O autor e advogado João Taborda da Gama escreveu, há uns dois anos, que “a coragem salvífica de perseverar na moderação é, no fundo, a única forma de cumprir qualquer revolução”. Na política americana, foi a isso que assistimos esta terça-feira. O Partido Democrata, defensor de uma mudança nacional e necessitado de um mudança sua, escolheu perseverar na moderação para concretizar essas mudanças. O rosto dessa moderação foi Joe Biden, cuja biografia é, verdadeiramente, uma saga de perseverança. Um miúdo gago que se via – mas não se ouvia – a fazer política, um marido que enviuvou e perdeu uma filha aos 30, um pai que viu outro filho morrer ainda jovem, cujos excessos de ternura física se encontram visivelmente deslocados da época em que vive, cuja genuinidade como feitio é um imparável motor de gaffes.

Mas não é apenas na personalidade que Biden parece saído de outra década. Como senador, foi um promotor de consensos e não deixou de lembrá-los no tempo da polarização. Com Joe Biden, é impossível separar a figura política da história pessoal, da perda. É um homem que transformou cada momento de tragédia em força de fé ou, como escrevia Gama, em coragem salvífica. E é o mesmo homem cuja campanha resvalava há semanas para a irrelevância, com escassas doações, pouca gente em Estados essenciais para as primárias, sem a juventude e a novidade de Buttigieg nem o movimento e a organização de Sanders. Como sempre, a adversidade motivou a superação. Nesta eleição, ambas andaram mais uma vez de mão dada com Biden. O que aconteceu, entretanto? Uma tremenda vitória na Carolina do Sul, alguns erros alheios e bastante pragmatismo partidário.

O pragmatismo viu-se na véspera. Com o crescendo de Sanders e as dificuldades iniciais de Biden, o Partido Democrata formou uma coligação de moderados em torno do ex-vice-presidente de Obama. Amy Kloubuchar e Pete Buttigieg, protagonistas de boas campanhas e debates televisivos, desistiram um dia antes da votação, declarando-lhe apoio. O triunfo de Joe Biden na super-terça-feira também é deles.

Quanto aos erros, quase poderíamos resumi-los a Bernie Sanders, que perdeu o favoritismo que havia acumulado em delegados, apoios e junto do operariado. O primeiro erro foi estratégico, como explicou Ezra Klein, na medida em que Sanders hostilizou de tal forma os Democratas que impossibilitou qualquer reconciliação caso ganhasse a nomeação de um partido que, afinal, nunca foi o seu.

O segundo erro foi irónico. Pode não ser imediato, mas há poucas coisas tão incoerentes quanto um radical. Usualmente, aqueles que mais almejam contrastar com algo acabam por cair na parecença com aquilo que pretendiam antagonizar. Bernie Sanders, um candidato indubitavelmente anti-Trump, acabou envolvido nas mesmas controvérsias que caracterizaram a campanha de Donald Trump em 2016: ataques à imprensa de referência, opacidade em relação à sua saúde médica, aplausos a regimes autocratas, favorecimento de servidores russos e um populismo indesmentível na sua mensagem. O “it’s us against everyone” da candidatura de Bernie poderia ser um tweet de Donald Trump.

A vitória de Biden, na passada terça-feira, foi mais do que um sinal de mudança; foi um apelo à decência que nos disse, voltando às palavras do princípio, que a única forma de cumprir qualquer revolução é perseverar na moderação, que numa era de populismos e de implosão do centro, a civilidade é capaz de heroísmo, de carisma, de adesão eleitoral e, mais do que isso, de autenticidade, de distância à contradição por tolerância ao outro – ao diferente, ao “adversário que nunca poderá ser inimigo”. Vamos ver se chega.

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