As recentes intervenções públicas do primeiro-ministro exibiram arrogância, brutalidade e violência verbal. A sucessão de episódios marcou o debate público — seja nas referências a Carlos Moedas (e o respectivo pedido de desculpas), seja na entrevista à revista Visão onde exibiu o seu poder e desqualificou adversários políticos em termos impróprios. E, desde então, têm abundado as críticas e o desconforto (incluindo dentro do PS) pela postura de António Costa. A dúvida é esta: o que explica tal comportamento, que sugere uma perda de controlo, sobretudo quando vindo de um político experiente e num contexto particularmente favorável de maioria absoluta?

Tenho lido várias reflexões pertinentes — por exemplo, de José Miguel Júdice e de André Azevedo Alves. A essas, acrescentaria aquele que, embora de enorme simplicidade, me parece o elemento-chave do descontrolo emocional do primeiro-ministro: em contexto de maioria absoluta, António Costa ficou fora da sua área de conforto — as suas qualidades políticas mais evidentes foram úteis durante sete anos de negociações constantes, mas tornaram-se obsoletas agora.

António Costa sempre foi um homem das elites sociais, conhecedor das intrigas partidárias e um mestre das habilidades políticas — sabendo como articular táctica e acordos de bastidores para servir os seus interesses. Os corredores da política são o seu habitat natural. Foi esse perfil que viabilizou a geringonça. E foi também esse perfil que, mesmo após 2019, lhe permitiu gerir equilíbrios delicados — primeiro, com os parceiros à esquerda, depois com o PSD, numa espécie de consenso patriótico de combate à pandemia da Covid-19. Ou seja, desde 2015 até hoje, António Costa foi um primeiro-ministro focado e especializado na sobrevivência política, o terreno que mais domina e onde as suas qualidades mais sobressaem.

Hoje, as exigências políticas impostas sobre o primeiro-ministro são diametralmente distintas. Com a sobrevivência política assegurada por um grupo parlamentar maioritário durante os próximos quatro anos, pretende-se que o foco de António Costa esteja no reformismo, na resolução de problemas de fundo nos serviços públicos e no desenvolvimento social e económico do país. Com o handicap suplementar de, ao acumular sete anos em São Bento, haver impaciência dos cidadãos na resolução dos desafios existentes — particularmente notória quanto à deterioração do SNS, por exemplo. Ora, António Costa sabe distribuir dinheiro para alimentar clientelas, mas tem demonstrado incapacidade em lidar com os desafios mais estruturais da economia, da saúde ou da educação — que, em 2023, serão ainda mais profundos devido ao quadro de crise internacional. A partir de agora, o primeiro-ministro será julgado no terreno que pior domina e onde as suas qualidades políticas menos fazem a diferença.

Quando António Costa sentenciou na entrevista à Visão com um “vão ser quatro anos, habituem-se”, soou como se estivesse a falar consigo próprio. Para os portugueses e para os partidos à direita, nada mudou: uns estão habituados a ver o PS mandar, outros estão habituados a estar na oposição. Foi para António Costa que a situação se alterou: é ele quem tem de se habituar às responsabilidades acrescidas que resultam do seu sucesso eleitoral. Eis, portanto, o que transparece na brutalidade e na arrogância do primeiro-ministro: a ideia de perda de controlo de um político especializado na sua sobrevivência e que, com maioria absoluta, perdeu as desculpas para os fracassos da governação.

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