A política europeia alemã tem historicamente duas faces: uma virada para o Ocidente, outra para o Leste. No pós-guerra, no contexto da divisão da Europa e da Alemanha, o Chanceler Konrad Adenauer concebeu e levou a cabo a reorientação da política alemã para Ocidente. Do processo de reconciliação com a França nasceram as instituições europeias nos anos 50 e, nas décadas seguintes, a dinâmica positiva entre a nova Republica Federal Alemã e os Estados europeus consolidou a Westbindung. Durante os primeiros 20 anos, a relação com a Europa Ocidental dominou a política externa alemã, excluindo qualquer contato com o outro lado da Cortina de Ferro.

Nos anos 70, no contexto da détente entre os EUA e a URSS e da transição de poder dos cristãos-democratas para os sociais-democratas em Bona, ressurge a face oriental da política alemã. A Ostpolitik, ou política para o Leste, foi concebida, primeiro, para normalizar as relações com a Alemanha Oriental e os seus vizinhos e, segundo, para através da aproximação a este países, levar à mudança dos regimes comunistas, a “Wandeln durch Annäherung” (mudança através da aproximação). Uma das dimensões mais importantes desta política era normativa, i.e., baseava-se na denúncia das violações dos direitos humanos pelo regime soviético. As tensões com a Westbindung foram muitas, e a França aceitou com dificuldade o reatar das relações de Berlim com a União Soviética e países satélites, incluindo a Alemanha de Leste.

A tensão entre a Westbindung e a Ospolitik permaneceu depois do fim da Guerra Fria, com a Alemanha a promover os alargamentos a Leste da UE e da NATO apesar da relutância francesa. Também a estreita relação de Berlim com Moscovo, materializada na construção do oleoduto Nord Stream, foi uma pedra no sapato da política externa europeia.

No outono de 2020, há algo de novo na política europeia. Nas vésperas do Brexit e das eleições americanas, França e Alemanha parecem estar a alinhar-se face às crises na sua vizinhança. Em Berlim, um conjunto de sinais sugerem que a nova Ostpolitik está a ganhar corpo.

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Primeiro, a tentativa de assassinato do opositor russo Alexei Navalny desvendou uma relação muito desgastada em relação a Putin. Navalny veio para Berlim e, na semana passada, França e Alemanha adotaram sanções contra figuras superiores do Kremlin. E embora Merkel ainda pareça não querer suspender o Nord Stream 2, pela primeira vez recusou-se a excluí-lo. Desta feita, também o presidente Macron esfriou o seu entusiasmo em relação a Moscovo, acabando com a ambiguidade que pontuava a atitude de Paris face a Putin.

A subtil aproximação à Polónia é o segundo sinal. Este mês, em Paris, os Ministros dos Negócios Estrangeiros de França, Alemanha e Polónia retomaram as reuniões há muito interrompidas do Triângulo de Weimar, mostrando um novo esforço de concertação entre os três países sobre as crises da vizinhança.

São tempos turbulentos na vizinhança da Europa

Terceiro, o multiplicar das crises nas ex-repúblicas soviéticas neste outono incluem a emergência de um movimento democrático na Bielorrússia, o conflito no Nagorno-Karabakh e acabam na crise de regime no Quirguistão. A anexação suave que a Rússia se prepara para fazer da Bielorrússia mudará o mapa da Europa, fazendo da fronteira oriental da Polónia a fronteira com a Rússia. A Alemanha tem sido firme ao afirmar não reconhecer a vitória de Lukashenko nas eleições, impôs sanções e apoia abertamente a líder da oposição, Sviatlana Tsikhanouskaia.

Apesar da multiplicação em Berlim de discursos dos ministros dos Negócios Estrangeiros, da ministra da Defesa e dos sinais da Chancelaria nestas últimas semanas, a Alemanha ainda não tem uma estratégia consistente para lidar com a sua vizinhança. Contudo, torna-se evidente que Berlim está a sentir a pressão da responsabilidade para unificar a Europa na resistência contra Putin e Erdogan. E é também claro que, apesar da irritação pontual com o ativismo francês, Berlim percebe que a Alemanha não tem alternativa senão juntar-se a Macron na tentativa de forçar a emergência de uma estratégia europeia. A eventual e hipotética mudança do presidente americano, em novembro, daria fôlego a esta dinâmica. A saída de cena de Merkel, com eleições na CDU adiadas para março de 2021, torna-a mais difícil.

Madalena Meyer Resende (no twitter: @ResendeMeyer) é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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