São imensas as vezes em que escuto alguém, a propósito seja do que for, a falar d’ “a criança que temos dentro de nós”. Mas essa expressão raramente me comove ou me sensibiliza. De vez em quando, incomoda-me, até. Talvez porque quem a repita a utilize como uma frase batida que transmite muito pouco da ternura da infância.

É claro que podemos sempre perguntar se falarmos da criança que temos dentro de nós foge assim tanto da verdade. Afinal, as memórias da infância nunca se esboroam. Guardamos pessoas, episódios e histórias. Guardamos imagens, aromas e sabores. Guardamos o tom dos olhares. E um comboio de pequenos-nada que nos vêm à memória, sorrateiramente, e nos fazem tropeçar muito mais vezes na infância do que era suposto. Mas “a criança que temos dentro de nós” faz-nos, também, acarinhar as bem-aventuranças do Natal, duma viagem, duma festa ou dum dia intenso e saboroso.

“A criança que temos dentro de nós” talvez só devesse traduzir espanto, luz ou entusiasmo. Capacidade de rir. De brincar. Ou de transformar aquilo que se sente numa história. Mas, muitas vezes, não é só isso que acontece. Parece sugerir empecilhos. Páginas em branco. Ou uma espécie de bolores da alma. O que incomoda em quem fala da criança que há em nós é que se refiram à infância como uma espécie de reserva ecológica cor de rosa. Uma memória, unicamente. Sem lado b. E sem futuro.

Mas temos compromissos, horas, contas e chatices. E temos que cuidar dos pais e dos filhos. Mais da pessoa com quem estamos e de nós. E temos tantos sonhos por realizar que se torna quase supérfluo continuar a sonhar. E tantas nuvens a atropelar-nos o olhar que parecemos zangados e sem capacidade nem sequer para sorrir. Mas, por dentro, somos crianças. Igualzinhos a elas. Sedentos de mimo. Capazes do encantamento. À procura da alegria. E ávidos de pensar à margem dos preconceitos.

Nunca seremos a criança que temos dentro de nós à margem dos nossos “lados b”. Não, isso não é uma fatalidade. É só um exercício de humildade. Assim sejamos capazes de voltar a dizer: “Tenho medo”. “Estou assustado”. “Quero em me ajudes”. Ou: “Preciso de colo”. Uma criança começa onde um olhar que a entende deixa que ela se solte.

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