Um dos slogans dos estudantes revolucionários parisienses de Maio de 68 de era “A imaginação ao poder”. Não seria grande essa imaginação: à mistura com alguns achados ousados e divertidos, muitos dos grafitti eram bastante banais para não dizer estúpidos.

De qualquer modo tinham alguma coerência e sentido ideológico, embora na realidade o que acabaram de conseguir, na época, foi causar uma reacção popular conservadora e reforçar o poder do General De Gaulle.

Vem isto a propósito da vaga de paranóia iconoclasta que percorre os Estados Unidos e chegou a alguns países europeus. O ponto de partida foi, pode dizer-se, “digno, justo e racional”. A morte de George Floyd, um negro americano, detido por ter tentado passar uma nota duvidosa de vinte dólares, e sufocado até à morte pelo seu captor,o polícia Derek Chauvin (right name to the right person) perante a indiferença de outros três agentes, é um motivo de justa indignação.

A reacção das autoridades foi pronta; o culpado da morte foi suspenso da Polícia e preso; os outros três polícias foram também objecto de sanções.

Mas a tradicional questão do racismo na sociedade americana, voltou à superfície: é uma herança trágica, difícil de conviver: a economia colonial do Sul, num tempo em que a escravatura era uma instituição corrente, trouxe para os Estados Unidos, nos porões dos navios negreiros (e muitas vezes vendidos pelos seus próprios chefes ou capturados pelos “slave hunters” no Continente africano, centenas de milhares de seres humanos – homens, mas também mulheres e crianças.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando na Europa, começou a concretizar-se a abolição, a escravatura persistiu nas Américas, ligada a culturas como o café no Brasil e o algodão nos Estados Unidos. Quando os Estados do Sul pretenderam, apelando para a Constituição e os Direitos dos Estados, manter o sistema, e se decidiram depois pela Secessão, Lincoln, combatendo na própria União partidários da escravatura, foi para a Guerra Civil.

Que o Norte venceu por factores que estão analisados pelos historiadores militares, nessa guerra que custou 620 mil baixas militares, ainda hoje mais que a soma de todos os conflitos internacionais em que os Estados Unidos intervieram.

A vitória no terreno do Norte, sob a chefia militar do general Ulysses Grant, que depois viria a ser presidente da República, trouxe a libertação oficial e legal dos negros, mas não a sua emancipação social e política. Também o Sul foi invadido por uma série de aventureiros e oportunistas do Norte, os célebres “Carpetbaggers” que procuraram, no rasto das tropas da ocupação, explorar os vencidos. Eram geralmente do Partido Republicano e alguns misturavam a acção de promoção político-social dos ex-escravos com operações económicas de duvidosa transparência. Este foi o clima da Reconstrução, quando, em defesa clandestina dos brancos se formaram organizações como o Ku-Klux-Klan.

Curiosamente o cinema americano, desde o clássico Birth of a Nation de D. W. Griffith, (1915) passando por E Tudo o Vento Levou e por dezenas de Westerns, mostrou sempre uma certa simpatia por “The Lost Cause”, a causa vencida do Sul, romantizando essa América das mansões coloniais e aristocráticas, e da “douceur de vivre” das famílias de Virgínia e das Carolinas. Foi Quentin Tarantino quem, há poucos anos, com Django Unchained e outas fitas no mesmo sentido quebrou esta linha romantizadora do Sul.O realizador de The Hateful Eight, que não é meigo, comparou mesmo a bandeira da Confederação à Suástica.

Nos anos 50 e 60 as campanhas que culminaram na Lei dos Direitos Civis assinada por Lyndon Johnson, puseram, outra vez oficialmente, fim à segregação. E daí em diante os Presidentes – todos – dos Republicanos, como Nixon ou Reagan, aos Democratas Clinton e Obama, prosseguiram nesta linha integradora. Do lado dos negros americanos também houve duas linhas de luta pela igualdade: uma pacífica, ordeira, religiosa, representada por Martin Luther King; outra violenta, racista, anti-branco, simbolizada por figuras como Malcom X e Angela Davis. O mesmo se verificou, também, entre os brancos.

Voltando à actualidade: na sequência da morte de Floyd surgiram também estas duas linhas: os protestos ordeiros, pacíficos, de luto e contra o que é sentido ainda como uma discriminação para a qual se apontam números como a população carcerária ou os níveis económico-sociais da renda familiar. Já o número de polícias negros cresceu muito nos últimos 50 anos.

Mas logo a seguir surgiu uma minoria violenta de brancos e negros, a vandalizar e apear estátuas, a queimar lojas, a proclamar uma espécie de nova guerra civil. E que além de violenta e revolucionária, parece ser completamente imbecil na escolha de alguns dos seus alvos: porque se se pode ainda entender a sua fúria contra os generais sulistas (que já vinha de trás), como perceber a vandalização dos monumentos a Lincoln, o grande libertador dos negros na Guerra Civil, ou a Grant, que foi o comandante militar que venceu o Sul? E Andrew Jackson, que foi um populista e guerreou os mexicanos? E Colombo, que não foi um mercador de escravos e que cruzou o Atlântico e abriu caminho a uma colonização, sem dúvida com crónicas de violência, mas que destruiu “civilizações” que eram monarquias teocráticas, esclavagistas, que faziam sacrifícios humanos aos seus deuses, ou tribos que praticavam a antropofagia… E porquê perseguir um missionário, canonizado pelo Papa Francisco?

Esta gente é perigosamente lunática, não se sabe se por estupidez, se por puro e maldoso fanatismo. Por estupidez e ignorância, porque não distinguem, politicamente, Lee e Grant, Lincoln e Jefferson Davis, o Padre António Vieira e alguns colonos brutais. Ao olhá-los e ouvi-los, pode admitir-se que sim, têm ar e modos disso. Ou então sabem o que é, e querem deliberadamente destruir a História, “fazer tábua rasa do passado” e construir aquelas utopias supostamente igualitárias em que tudo acabava em massacres e violências piores que os perpetrados pelos anteriores dominadores.

Não sabemos. Mas podemos para já estar seguros que, como em outras circunstâncias históricas, estas propostas de perfeição e absoluto, esta fanática recusa de tudo o que não seja o “politicamente correcto”, vão acabar mal.

Para eles? Para nós?

O pior é que é capaz de ser para todos.