1 Falar da história do século XX com os mais jovens pode ser um grande desafio. Se, por um lado, pode ser gratificante explicar como Portugal evoluiu de um país rural para um país europeu, também pode ser um momento particularmente frustrante explicar as causas e as consequências das duas ideologias que marcaram a vida da Europa de 1900 a 1991: o comunismo e o fascismo. Particularmente se pensarmos, como eu penso, que aquelas ideologias totalitárias tiveram os mesmos resultados: guerra, ditadura, discriminação e fome.

E pode ser frustrante porque persiste a ideia junto dos mais jovens (e não só) de que o marxismo tem uma ideia bondosa: a sociedade perfeita em que os meios de produção pertenceriam ao Estado e o estágio final coincidiria com a abolição do dinheiro como moeda de troca ou remuneração. Logo, e do ponto de vista meramente teórico, o marxismo terá uma diferenciação de tentar alcançar a felicidade eterna dos povos, a tal utopia, que seria a marca estrutural da nova sociedade que o comunismo criaria.

A ideia de que o marxismo faz sentido teoricamente, tendo sido desvirtuado pelo leninismo, estalinismo, maoismo ou trotskismo (só para identificar as principais correntes), é uma terrível falácia que importa desmontar.

Vou concentrar-me apenas numa das várias ideias centrais do marxismo: o controlo dos meios de produção.

Como Adam Smith ensinou, um homem, para progredir, necessita de ser dono de algo — de um pedaço de terra, de uma casa, de um carro (ainda não existiam no tempo de Smith mas vieram a ser a melhor prova das suas teorias), etc.

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Porque o desejo de ser proprietário implica ambição, implica sagacidade, implica capacidade para construir os meios próprios (financeiros e não só) que permitam a aquisição de algo. É por isso que a própria meta de ser dono (ou de ter acesso a algo) é um elevador social em si mesmo — e uma autêntica mola no progresso económico, social e tecnológico do mundo em geral.

Por outro lado, a abundância que caracteriza o capitalismo acaba por ser um fator de equilíbrio não só no acesso à propriedade, como também na redistribuição da própria riqueza.

O comunismo, pelo contrário, praticava a economia planificada para controlar a produção (daí a necessidade de se apropriar dos meios de produção) mas em vez de controlar a abundância, fazia com que tudo faltasse a todos — com a (pouca) honrosa exceção da nomenklatura do partido, claro.

Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, que explica como o marxismo vai contra a natureza do homem. Não é por acaso que Marx queria construir um homem novo — a definição primária do totalitarismo — porque o homem que existia (e que sempre existiu e existirá) não se adaptava às suas ideias.

2 Há um segundo mito urbano que volta a valorizar o marxismo: ao contrário do fascismo (e aqui o nazismo é o melhor exemplo), o comunismo não defende o racismo ou a xenofobia e não pratica o culto da violência.

A este propósito vale a pena relembrar Vassili Grossman, um dos maiores escritores russos, autor d’ “A Vida e Destino” — uma obra prima que, como aconselha a resolução do Parlamento Europeu aprovada em 2019, devia fazer parte do currículo do ensino secundário português porque não só denuncia os crimes do nazismo, como também do comunismo.

O escritor era judeu e nasceu em 1905 em Berdichev, uma cidade ucraniana que tinha das maiores populações judias da Europa Central e de Leste. Recebeu o nome de Iosif quando nasceu mas depressa os seus pais russificaram o seu nome para Vassili com receio das perseguições e dos pogrom.

Grossman era um fervoroso comunista mas, apesar de já estar a viver em Moscovo desde 1923, soube através da sua família da Grande Fome que atravessou a Ucrânia entre 1932 e 1933 — período em que Estaline não só ordenou uma fortíssima repressão dos nacionalistas locais, como determinou a coletivização forçada das grandes propriedades da Ucrânia e retirou-lhes as colheitas.

Segundo vários historiadores, a Grande Fome terá vitimizado cerca de sete milhões ucranianos. O terror foi de tal forma desumano que a canibalização virou prática comum. O último livro de Grossman, intitulado em inglês “Everything Flows” (“Tudo Flui”), retrata precisamente esse período, sendo que uma das personagens é executada pelas autoridades soviéticas por ter comido o próprio filho.

Vassili Grossman assistiu a várias purgas (nome que era dado à denúncia em massa de alegados “inimigos do povo” e respetiva execução sumária) depois de Estaline chegar ao poder — salvando-se por milagre de algumas delas, nomeadamente quando a sua segunda mulher foi presa.

Com o início da II Guerra Mundial, Grossman foi repórter de guerra no jornal oficial do Exército Vermelho, tendo estado na linha da frente de algumas das principais batalhas, com a de Estalinegrado e a de Berlim. Dizia-se que Estaline, que aprovava todos os textos do jornal que levantava a moral das tropas, era o seu maior leitor.

Os seus cadernos de apontamentos, escritos à escondidas depois de horas a falar com soldados e com a população por onde o Exército Vermelho passava, são um dos mais rigorosos documentos da II Guerra Mundial. Estão depositados no Arquivo Estatal da Rússia de Literatura e Artes e deram origem ao livro “Um Escrito em Guerra” do prestigiado historiador Antony Beevor — um dos maiores especialistas na II Guerra Mundial.

Foi esta passagem pela linha da frente que lhe permitiu observar os crimes dos nazis por todo o Leste europeu — que mataram a própria mãe de Grossman na cidade natal de Berdichev — mas também constatar os crimes do Exército Vermelho de violação em massa das mulheres alemãs na caminhada até Berlim.

“Vida e Destino” constata precisamente que as diferenças entre nazismo e o comunismo são nulas. Se Hitler criou campos de concentração para tentar exterminar os judeus e tinha o racismo e a xenofobia como política de Estado, Estaline criou o Gulag e perseguiu judeus, ciganos, homossexuais e todo e qualquer homem e mulher que pensasse de forma diferente da sua. Se Hitler queria construir uma raça pura, Estaline queria um operário puro — o homem novo do marxismo.

Há um diálogo no “Vida e Destino” entre um oficial da Gestapo (polícia política nazi) e um prisioneiro comunista que diz tudo:

(…) Para o socialismo num único país é preciso liquidar a liberdade camponesa de semear e vender, e Estaline não hesitou: exterminou milhões de camponeses. O nosso Hitler viu que há um grande obstáculo para o movimento alemão nacional e socialista: o judaísmo. E resolveu exterminar milhões de judeus.”

Acima de tudo, a obra prima de Grossman retrata como centenas de milhões de pessoas aceitaram ser submissas, delatar os seus concidadãos e ficarem em silêncio perante o Grande Terror na União Soviética — e, por arrasto, em todos os países do Pacto de Varsóvia. Como os alemães durante o nazismo.

E sabe o caro leitor o que aconteceu a “Vida e Destino”? Entregue por Vassili Grossman ao seu editor em 1961, tempo em que governava Nikita Khrushchov (que rompeu com o estalinismo), todas as cópias foram imediatamente apreendidas pelos serviços secretos e até a fita da máquina de escrever ficou nas mãos do KGB. Grossman morreu em 1964 e só em 1980 é que o manuscrito apareceu na Suíça pela mão do físico André Sakharov, outro dissidente comunista, tendo sido publicado pouco depois. Em 1988 foi publicado na Rússia por via da glasnost (“transparência”) de Mikail Gorbatchov.

3

O apoio cego, seguidista e incrivelmente submisso que o PCP sempre deu ao seu partido-pai Partido Comunista da União Soviética (e aos inúmeros crimes praticados pelos soviéticos) foi algo que mereceu uma nota de rodapé (ou nem isso) nos trabalhos da comunicação social sobre os 100 anos do PCP.

Não me espanta, aliás, que personagens como Daniel Oliveira vejam a bandeira do PCP como um símbolo da “liberdade” e resumam os crimes do comunismo a 63 caracteres: “Noutros países significava o oposto — a opressão e a situação.” E o que significa esta “opressão”? Oliveira não explica porque para ele, um suposto e auto-retratado social-democrata que é o filho típico do comunismo, o apoio explícito do PCP às ditaduras que vergastaram centenas de milhões de russos, ucranianos, letões, lituanos, estónios, polacos, checoeslovacos, húngaros, búlgaros, romenos, moldavos, azeris e tantos outros povos é um pormenor.

E porque razão é um pormenor? Porque existe a peregrina ideia (mais uma utopia, que isto é malta muito sonhadora) de que o PCP, esse partido tão bonzinho, nunca faria o mesmo que o PCUS fez na União Soviética ou que os restantes partidos-irmãos gémeos fizeram em todo o leste europeu. Imaginem: o PCP, que sempre foi o partido mais estalinista de todos os partidos comunistas europeus, incapaz mesmo de fazer uma crítica à patria-mãe chamada URSS, esse partido submisso e financeiramente dependente dos soviéticos, nunca (mas nunca, claro!) implementaria uma ditadura em Portugal.

Já viram o paradoxo? Os camaradas, que se dizem ser tão internacionalistas com o foco no bem estar dos diferentes povos, têm uma visão bastante egoísta sobre os crimes do comunismo: como não aconteceram em Portugal, pouco importa o que se passou no Leste Europeu.

4 E perguntar-me-ão: “porque é que este chato está a escrever pela segunda semana consecutiva sobre o comunismo — uma coisa a que já ninguém liga?” Porque as bandeiras vermelhas do PCP que invadiram na semana passada Lisboa, Porto e as principais cidades portuguesas foram uma tentativa de manifestação de poder de um partido que sempre foi confrangedoramente e claramente minoritário. Mas que sempre teve uma influência desproporcional (face aos votos que tem nas eleições) na agenda política e social do país por via da sua influência sindical.

O mesmo se aplica ao Bloco de Esquerda que usa mais a comunicação social do que a rua para exponenciar a sua influência eleitoral real.

Esta influência do PCP e do Bloco — que, repete-se, nunca teve origem na votação eleitoral de cada um do partido, mas sim de ocuparem a rua e os media — é o grande obstáculo à construção de um novo modelo económico. Porquê? Porque o PCP e o Bloco são os grandes defensores do status quo na função pública e, por isso, fervorosos opositores a uma reconfiguração e redimensionamento do Estado que, por via da descida da despesa, possa levar a um alívio fiscal da classe média portuguesa asfixiada pelos impostos. Ou a uma reforma da Segurança Social que a salve da falência inevitável.

Por outro lado, e apesar da reduzida influência dos sindicatos da CGTP no setor privado, comunistas e bloquistas são igualmente os que batem o pé a uma flexibilização da legislação laboral — uma questão essencial para o país captar investimento direto estrangeiro.

É por tudo isto que é fundamental combater o PCP e o Bloco no campo das ideias, fazendo exatamente o mesmo que é feito com grande intensidade (e bem) com o Chega.

Portugal só se reformará e dará vários passos em frente quando tivermos um centro-direita e um centro-esquerda reforçado e eleitoralmente forte. Duas visões do centro político que consigam dialogar e que consigam encontrar um denominador mínimo comum que permita fazer o país avançar.

E para tal, é preciso enfraquecer eleitoralmente os extremos. Sejam eles vermelhos, sejam eles de outra cor.