Com a atitude de desresponsabilização face ao passado socrático do Partido Socialista (PS) agravada pela forma como tem governado, António Costa ficará para a história como o primeiro-ministro, incluindo os do PSD, que mais escancarou as portas, em Portugal, à afirmação social e política da direita propriamente dita. O país dispõe agora de condições para ultrapassar o panorama paroquial que, desde 1974, mantém a sociedade e democracia portuguesas afastadas do mundo ocidental em troca de uma pulsão terceiro-mundista com todas as consequências que isso tem acarretado.

O azar de António Costa foi o de ambicionar o poder a todo o custo, mesmo sacrificando a tradição do seu próprio partido, numa conjuntura internacional contrária, um clássico de miopia política. A Nova Direita Europeia, Donald Trump ou Jair Bolsonaro não criaram o mundo, sendo mais consequência do que causa de um bloqueio civilizacional progressivamente ultrapassado de baixo para cima, das sociedades para as tutelas políticas, o inverso do que nos querem fazer crer.

O ponto de partida teve lugar nas sociedades da Europa de Leste dos anos noventa, a primeira zona do mundo a ser contaminada (1945) mas também a primeira a reagir à passagem pela história do império soviético (1991). A tendência foi-se expandindo pelo continente e, na Europa Ocidental, entrou em fase de sedimentação após o referendo que, em 2016, decidiu o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia. Esse movimento social reativo ganhou dimensão civilizacional ao capitalizar um conjunto de condições conjuntas, a definição tautológica de conjuntura, resultantes do forte impacto no sistema internacional da sequência de vitórias eleitorais, nas Américas, de Donald Trump (2016) e Jair Bolsonaro (2018).

A realidade encarregou-se de desfazer as dúvidas de não se tratar de fenómenos episódicos ultrapassáveis, antes de um movimento civilizacional consolidado no tempo (resiste por mais de vinte anos) e no espaço (hoje pluricontinental correspondente a sociedades de matriz identitária judaico-cristã). Está também a ficar claro que a moral social da qual derivam as identidades coletivas, uma e outras, não são propriedade de bolhas de académicos, jornalistas, intelectuais ou elites políticas, mas dos próprios povos. Em rota de colisão com a dignidade destes, as referidas bolhas resistem à necessidade premente de renovação das elites acusando de populismo todo e qualquer reparo que as atinja.

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O facto é que o mundo entrou num ciclo histórico de longa duração caracterizado pela libertação definitiva dos resquícios soviéticos da Guerra Fria (1945-91). Compensando a falência política e económica dos ideais socialistas e comunistas com a implosão da URSS (1917/1922-91), os seus defensores barricaram-se na hipervalorização dos atributos morais e intelectuais derivados desses mesmos ideais. Sendo impossível garantir por tempo indeterminado a sobrevivência de uma árvore cujas raízes secaram, era inevitável que chegassem os dias em que o que sobrava da esquerda modelada no século XX também falisse.

Numa outra perspetiva, a vitória política-democrática, social-liberal e económica-de-mercado do bloco ocidental no final do ciclo bipolar em inícios dos anos noventa, e que tornou o sistema internacional homogéneo nesses domínios, avança hoje para os domínios moral, intelectual e identitário de agora em diante também modelados pela velha civilização ocidental.

A inadaptação ao real vivido manifesta-se justamente no histerismo feroz dos ataques à legitimidade democrática da Nova Direita Europeia, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. No entanto, é fundamental deixar claro que não são esses os alvos substantivos da esquerda, antes as sociedades e pessoas comuns do mundo ocidental que geraram, por si mesmas, processos sociais e identitários saudáveis que estão a impor a redemocratização do mundo a partir da dessovietização do Ocidente. Não vislumbro nada de melhor que pudesse ter acontecido à dignidade humana e ao sistema internacional, num processo tão legítimo quanto cristalino.

Com o fim da URSS (1991), as esquerdas viram-se libertadas da necessidade de se demarcarem do bloco soviético para legitimarem a sua existência nas sociedades ocidentais, paradoxalmente o princípio do seu fim. Tais circunstâncias históricas levaram a que esse campo ideológico e político entrasse no século XXI amalgamado numa única identidade que passou a permitir e, não menos, a valorizar a existência de espíritos soviéticos totalitários no seu seio que hoje despontam em todas as esquerdas do mundo ocidental. A força crescente do ativismo-progressista que tomou conta das universidades e tenta tomar de assalto um espaço público bem mais resistente que académicos e intelectuais reflete isso mesmo. Essa ilusória vantagem transforma-se num beco de difícil saída para as esquerdas. Nem o novo coelho que tiram da cartola, o ambientalismo progressista, minimizará os danos.

Donald Trump, por seu lado, resiste em dar cartas de resiliência pessoal na sua capacidade de defesa civilizacional do Ocidente – das suas identidades, liberdades e economias – contra a radicalização esquerdista, até porque o fenómeno tem a particularidade de ser hoje saliente no coração do Ocidente, em particular nas suas democracias mais sólidas, como a dos Estados Unidos da América ou a do Reino Unido.

Num contexto de reinvenção civilizacional profunda existem sempre os que ambicionam ficar de bem com Deus e o Diabo. Tal guião vai sendo cumprido pela direita asséptica – anti-Trump, anti-Bolsonaro e anti-Nova Direita Europeia –, a direita que não entende que definha por viver na ilusão da legitimidade social amoral que abraçou, a que tolera os vícios e crimes da esquerda que se arrastam ininterruptamente há um século por não serem alvo de uma denúncia mais do que obrigatória e vigorosa. Hoje como no passado, basta olhar à volta para perceber a legitimidade do combate moral e intelectual contra as esquerdas.

Em Portugal, a inépcia virtuosa do habilidoso António Costa, e do atual PS, foi a de desfazerem, num curto espaço de tempo, as eventuais dúvidas que existiam no senso comum português sobre a inevitabilidade da aproximação civilizacional a um Ocidente renovado. Ao se terem associado ao Bloco de Esquerda (BE) e ao Partido Comunista Português (PCP) fundiram, também eles, a esquerda numa só e dificilmente desatarão o nó. Foi o presente de que a direita portuguesa necessitava, o berço de onde nascerá um movimento democrático de direita finalmente desembaraçado dos resquícios soviéticos, e sem saudades de Salazar, ainda que possa e deva reclamar a componente de dignidade e verdade histórica devida a esse governante que soube sobreviver ao pior da Guerra Fria, incluindo nas antigas colónias.

Não vale a pena negar o óbvio. O surgimento de uma direita renovada em Portugal constitui a pré-condição da integração do país no primeiro mundo, da estabilidade da sua sociedade, democracia e instituições, assim como de um crescimento económico sustentável. Esse conjunto de realizações coletivas pressupõe ainda a demarcação de fronteiras claras entre o Estado e a Sociedade, avanço civilizacional impossível de ser concretizado pelas esquerdas atuais.

Dado o peso social e histórico, o essencial do futuro de Portugal dependerá do PSD, gigante adormecido que necessita de uma reorientação política substancial. Um debate interno nesse sentido pode, deve e tem de ser iniciado por vontade própria ou imposto pelas circunstâncias. Ele passa pela capacidade do PSD ir além da redoma financeira e económica na qual se enquistou. Nestes domínios, faça o PS o que fizer, a vantagem do partido de Francisco Sá Carneiro está sedimentada no tempo pela associação entre a ação dos governos de Cavaco Silva (1985-1995) e, sobretudo, do governo de Pedro Passos Coelho (2011-2015). Daí que o PSD continue a resistir eleitoralmente.

A renovação será, por isso, sinónima do partido investir como nunca na disputa ostensiva de questões sociais, incluindo as culturais, intelectuais e identitárias, incluindo a nacionalidade, até agora monopolizadas pelas esquerdas. É neste núcleo de disputa social que reside o maior défice democrático do sistema social e político desde 1974.

A direita em Portugal, e o PSD muito em particular, nunca foram capazes de afirmar um discurso sociológico autónomo. CDS-PP e PSD insistem em nem sequer tentar, mesmo quando se aproximam eleições em que arriscam alienar parte do seu capital eleitoral, e sem qualquer justificação moral ou política. Esse bloqueio identitário será apenas ultrapassável quando esses movimentos políticos se afirmam sem ambiguidades, e sem pedir licença, de direita, de direita liberal ou conservadores, como é próprio do primeiro mundo. No mínimo, é indispensável que tracem fronteiras muito claras, em matérias sociais e na perspetiva dos indivíduos comuns e respetivos eleitores, entre o seu campo ideológico e político e o campo ideológico e político das esquerdas.

O PSD pós-Passos Coelho agravou o problema ao caminhar em sentido inverso, sendo Portugal e o seu destino as maiores vítimas. No mínimo, espero que esse sentimento de culpa própria pese na consciência crítica de muitos dos seus militantes. Para que fique claro, sempre fui votante do PSD e, desde 2005, tornei-me militante de base num dos momentos mais críticos do partido, momentos agora de regresso porque nada de substantivo tem sido corrigido. De resto, não coloco sequer a possibilidade de alterar uma e outra condição, a de ser votante e militante do PSD.

Na moral social que melhor serve Portugal e os portugueses (a da tradição de autorresponsabilidade individual e coletiva na linha da secular tradição judaico-cristã, mesmo quando se transformou em laica, contrária ao ideal de vitimização coletiva que a esquerda herdou da tradição soviética e da qual não se libertará); na gestão das questões identitárias ou do pensamento social (em que os princípios universais que garantem a estabilidade e a coesão social implicam deixar claro ao eleitorado a recusa de quotas por razões identitárias); nas migrações transfronteiriças que implicam condenar sem ambiguidades a imigração ilegal e, em simultâneo, defender a identidade nacional; no ensino, do básico ao universitário, tomados de assalto pela esquerda que matou a liberdade e pluralismo do pensamento desde a intimidade das salas de aula com consequências perniciosas na qualidade da vida cívica e da democracia, incluindo os impactos negativos em diversos domínios (burocracia, exames, relação público-privado, indisciplina, sistemas de avaliação, currículos); nas relações externas (onde, por exemplo, se anuncia desastrosa a incapacidade de perceber a mudança profunda em curso no Brasil de Jair Bolsonaro); entre outras matérias – é por demais óbvio que o PSD, e a direita em Portugal, possuem um terreno social e eleitoral (muitíssimo) apelativos para se afirmarem.

Até quando os portugueses – que nada possuem de ingénuos (o absentismo eleitoral por alguma razão está sobretudo à direita) – vão tolerar partidos políticos que os forçam a viver aprisionados entre uma esquerda moral e intelectualmente falida (o tempo imporá o seu descalabro eleitoral) e, no extremo oposto, uma direita democrática que, ao não querer existir enquanto tal, permite atentados quotidianos às liberdades individuais dos cidadãos, à estabilidade social e institucional, à funcionalidade da democracia que não se decide na rua nem nas redes sociais, a iniciativas que podem travar a corrupção, aos princípios mais elementares de prosperidade económica coletiva e de sustentabilidade dos serviços públicos, à aproximação ao primeiro mundo ou a parceiros estratégicos como o Brasil?

Bem-vindo a Portugal presidente Donald Trump, António Costa merece! Que se siga Jair Bolsonaro.