As investigações judiciais que contribuíram para as quedas de António Costa e de Miguel Albuquerque tiveram uma virtude: PS e PSD descobriram que há um problema com a Justiça. E não é um problema qualquer. Descobriram que a Justiça não gosta da política, nem dos políticos, que isso é terrível para a democracia, que põe em causa o regime e a República. De forma mais ou menos desabrida, agarraram-se à única coisa que têm: tudo é uma grande conspiração, tudo é uma grande cabala; nada é da responsabilidade deles, dos filtros partidários que não existem, de quem se rodeiam ou das escolhas políticas que vão fazendo. E, portanto, para cumprir o nobre propósito de proteger a democracia dos populistas e dos radicais, importa agora – agora sim – refletir, ponderar, meditar, discutir e reformar a Justiça.
Dizendo o óbvio: sim, há um problema com a Justiça. Um país que se leve a sério não pode ter um antigo primeiro-ministro há dez anos à espera de saber se vai ou não a julgamento. Para lá de tudo o que se possa pensar sobre a conduta ética e política de José Sócrates – e não faltam elementos para o condenar –, já era tempo de haver um desfecho. Uma catarse coletiva que nos poupasse a todos às aparições de José Sócrates na televisão e nos jornais a defender o indefensável, a encher-nos de vergonha alheia, a lembrar a falência geral das nossas instituições. Merecemos todos – e merece o próprio – um julgamento justo, que permita virar a página. Seguir em frente.
Um país que se leve a sério não pode andar de suspeita em suspeita, a derrubar autarcas, ministros e governos, a acabar com carreiras, a animar julgamentos sumários na opinião pública, a alimentar fugas seletivas de informação, a viver do espetáculo mediático, para depois, tantas vezes – demasiadas vezes – parir um rato. Um país que se leve a sério não pode ter um presidente do Supremo Tribunal de Justiça (!) a dizer nos jornais que a “corrupção está instalada” sem apresentar provas, nomes, casos concretos. Não pode ter uma Procuradora-Geral da República que se recusa a prestar contas e que depois aparece em público a denunciar ataques que visam “menorizar, descredibilizar ou destruir” o Ministério Público. Ataques de quem? Com que objetivo? Responde-se a uma tese da cabala com outra tese da cabala e temos um Ministério Público que julga que não pode ser escrutinado, nem prestar contas, porque qualquer escrutínio é um ataque à independência, esquecendo-se de uma regra elementar em democracia: ninguém está acima do escrutínio, nem mesmo o Ministério Público.
Mas os dois principais partidos – os únicos que tiveram verdadeiras responsabilidades políticas nos 50 anos de democracia – nunca quiseram fazer nada de relevante para mudar o estado de coisas. Nem querem. Preferem sempre a tese da cabala. O alvo é laranja? O PS exige consequências políticas, o PSD queixa-se de perseguição. O alvo é rosa? O PSD exige consequências políticas, o PS queixa-se de perseguição. António Costa disse-o, com todas as letras. “Podem-me ter derrubado, mas não me derrotaram.” Quem o derrubou? Vítor Escária, o homem que escolheu para chefe de gabinete e que guardou 75 mil euros em dinheiro vivo na residência oficial do primeiro-ministro? Não, provavelmente foi o Ministério Público, a direita ou o Presidente da República.
Luís Montenegro, justiça lhe seja feita, ainda não deu esse passo para justificar o que aconteceu na Madeira. Mas qualquer destacado dirigente social-democrata com quem se fale por estes dias acredita piamente que o que está acontecer com Miguel Albuquerque obedece a uma lógica de compensação pelo que aconteceu no continente. Olho por olho, dente por dente, ora cai o PS, ora cai o PSD, como se fosse uma regra não escrita com que todos têm de aprender a jogar.
PS e PSD estão paralisados. Porque não se deve “legislar a quente”, porque à “Justiça o que é da Justiça”, porque (e este é um argumento novo) não se deve reformar a Justiça em maioria absoluta. Só que agora, com o país do avesso, sem governos na Madeira e no continente, com Marcelo Rebelo de Sousa pressionado pela investigação no “Caso das Gémeas”, agora sim, vai-se defendendo que é preciso reformar a Justiça porque isto a continuar assim ainda acaba tudo nas mãos de André Ventura.
Mas reformar a Justiça não deve servir para tentar “pôr na ordem” o Ministério Público, nem para salvar a democracia do Chega. Reformar a Justiça deve servir para ter uma Justiça mais justa, mais rápida, mais competente. Reformar a Justiça deve servir para reforçar decisivamente os meios de investigação, apostar em mais e melhores recursos materiais e humanos, melhorar de uma vez por todas a legislação anacrónica e a forma como é aplicada e interpretada. E sim, reformar a Justiça, é criar mecanismos sérios de prestação de contas para quem a aplica. Mas não se faz uma coisa sem a outra. Se possível, e se não for pedir muito, reformar a Justiça é garantir que os julgamentos têm um início, um meio e um fim em tempo decente.
Paralelamente, os dois partidos têm de olhar para dentro de casa e ter finalmente a coragem de perceber que há qualquer coisa errada quando continuam a ser frequentados por gente muito pouco recomendável, promovida até ao topo da cadeia alimentar sem que ninguém solte um “ai”. Se não o fizerem, PS e PSD bem se podem queixar das cabalas e de todas as conspirações do mundo. Bem podem lamentar e denunciar quem aproveita estes casos para dizer que os políticos são todos iguais. Não são. Mas se PS e PSD não fizerem nada, nem mesmo depois disto, já ninguém vai acreditar no que dizem.