É uma verdade universalmente reconhecida que um partido na oposição, ambicionando ser governo, se sente obrigado, de tempos a tempos, a proceder a um exercício genericamente designado pela expressão “debater ideias”.

Por força das circunstâncias, é hoje à esquerda que ele é mais praticado. À esquerda do PS, e tirando o PC, esse exercício é paralelo a um outro, o de “fazer pontes”. A “construção de pontes à esquerda” tem um historial catastrófico. Normalmente acaba com os construtores muito longe das margens e cada um na posição de um estilita, a pregar, magrinho de jejum, do cimo de uma coluna, para ninguém, ou então para meia dúzia de fiéis a boiarem esforçadamente no rio. O mais curioso mesmo é que, quanto mais pontes se querem fazer, mais se acentua a divisão.

O caso do Bloco de Esquerda é exemplar. Quando lhes dá para debaterem ideias e fazer pontes, a coisa acaba mal. O último episódio de que tive notícia (mas estou certamente desactualizado) é que Daniel Oliveira abandonou o Bloco (para fazer pontes, é claro) e Francisco Louçã, que passou a vida a fazer pontes dentro do Bloco, não apreciou o gesto. Apreciou-o tão pouco que exprimiu o seu desagrado escrevendo numa rede social um comentário ao facto, acompanhando-o de uma imagem da capa de uma aventura dos “Cinco”, em que os heróis lá partiam, vibrantes, para a aventura, dentro de um barquinho. Daniel Oliveira, vendo na imagem uma torpe insinuação sobre o seu abandono do Bloco em direcção à “Ilha do Tesouro” (o PS, suponho), reagiu prontamente, perguntando a Louçã se, entre os traidores, ele o via como o cão Tim.

Não tenho nada contra Enid Blyton, e li “Os Cinco” (e “Os Sete”) todos, há, meu Deus!, mais de quarenta e cinco anos. Espanta-me, contudo, e espanta-me genuinamente, que adultos inteligentes como Louçã e Daniel Oliveira recorram, para ilustrar as suas diferenças, a livros para crianças. Mas talvez haja algo de politicamente muito importante em Enid Blyton que me tenha escapado. De facto, quase me lembro só das descrições dos lanches, que sempre me deram imensa fome (estarão elas na origem dos “acampamentos” do BE?), e da meiga e doce e meiga e tímida e meiga e lourinha Ana, que sempre apetecia proteger e guardar nos braços (haverá alguma Ana assim no BE, empenhada em debater ideias e construir pontes?). De qualquer maneira, o BE parece estar condenado à irrelevância e é de presumir que a construção de pontes venha a dar o resultado de costume.

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Quando se passa ao PS, o debate de ideias é obviamente mais importante. Infelizmente, não parece ser mais profícuo. É claro que “debater ideias” é um empreendimento sempre arriscado, quanto mais não seja porque supõe nos contendores a existência desses fugidíos objectos de pensamento, o que está longe de ser um facto adquirido. E é ainda mais arriscado pelo facto de, para haver debate, ser preciso que, a existirem, as ideias sejam diferentes. Ora, nada mais difícil do que vislumbrar este último requisito em António José Seguro e António Costa, ambos também, os jornais asseguram, exímios “fazedores de pontes”.

Há, sem dúvida, vária coisa que os opõe, e disso a imprensa informa-nos regularmente. António Costa não gostou que, em Ermesinde, uma popular lhe tivesse agarrado o braço e chamado “Judas”, ou uma outra coisa assim qualquer (um gesto típico das bases populares do PS no Porto, as mais clubísticas do país, provavelmente, e que não se deve levar excessivamente a mal). E logo correu em vários círculos do PS que Seguro havia contratado o furioso avançado uruguaio Luis Suárez para aterrorizar Costa. Há, além disso, mercenárias agências de comunicação que, assegura António Costa, o querem tramar. Seguro, por sua vez, queixa-se de trivialidades semelhantes. Costa tê-lo-ia traído e haveria umas manobras quaisquer burocráticas que visariam prejudicá-lo nas “primárias”. Costa censura Seguro por, durante o consulado de Sócrates, ter sempre estado na sexta fila do Parlamento. Seguro acha que aí é que estava muito bem, já que ninguém lhe havia sugerido o salto para a primeira, onde estava Costa. Muito bem: não gostam um do outro. O País, que gostaria de ver o PS como uma grande família de afectos, preferia que não fosse assim, mas que fazer? Mas ideias? Que ideias os opõem?

Aplicadamente, fui ler as longuíssimas entrevistas que, com um intervalo de quinze dias, os dois deram ao Público. Por uma falta de entusiasmo que deve ser culpa minha, tive de fazer várias pausas, que aproveitei para ver cinco filmes. Mas, enfim, li-as uma à outra, da primeira à última linha, de esferográfica na mão. E, confesso, não consegui descobrir nenhuma ideia em que divergissem. O exercício de micrologia, além de penoso, deu em nada. Ambos simpatizam imoderadamente com os valores e a coerência. Ambos olham retrospectivamente para os seus passados próprios com enlevo e admiração, garantes do futuro da sua acção (sem, é verdade, chegarem aos extremíssimos extremos da infeliz Maria João Rodrigues, sobre a qual João Marques de Almeida disse neste jornal o essencial). Ambos detestam a ausência de “vontade política” (uma entidade que alguém um dia deveria estudar em detalhe) deste Governo. Ambos adoram, de uma adoração vera e pura, Guterres. E, na Europa, querem os dois mudar tudo (embora Seguro não possua uma tão imoderada ambição como Costa, e não proclame que “o primeiro passo para mudar de política na Europa é mudar de Governo em Portugal”).

Esta indistinguibilidade, curiosamente, foi sublinhada pelo próprio António Costa. Instado repetidamente pelos jornalistas do Público a pronunciar-se sobre o que o distinguia, no plano das ideias, de Seguro, eis as suas respostas: “Quem tem que fazer a distinção não sou eu, é quem vai votar”; “Eu digo o que vou fazer, mas não o que me diferencia do meu secretário-geral”; “”Quanto à diferenciação entre os dois, confio suficientemente nos eleitores, militantes do PS e simpatizantes do PS”; “Já encontrou alguém na rua que nos confundisse?”; “Sem ser os jornalistas, ainda não vi ninguém com essa dúvida do que distingue um do outro”. Quer dizer: eu sou António Costa, e António José Seguro não é António Costa. Até aí, confesso, também eu chegava. O problema é que os portugueses gostariam de saber o que é que, para além das rasteiras que se vão um ao outro passando, distingue, na sua relação com as ideias, um do outro. E isso não se vê nada, absolutamente nada. E António Costa (por modéstia?) não diz.

Costa e Seguro são, tirando o inessencial, Dupond e Dupont. No plano das ideias, nada os distingue. Ao que um diz, o outro poderá sempre acrescentar: “É a minha opinião e eu partilho-a”, ou: “Diria mesmo mais…”. A única diferença, em última análise, é, como nos polícias de Hergé, um pequeno aspecto do bigode, mais socrático em Costa do que em Seguro. Mas mesmo esse detalhe tenderá, para grande desprazer dos ferozes orfãos socráticos, a desaparecer. Antes ou depois das “primárias”, Costa irá ao barbeiro, porque ele sabe que Sócrates provoca horror. E nesse dia nada o distinguirá de Seguro para além do nome.

Mas no fundo, o problema não é só a indistinguibilidade das ideias, é a própria qualidade destas, que parecem, desculpe-se, razoavelmente ocas. As sugestões para o pagamento da dívida, que ambos partilham, atribuindo-lhes nomes ligeiramente diferentes, primam pela impraticabilidade, e qualquer um deles, se algum dia formasse Governo, a primeira coisa que fazia era lançá-las pela janela, como quem se livra de um dente cariado. Não é só no PS, eu sei, mas no PS é particularmente visível: encontrar uma ideia a sério é tão difícil como descobrir uma tribo perdida na Amazónia. E se alguém no PS descobrisse uma, passava-lhe imediatamente um vírus que a mandava desta para melhor.

Arthur Koestler reproduziu num dos seus livros uma história que Orwell lhe havia uma vez contado. Um amigo de Orwell tinha o hábito de fumar haxixe todas as noites. E todas as noites, no meio da bebedeira de haxixe, tinha uma ideia que lhe parecia revelar o segredo do universo. Infelizmente na manhã seguinte a ideia havia-se-lhe totalmente desaparecido do espírito. Até que uma noite, precavido, decidiu escrevê-la para ela não mais se perder. Na manhã seguinte, mal acordou, foi buscar o papel, e leu “A banana não tem caroço”. Receio bem que Costa e Seguro, depois da excitação das “primárias”, acabem por acordar com uma idêntica revelação. Enfim, talvez um deles, em vez de banana, por inconsciente precaução de originalidade, descubra escrito “pêssegos enlatados”. Mas isso não faz grande diferença.