1 Os novos tratamentos. Tem surgido um manancial de informações sobre possíveis tratamentos para a Covid-19. Uns tratam o vírus, outros a fisiopatologia da doença, outros as complicações. Até agora, dada a escassez de tempo e na impossibilidade de inventar novas moléculas (o que está a ser feito), vão repescar coisas cuja investigação tinha parado, medicamentos antigos entretanto abandonados ou medicamentos aprovados para outras indicações. É sempre assim. O que se recomenda é muita calma no que se escreve sobre estas “esperanças” que, como acontece muitas vezes na farmacoterapia, mais tarde se demonstram ineficazes ou até demasiado tóxicas. Acresce que a larga maioria das fontes das notícias são observações precoces e artigos ainda por publicar que ainda nem foram alvo de revisão por pares. O tratamento virá, a vacina também, mas convirá que não se perca o sentido da responsabilidade, da informação aos doentes e da procura do consentimento esclarecido, antes de prosseguir com experimentação ad hoc. Os ensaios estão a correr. Aguardemos pelas respostas consistentes e verificáveis. Na falta de soluções não é lícito supor que tudo possa ser válido. Parece uma eternidade, mas esta epidemia ainda não tem mais de seis meses.

Este tempo curto, curtíssimo para o desenvolvimento de um medicamento, seja ele um fármaco anti-viral ou uma vacina, implica que as medidas de prevenção não farmacológica da infecção por vírus se devam manter com a mesma acutilância. Por exemplo, as medidas de protecção individual como a “etiqueta” respiratória, o uso de máscara e o cuidado na higiene das mãos serão também, sempre foram, essenciais na próxima estação invernal. Igualmente, a campanha de cobertura vacinal anti-gripe não poderá ser descurada e, em boa verdade, deveria ser obrigatória para todos os grupos com maior risco, em especial para os profissionais vitais e para os maiores de 65 anos. Um dos aspetos que não pode ser descurado é a propensão dos coronavírus se associarem a outros vírus respiratórios, não só o influenza, pelo que só isso nos faz adivinhar um inverno de 2020-2021 ainda com muitas dificuldades.

Como tem sido repetido pelas autoridades de saúde e o governo, não é expectável que haja a possibilidade de iniciar a vacinação contra o SARS-CoV-2 antes da segunda metade de 2021. Mesmo que haja a possibilidade de licenciar mais cedo uma ou mais vacinas, restará o problema da sua produção na ordem das centenas de milhões de unidades e, mesmo que se limite a primeira vaga de imunizações a profissionais de saúde, de segurança, militares, bombeiros, outros serviços essenciais e pessoas com mais de 65 anos, será sempre uma tarefa hercúlea e muito dispendiosa.

2 O futuro do SNS. O momento que se vive, sem que ninguém questione as determinações do governo, como se não existissem opções que merecessem consideração, é muito perigoso. É particularmente perigoso para a sobrevivência a médio prazo do estado solidário e, muito em particular, do serviço nacional de saúde. O conformismo instalou-se da pior forma, induzido pelo medo, o mesmo medo que sustenta ditaduras e inibe a razão. O medo que está a servir quem governa e será o argumento que sustentará o acriticismo com que os Portugueses se preparam para aceitar a progressiva e inexorável perda de qualidade do serviço nacional de saúde e a garantia do direito à proteção da saúde.

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Sim, pelo que temos visto, depois da pandemia acho que vai ficar tudo pior. Pior, porque “ficar tudo na mesma”, fazer como “sempre foi feito”, “como era dantes”, é sempre determinar um futuro pior para o SNS. Precisamos equipar o SNS de meios de telecomunicações (falar ao telefone com os doentes não é toda a telemedicina), de melhor estrutura informática, avançar com o processo clínico nacional único, melhorar o registo e análise de dados, melhorar os edifícios, prover hotelaria condigna e adequada a cuidados de saúde modernos em todo o SNS. É altura de eliminar os verdadeiros desperdícios e pontos de estrangulamento na cadeia de cuidados.  É tempo de aceitar que o caminho passará pela garantia da capacidade de resposta em cada momento e à dimensão das necessidades, ainda que com uma reserva para expansão (estrutural e humana). Finalmente, há que reconhecer que a progressiva deterioração das condições de trabalho e incapacidade de realização pessoal levaram à perda sistemática de trabalhadores do SNS, os que agora se demonstraram imprescindíveis. Nada está a ser feito, para lá de atender ao imediato, e já percebemos que depois da pandemia o argumento será o do costume…”não há dinheiro”.

Num pequeno artigo, no The Lancet de 18 de abril, Richard Horton deixa-nos dois pontos para reflexão. Não poderemos aceitar o argumento da falta de dinheiro para a saúde. O trade off entre saúde e economia é inaceitável. Faltou a saúde e vejam o que aconteceu à economia. O investimento na sequência da saída desta crise deve ser em apoios sociais, fortalecimento do sistema de saúde e, finalmente, na preparação de respostas e aumento da segurança dos sistemas. Menos do que isto, será nada.

3 O fim do confinamento. Como este artigo nos lembra há uma diferença entre o imediato e o tardio, entre a morte que se vê logo e o dado estatístico, as mortes que não vemos. Não aceitamos as mortes pela Covid-19 com a mesma benevolência com que a sociedade se conforma com um cancro. Pode morrer-se de velhice, mas não com a Covid-19. No momento de pânico que se vivia, concordo que era inevitável, em Portugal, aplicar medidas de confinamento, mais do que de afastamento social. O ponto em que estávamos não permitia outra atitude imediata. Estou certo de que se salvaram vidas, não sabemos quantas, mas isso é sempre o objetivo principal da medicina que me ensinaram e pratico.

Aqui chegados estamos num novo ponto de escolhas difíceis.

Por um lado, as perdas económicas e sociais poderão, na sequência do encerramento quase completo da atividade económica em Portugal, ter sido mais graves do que o número potencial de vidas salvas. Além de haver o eterno problema de que dívidas presentes são impostos futuros, existe a verdade da saúde pública de que umas, ainda que poucas, vidas prolongadas hoje podem ser milhares de mortes amanhã.

Mas, do outro lado da moeda, interromper precocemente um conjunto de medidas de saúde pública poderá comprometer o resultado das mesmas. Depois de tanto medo instalado, de tanto custo já assumido, a retoma da normalidade, apesar de imprescindível e urgente, não pode comprometer os ganhos obtidos, mesmo que menores do que nos querem fazer crer.

Há medicamentos que não podem ser prescritos no SNS porque o valor de cada ano de vida com qualidade ganho, usando esses fármacos, é considerado excessivo ou incomportável. O governo, com todo o direito e responsabilidade que lhe assiste, considera que gastar mais do que um determinado valor para assegurar mais uns anos de vida a determinados doentes é excessivo e pode comprometer toda a sustentabilidade do serviço nacional de saúde e das finanças públicas.. Ora, tendo em consideração todos os fatores epidemiológicos e económicos envolvidos, sabendo que o custo das medidas tomadas se mede em muitos milhares de milhões de euros, para a todo o País, qual é o valor de QALY de cada vida salva da Covid-19? Ou, dito de outra forma, qual o impacto a longo termo, na saúde de todos os Portugueses, da forma como o governo lidou com esta epidemia e como compara com outras alternativas, tais como ter equipado o SNS mais cedo, assegurado máscaras e desinfetantes para todos, ter construído e remodelado hospitais em falta, ter garantido staff suficiente antes do estado de emergência e ter sido mais consequente nos testes e quarentenas iniciais? E, obviamente, no fim da epidemia, interessará comparar o valor de cada vida salva nos países que fizeram confinamento quase total, com o de outros sem confinamento populacional em larga escala.

O dilema é difícil, mas tem de ser resolvido. Vamos ter de nos conformar com a existência de mortalidade e decidir quanto de risco estamos dispostos a aceitar. Sustentámos o primeiro embate e não me parece que haja mais tempo para preparar o segundo, sem que Portugal volte a viver.