer essa posição, tu és chef.” O engraçado é que ele disse-me isto numa altura em que tinha acabado de entrar num restaurante como ajudante de cozinha, com um chef belga que estava em Barcelona, Franz Martens. Acabei por começar a cozinhar com ele. Contudo, sempre tive a sorte de ter a música na cabeça e isso fez-me ver a cozinha como uma boa forma de ter tempo (e dinheiro) para poder tocar, estar com a minha banda e gravar. Isto fez com que fosse parar a restaurantes onde só tinha de fazer meio-turno. Fez com que levasse isto com calma, aprendesse mais e com mais tempo, ao contrário de outros colegas de curso que assim que saíram dedicaram-se sofregamente à cozinha. Nessa altura, como havia muita falta de pessoal de cozinha qualificado, ganhava-se muito bem. Para teres uma ideia, eu recebia 35 mil pesetas, dava uma parte à minha mãe e o resto investia na música (instrumentos, aluguer de salas de ensaio, etc..). Colegas que saíram e foram logo para a chefia de cozinha chegavam a ganhar 85, 100 mil pesetas. Era muito dinheiro, conseguias comprar logo, quase, um Volkswagen Golf GTI — como muitos fizeram. Isso não me interessava nada, queria era tocar. A juntar a isto há o facto de, por acaso, ter passado sempre por restaurantes com algum traço de autor.

"Sempre tive a sorte de ter a música na cabeça e isso fez-me ver a cozinha como uma boa forma de ter tempo (e dinheiro) para poder tocar, estar com a minha banda e gravar. Isto fez com que fosse parar a restaurantes onde só tinha de fazer meio-turno. Fez com que levasse isto com calma, aprendesse mais e com mais tempo, ao contrário de outros colegas de curso que assim que saíram dedicaram-se sofregamente à cozinha"

Os seus colegas cozinheiros, nesse tempo, sabiam que também era músico e dava concertos?
Não, nada disso. Não havia Twitter nem Instagram por isso sabia-se muito menos sobre as pessoas. Simplesmente achavam que eu era um maluquinho que se vestia de forma estranha. Não tens noção da forma como as tecnologias vieram mudar tudo. Na primeira entrevista que dei, em 1996, gravaram-na com um magnetofone. Era tudo muito diferente.

[O cozinheiro mantém um projeto na Suíça. Nesta foto de 1999, aparece com a primeira filha, recém-nascida]

A história de como começou a trabalhar com o Ferran Adrià também está ligada a esta “divisão” de horários entre música e cozinha, não está?
Um dia, um amigo que já trabalhava com o Ferran, o Alex Montiel, diz-me que ele estava a precisar de pessoas para um projeto novo que ia abrir abrir na Universidade de Barcelona, o Dim Sum. Aceitei, fui falar com ele, e o próprio disse-me: ‘Tu que não queres ser cozinheiro e gostas é de tocar, porque não vens trabalhar cá e todos os dias, às quatro da tarde, já estás despachado? Até o fim-de-semana tens livre…’ Eu achei incrível, era exatamente o que queria. Acontece que ele me enganou: a condição para entrar nisto era a de que tinha de passar primeiro pelo Talaia Mar, outro restaurante que ele tinha em Barcelona, para uma espécie de estágio. Eu fui e cedo percebi que aquilo era a sério. Em menos de nada pôs-me como chef de partida e pronto, já não sai de lá. Quando comecei a trabalhar com ele já me interessava muito pela comida, ainda tocava, claro, mas cada vez mais me entusiasmava aquele mundo, deixou de ser só um ganha pão. Até criei uma associação, em 1987/88, chamada “Jovens Amantes da Cozinha”, que procurava convidar vários agentes culturais a interagirem com o mundo gastronómico. Basicamente percebi que quando cozinhava (afinal, já estava nisto há mais de 10 anos) as pessoas calavam-se e quando tocava, não. Tinha o sonho remoto de ainda vir a gravar o disco da minha vida e fazer digressões pelo mundo inteiro, mas o Ferran mostrou-me que a cozinha era muito mais do que eu achava, havia a investigação, o criar novas técnicas, imensas coisas. Isso apaixonava-me. Comecei a viver a gastronomia como o Ferran e isso era mágico. Acontece que um dia, o Montiel chateia-se com o Adrià e vai para o Martín Bersategui. Ele disse para ir também, mas nessa altura tinha a minha vida toda em Barcelona, a minha mãe, tudo. Recusei. Acontece que durante muitos meses, muitos mesmo, todos os cozinheiros — do chef de cozinha ao copeiro — recusavam-se a falar comigo. Pensavam que era amigo do Montiel e que tinha ficado lá para estragar o ambiente e o restaurante — o que era um disparate, já que o próprio Alex deixou de falar comigo no dia em que disse que não ia com ele para Lasarte-Oria. Por mau que isto tenha sido, a pressão que sofri durante esse tempo ensinou-me muito e consegui ser mais duro. Percebi não só que as pessoas podem virar-se contra ti por motivos ridículos mas também que tens de criar barreiras para não te deixares afetar por isso. Fez-me valorizar a mim próprio e à solidão. Desde então valorizo muito o estar sozinho.

"É muito difícil equilibrares a tua vida pessoal com o teu trabalho, muito, muito difícil mesmo. Chegas a um ponto em que quem está contigo ou aceita o caminho que escolheste e aquilo que ele traz ou desaparece" 

Sente então que o trabalho na cozinha é muito solitário?
É muito difícil equilibrares a tua vida pessoal com o teu trabalho, muito, muito difícil mesmo. Chegas a um ponto em que quem está contigo ou aceita o caminho que escolheste e aquilo que ele traz ou desaparece. Mesmo assim tive a imensa sorte de que durante 17 anos a minha mulher trabalhou comigo no restaurante. Ao mesmo tempo acho que isso também fez com que a nossa relação acabasse. É muito complicado, muito ingrato. E sim, é super solitário, tens que ter a cabeça muito bem segura. Sei que tenho imensos defeitos, mas acho que sou bastante resistente à solidão. Posso passar semanas e semanas a viajar de um lado para o outro, sem passar por casa, combinando as quatro calças de ganga que tenho com quatro sapatos e oito camisolas. Isso dá-te muita resistência.

Começou no Taller del Mar, como dizia, mas acabou mesmo por ir parar ao elBulli, certo?
Houve um ponto em que o Ferran se apercebeu que este tipo que se manteve a trabalhar, sem falhas, com toda a gente a recusar falar com ele, tinha mais “bolas” que todos os outros. A situação de não quererem falar comigo ganhou contornos tão graves que ninguém me dizia quais eram os pedidos que entravam… tinha de ver o que estava a sair ou a ser preparado para que conseguisse manter o ritmo. Ou seja, o Adrià, que não era tonto nenhum, perguntou-me se não queria dar uma ajuda, à tarde, a preparar o menu do elBulli do ano seguinte. Nessa altura o restaurante ainda não era tão famoso como chegou a ser, mas já tinha duas estrelas. No primeiro ano entrei para o “Taller” e começámos a fazer os pratos para a temporada seguinte. No segundo ano a revista Gault & Millau dá-lhe a chave de ouro [ao Ferran Adrià], a cotação de 19,5 em 20 — foi nesta altura que os franceses começaram a acordar para o que se estava a fazer ali. A chave de ouro, para te recordares, era a maior distinção que se podia dar a um cozinheiro no ativo. No ano depois desse ele mandou-me para o Pierre Gagnaire para fazer um estágio de três meses, em Paris, e foi quando estive lá que deram a terceira estrela ao elBulli — voltei logo para lá. Estive lá mais um ano. Com o Gagnaire apercebi-me ainda melhor de que não lido bem com disciplina imposta por terceiros, eu próprio, com o meu trabalho, sou muito disciplinado — isso fez-me acreditar ainda mais que poderia a vir a ser chef a título próprio.

E como era trabalhar no elBulli?
Era duríssimo, fazíamos dois serviços, a disciplina era férrea. Ao contrário do que pode parecer, o Ferran, que para umas coisas é muito vanguardista, noutras é muito tradicional, velha escola. Realmente há um momento em que me apercebo que havia coisas no funcionamento do restaurante que não queria para a minha vida. Oiço muita gente dizer que para seres um grande chef tens de ser assim e assado… Eu quero ser como sou.

O chef do LAB nos tempos do elBulli, antes de se aventurar a título próprio.

D.R.

Mas de que forma se expressava esse “tradicionalismo” do Ferran Adrià?
Havia uma coisa que me deixava com os nervos em franja: ele entrava de manhã e não dizia ‘bom-dia’ a ninguém. Eu cumprimento toda a gente assim que entro na minha cozinha, interesso-me pelas pessoas, pela sua vida. Podemos ser os melhores cozinheiros do mundo mas não nos podemos esquecer que não deixamos de ser pessoas como todas as outras. Ele é muito boa pessoa, atenção, ele foi a grande inspiração da minha carreira, mas é verdade que há aspetos do meu ofício que não me interessam, com os quais não me revejo. Maneiras de tratar as pessoas…

Nessa altura, então, quando decide sair do elBulli e abrir o seu próprio restaurante, já tinha decido deixar a música totalmente?
Claro. Deixei isso de lado assim que entrei no elBulli. Nessa altura apercebi-me que a criatividade, na cozinha, é um exercício contínuo e que tem um aspeto quase transcendental, que ia além daquilo que estava no prato. Como dizia o Alain Chapel , ‘La cuisine ces’t beaucoup plus que des recette‘. Isso é mesmo verdade: a cozinha é os seus empregados, a sala de refeições, é tudo. Isso fascinava-me e ainda fascina.

Como foi deixar de receber ordens de um chef e passar a ser o Sergi quem mandava?
Simplesmente comecei a por em prática tudo o que já fui dizendo — a minha auto-disciplina. Deixei de sair à noite, deixei de fazer muitas coisas que fazia porque tinha uma equipa a depender de mim. A partir daí começas a entender que tens de viver com os teus erros. A partir daí, aquilo que fazes de mal fica para ti, para carregares contigo. Quando fazes merda, fazes merda e és tu que tens de arcar com as consequências. Não há como voltar atrás…

Mas quando veio para Portugal, passou a ter “um patrão”, o Penha Longa…
Sim, de certo modo tive essa pequena volta atrás, por causa da crise, mas de uma maneira diferente e já com uma bagagem, personalidade e cultura completamente mudada. Não é a mesma coisa trabalhar para uma grande empresa (como faço agora) quando já tens 50 anos, 30 de profissão. Sabes muito bem o que queres fazer, aquilo que gostas e não gostas.

"Havia uma coisa que me deixava com os nervos em franja: ele [Ferran Adrià] entrava de manhã e não dia 'bom-dia' a ninguém. Eu cumprimento toda a gente assim que entro na minha cozinha, interesso-me pelas pessoas, pela sua vida"

Ganhou a primeira estrela Michelin em muito pouco tempo.
Em 97. Inaugurei em outubro desse ano e deram-me a primeira estrela no guia de 98, novembro. Em 2000 decido mudar o restaurante de sitio, o La Broche, e nesse ano dão me uma segunda estrela. Desde então e até 2016, ininterruptamente, mantive as duas estrelas. Quando fechei o restaurante em Espanha, em 2017, ganhei a primeira estrela no LAB. Ou seja, no total, estou no guia Michelin há 20 anos.

As primeiras duas estrelas foram no La Broche, no hotel Miguel Angel, mas o restaurante que fechou em 2017 foi outro…
Sim, é curioso porque por minha causa, o guia Michelin fez uma coisa que nunca tinha feito na sua história. Eu mantive o La Broche aberto até ao anunciar do guia em novembro de 2006, em dezembro fechei-o. A 14 de fevereiro de 2007 abri o Sergi Arola Gastro, na Calle Zurbano, em Madrid, e no guia que foi lançado nesse ano, em novembro, já aparecíamos com este espaço e com as duas estrelas.

Quantos anos têm as suas filhas?
Uma tem quase 19 anos e a outra quase 15. A Carla nasceu em 1999 e a Ginebra em 2004.

A sua vida profissional estava em ebulição nessa altura. Como foi conjugá-la com a parentalidade?
Elas são as únicas coisas a que eu nunca, jamais renunciaria. Era capaz de recusar tudo o que já tive na minha vida mas elas não, nunca. Elas são a única coisa que valem a pena. Tenho alguma dificuldade em tirar sentido das pessoas que não querem ser pais. O meu irmão, por exemplo, não quer, diz que prefere ser um tio espetacular, diz que seria um pai desastroso. Acho que nunca consegues saber se não te colocares nessa posição. Elas dão me razão para lutar, para não baixar os braços. Isso não tem preço.

Mas foi difícil conciliar o seu papel como pai com o de gerir um restaurante?
Sem dúvida, especialmente a partir do momento em que abri o restaurante em Madrid. Nesse momento deixei de ter qualquer rede de segurança, estava por minha conta. Tive de ir buscar dinheiro onde ele estivesse. Isso não permitiu conciliar o meu papel como pai e como empresário, mas, ao mesmo tempo, o facto de precisar de encontrar recursos para estar aberto obrigou-me a apostar na internacionalização, especialmente por causa da crise em Espanha. Tive mesmo de ir buscar coisas lá fora, projetos, dinheiro. Isto permitiu-me conhecer muito mundo. Olhando para trás, não me arrependo nada de ter tomado esta opção.

Foi fácil encontrar esses projetos lá fora?
Sou bastante sério a trabalhar e com os anos fui ficando ainda mais. Acho que é bastante fácil falar comigo, sobretudo se houver a vontade mútua de fazer uma coisa bem. As pessoas percebem isso e tudo fica mais fácil.

[Uma receita do cozinheiro espanhol]

Quando começou a notar ou a pensar que o restaurante de Madrid podia não estar a correr bem?
Não acho que ele tenha deixado de correr bem, simplesmente começou a existir um desgaste muito grande, principalmente nos anos duros da crise. Lembro-me de uma pessoa, um português importante, que nessa altura me disse: “Sergi, isto é muito fácil, nós portugueses não temos grandes problemas, sempre vivemos em crise… Os espanhóis são muito efusivos, nós somos mais tranquilos. Vamos encaixando sempre, vocês não, partem logo tudo.” De certo modo acho que é verdade. Sinto que conheço bem este país, tenho um afeto profundo com ele, é o meu refúgio, e sinto-me em dívida para com ele. Mas é verdade isso que me disseram. Vocês viveram uma crise, certo, mas realmente já vinham de outra. Isto para dizer que em Espanha pode ter tido um impacto mais forte porque não estávamos muito habituados a isso. Pelo tamanho e representação que Espanha tem, a nível de tamanho dentro da Europa, entravam quantidades de dinheiro descomunais.

Mas foi assim tão diferente?…
Quando agora ouvimos estas histórias de corrupção em Espanha, quase que parece normal: durante muito tempo viveu-se como se a festa nunca fosse acabar! Era como se fossemos drogados! Cruzavas-te com pessoas que nem sabias o que faziam mas tinham um Porsche Carrera novinho em folha. Quando decidimos mudar o restaurante de sítio, toda a gente dizia: “Bolas Sergi, tu que trabalhas tantas horas, habilitas-te a não ter nada quando te reformares, não consegues poupar dinheiro nenhum, tens de montar o teu próprio sítio… Isso acaba por se pagar sozinho! Em vez de alugares um espaço, compras, e amanhã, se as tuas filhas não o quiserem, vendem e ainda ganham algum dinheiro.” E eu acreditei nisto tudo. Fui a um banco, com o meu business plan todo perfeitinho — ou achava eu, anos depois voltei a vê-lo e dava para perceber que aquilo estava preso por arames — e ele perguntou-me quanto é que queria. Era tudo mentira. Era mentira até ao ponto em que avaliaram o meu local em 3 milhões de euros, e fez-se a operação. Ao fim de um ano começou a crise e quisemos refinanciar o projeto — porque percebemos que não o íamos conseguir pagar. Fizemos as contas com base nessa avaliação inicial e o mesmo banco … O  mesmo banco… Avalia o nosso sítio em menos de um milhão… Explica-me: como é que o banco, o Banco Popular, através de uma agência que trabalhava com eles, faz-te uma avaliação inicial de 3 milhões e um ano depois, reavalia em pouco menos de um milhão?! O que aconteceu ao dinheiro que faltava?! Alguém o levou! Evidentemente contam-te uma grande história e depois dizem-te que é o problema do mercado, mas bolas… Imagina que era eu a fazer uma coisa assim? Sentavas-te no meu restaurante e dizia-te que o menu era de 100€ mas quando vais pagar afinal já são 400€… Vão-me chamar criminoso. Isto é terrível. Foi o que me aconteceu.

"Evidentemente contam-te uma grande história e depois dizem-te que é o problema do mercado, mas bolas... Imagina que era eu a fazer uma coisa assim? Sentavas-te no meu restaurante e dizia-te que o menu era de 100€ mas quando vais pagar afinal já são 400€... Vão-me chamar criminoso. Isto é terrível. Foi o que me aconteceu"

Foi uma grande frustração…
Evidentemente. O pior foi mesmo ter de fechar o restaurante e ver tudo o que tinha acontecido. Digo com total honestidade: pensava que me fosse acontecer o que aconteceu ao Pierre Gagnaire, que fechou o restaurante dele em St. Etienne, perdeu uma fortuna mas houve alguém que pegou nele e levou-o para Paris. Alguém deu-lhe a mão, criou as ferramentas para que aproveitasse o seu imenso talento e conquistasse o lugar importante que ainda hoje tem. De certa forma, quando me obrigaram a fechar o restaurante (o banco, que recusou renegociar a minha dívida), pensei que alguém fosse surgir e avançar com o dinheiro. Achei mesmo que me fossem oferecer um restaurante num hotel ou algo do género que me permitisse continuar o meu trabalho, a minha cozinha. Mas não, não houve ninguém… [longa pausa] O único que se chegou à frente foi o David Muñoz, que me pôs em contacto com as pessoas do grupo hoteleiro NH, mas eles queriam obrigar-me a alugar um espaço deles e fazer lá um restaurante, precisamente aquilo que nunca conseguiria fazer nessa altura. Isso foi tudo o que recebi… Ninguém me ligou. Só o David, o Joan Roca… Nesse ponto, a solidão que senti em Espanha é indescritível. Graças a Deus e à minha mãe, que desde que morreu olha por mim a partir do céu, um ano antes, quando tive os primeiros problemas com a Hacienda [Fisco] em Espanha, as pessoas do Penha Longa propuseram-me abrir lá um restaurante. Por uma espécie de crença estúpida e ridícula em respeito à honestidade dos chefs e os seus clientes, nunca quis franchisar os meus restaurantes. Não queria fazer cópias porque era sempre o primeiro a dizer que isso não me interessava — se quero comer a comida do Martin [Berasateguí], vou a Lasarte… não vou a Tenerife, ao Abama, ou a Lisboa, percebes? Vou ter com ele a San Sebastián e se não puder não como. Sempre neguei essa vertente de negócio. Por puro acaso, pela primeira vez na minha vida, aceitei fazer isso no Penha Longa. Realmente isso acabou por me salvar a vida. Imagina que não tinha aceite? Tinha ficado sem sítio para cozinhar…

[Sergi e as duas filhas. Carla, (esq.) e Ginebra (dir.)]

Fala do Arola, então. O LAB como nasceu?
Foi um ano antes de fechar o espaço de Madrid. A sequência temporal da Michelin voltou a sorrir para mim. Fecho o espaço em Espanha com duas estrelas e em Novembro dão-me a primeira estrela no LAB. Foi um balão de oxigénio. Tudo isto só fortaleceu o compromisso inquebrável que tenho com este país. Custa-me imaginar como teria sido a minha vida se não tivesse vindo para Portugal.

Numa entrevista antiga, ao jornal ABC, dizia que fazia falta à gastronomia espanhola um “looser”…
Claro que sim… Desde que abri o Sergi Arola Gastro em Madrid criei uma série de amigos e inimigos. Nunca me calei, sempre disse tudo o que achava sobre toda a gente, com o respeito que sinto que as coisas merecem. Ainda no outro dia me criticavam por ter dito, a propósito da morte do Bourdain, que tinha morrido um comunicador, não um chef. O chef que morreu foi o Paul Bocuse e não ouvi muita gente a falar dele quando faleceu. Lembro-me de comentar com uma amigo: ‘Diz-me um prato que esse senhor tenha criado?’. Dá-me muita pena a situação, claro, e o trabalho que fez como speaker ou jornalista tem muito valor. Ninguém lhe tira mérito, agora não lhe chamem é “super-chef”.  Pensa nisto: sou um grande fã do Carl Sagan, mas ele não é o Stephen Hawking… percebes aonde quero chegar?

Agora passa mais tempo em Portugal do que em Madrid, não?
Estou praticamente sempre em Portugal e isso reflete-se no nosso trabalho no LAB, estamos a avançar, a desenvolver-nos mais. Creio que neste momento, estamos mais avançados no LAB do que alguma vez estive no Gastro. Sinto que estou muito mais tranquilo, o restaurante funciona como um relógio suíço. Tenho a sorte enorme de ter ficado com o Vladimir [o seu sub-chef no LAB] depois do Milton [Anes] ter saído. Acho até que o Vladimir, em algumas coisas, até é melhor que o Milton, que é um chavalo fantástico, maravilhoso, ajudou-me imenso, mas o Vladimir dá-me um extra de tranquilidade. O Milton era uma pessoa muito talentosa para a cozinha mas mais complexo enquanto pessoa. O Vladimir é carinhoso, boa pessoa, com um coração enorme — ele é alto mas o coração dele consegue ser ainda maior. Todos eles formam a melhor equipa com que alguma vez podia sonhar. Ainda mais tenho a sorte de estar num sítio mágico, que adoro. Eu apaixonei-me por Sintra na primeira vez que lá fui. Quando chego, depois de estar uns dias fora, sinto ‘uau, cheguei a casa’. Vivo no hotel, que é muito difícil, mas sinto-me em casa na mesma. Acho incrível, quando consegues sentir-te em casa em condições como estas. É sinal que alguma coisa está a correr muito bem.

"Tenho a sorte de estar num sítio mágico, que adoro. Eu apaixonei-me por Sintra na primeira vez que lá fui. Quando chego, depois de estar uns dias fora, sinto 'uau, cheguei a casa'. Vivo no hotel, que é muito difícil, mas sinto-me em casa na mesma. Acho incrível, quando consegues sentir-te em casa em condições como estas. É sinal que alguma coisa está a correr muito bem"

Como é a sua relação com os chefs portugueses?
Até agora, maravilhosa… E olha que venho do complexo mundo da relação entre chefs espanhóis. Acho que trabalham muito bem e tem potencial para fazer muito e muito bem. Creio que há muito ainda por fazer mas que Portugal tem um potencial enorme. Falando com o Pedro [Almeida] do Midori, que é um restaurante maravilhoso, disse-lhe: “Em qualquer país da Ásia a que vá, há um português! Porque não trazemos essa influência para nós? Se há malaguetas na Ásia é por causa dos portugueses, não dos chineses. Se há um monte de produtos e confeções na Ásia é graças aos portugueses… Porque não revertemos isso, porque não trazemos isso para cá?” Pôr o Midori a andar está a ser divertidíssimo. Preferia mil vezes que o Midori ganhasse a primeira estrela este ano do que eu ganhar a segunda. A segunda estrela, para mim, seria um sonho, mas mais que isso, sinto que o Pedro merece. Honestamente! É muito injusto se não lha derem este ano. Ou lhe dão ou tirem uma a um qualquer igual que exista em Espanha. Há lá um restaurante muito parecido que tem duas estrelas!

[Reportagem sobre o encerramento do restaurante que Sergi tinha em Madrid]

Chegamos ao clássico tema da diferença de critérios da Michelin entre Portugal e Espanha…
Isso tem de mudar. O Portugal de hoje não tem absolutamente nada a ver com o de há uns anos, a nível turístico. Muitos chefs estrangeiros estão a chegar a Portugal, acho que seria uma tremenda injustiça se ele viessem, recebessem logo varias estrelas, e os meus colegas e amigos portugueses fossem esquecidos. Parece-me surreal.

Dizia que a sua vida, agora, é bem mais calma do que já foi. O que mudou?
Deixei de viajar tanto, basicamente. Neste momento só “saltito” entre Santander [o chef tem lá um restaurante, também], Madrid e o Penha Longa. Comparado com antigamente, em que ia ao restaurante de Istambul, depois para Abu Dhabi, depois Hong Kong, depois, Madrid, Lisboa, e assim sucessivamente… Atualmente só tenho um compromisso sério, que é com o LAB, e depois outros dois projetos à parte. Um em Verbier, mas só vou lá no Natal, depois há o Penha Longa, claro, o Vi Cool, em Ibiza, e mais nada. Em Madrid fica a minha casa, as minhas filhas e já está.

"Depois disso ter sido publicado, recebi uma chamada de um desses "papas" da gastronomia espanhola que me disse que os cozinheiros sérios não podiam aparecer em revistas de mulheres... Foi literalmente isso que me disse. Curiosamente, a maioria dos que me disseram, desapareceram do mapa precisamente por não aparecerem em publicações destas"

Existe muito a ideia do chef enfant terrible, como Marco Pierre White, por exemplo. Há quem o coloque nesse mesmo patamar. Sente-se um bad boy da cozinha?
Há coisa muito divertidas de dizer. Uma série de casualidades que me aconteceram e condicionaram podem ter criado essa imagem. Copiei o Marco ao usar o avental preto com riscas brancas… Ele era o killer, o maior, nada a ver com o Arzak, por exemplo. Quando vi o Pierre Gagnaire e o Pierre White percebi logo que queria ser como eles! Eles eram rock’n’roll stars! Isso impressionou-me, achei muito fixe. Lembro-me de um episódio, em específico, que deve ter ajudado a criar essa imagem. No Natal de 97, recebi o La Vanguardia porque começava-se a falar-se de que havia um restaurante em Madrid que fazia tudo diferente, que não tinha casas de banho para homens e mulheres, era a mesma para ambos, uma série de coisas. Diziam que eu era um tipo que cozinhava bem mas que tinha um espaço horrível (e é verdade, tivemos de alugar um apartamento no andar de cima para servir de vestiário e de pastelaria, uma loucura). Eles foram lá ver o primeiro La Broche. Lembro-me que chegou o fotógrafo para fazer uns retratos e eu, que não tinha dinheiro nenhum, estava a usar uma jaleca horrível. Ele perguntou se não podia usar uma lavada e disse-lhe que não tinha. Então disse para eu usar a t-shirt preta que tinha por baixo. Tirámos a foto assim, eu de t-shirt preta e com o avental preto com riscas brancas. A partir daí nasceu o mito. Lembro-me quando o artigo saiu recebi uma chamada de um grande cozinheiro espanhol que me disse: “Não podes aparecer assim! Ainda para mais numa publicação tão séria como o La Vanguardia!” [risos]. A verdade é que dois anos depois todos começaram a vestir-se assim. Uns anos depois, uma revista feminina quis fazer uma produção de moda comigo e aceitei. Fui fotografado com uma modelo espanhola lindíssima, vestidos à anos 50. Depois disso ter sido publicado, recebi uma chamada de um desses “papas” da gastronomia espanhola que me disse que os cozinheiros sérios não podiam aparecer em revistas de mulheres… Foi literalmente isso que me disse. Curiosamente, a maioria dos que me disseram, desapareceram do mapa precisamente por não aparecerem em publicações destas.

[Arola e o chef Jose Avillez, num jantar especial realizado na Rússia a propósito do Espanha-Portugal do Mundial de 2018]

Mas muitas vezes esta mesma imagem está associada aos excessos de que já falámos, como o álcool…
Ninguém pode associar-me a isso. Ninguém. Independentemente de tudo o que já me aconteceu, ninguém me pode dizer que sou um escândalo. Ninguém. Ninguém pode dizer que me viu bêbado não sei aonde. Sabe-se da minha vida privada, que estive com a minha ex-mulher, que comecei a sair com a Silvia Fominaya e mais nada. Há uns anos tiraram-me uma foto, a sair de casa, numa altura em que não estava bem, estava a trabalhar a toda a puta hora em Verbier, doía-me o braço, estava dormente, estava sozinho em casa e decidi ir comprar pão. Estava despenteado, com barba por fazer. Por causa dessa foto começaram logo a dizer que estava doente, arruinado e não sei quê. Tirando isso, não dei nenhum motivo para me associarem a excessos. Muito pelo contrário, sempre tentei passar despercebido. Acho que nunca disse nada que me arrependesse e se o disse e senti que tinha de pedir desculpa, fi-lo. Não me incomoda nada pedir desculpa.

Que faz no seu tempo livre?
Essa é fácil: não tenho tempo livre [risos]. Não tenho tempo para muita coisa, nem para tocar guitarra, infelizmente.

Quantas guitarras tem?
Não sei ao certo porque tenho-as espalhadas, mas cheguei a ter 16 ou 17. Em casa, em Sintra, tenho 4. O pouco tempo livre que tenho gasto-o com as minhas filhas, com as pessoas de quem gosto.

Mas tem tempo para ouvir música, não?
Sim, música oiço a toda a hora, desde que acordo até que me deito.

O que gosta mais de ouvir?
Depende. Por exemplo, posso estar a ouvir um rock’n’roll qualquer ou até mesmo hard rock mas depois passar para uma obra clássica. Gosto muito de ouvir música clássica quando viajo. Gosto de Mahler, Beethoven, Schubert, Schumann, Mendel, Haydn…

Tem algum prato favorito?
Tenho vários. O que gosto mais, o melhor que já provei e que tenho sempre na minha cabeça é uma criação do Ferran Adrià, o tutano com caviar. Para mim, é o melhor prato que ele já fez, nunca provei nada que ultrapassasse isso. Isto na minha opinião, claro. Era tutano com puré de couve flor e caviar, uma coisa tão simples… Se fores a ver, na minha cozinha, nunca uso mais de quatro ingredientes por prato. Cinco elementos, no máximo, é equilibrado. A partir dai já começa a ser demais. Para mim, uma boa receita e como uma canção: tens a entrada, a melodia, o refrão e a saída. Se meteres mais qualquer coisa que isto já é demais. Com a cozinha acontece o mesmo. Gosto da simplicidade.

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