Lampedusa tem metade da área de Porto Santo e aproximadamente a mesma população. Ou, melhor dizendo, Lampedusa tinha a mesmo população que Porto Santo porque entre quinta e sexta feira da última semana a população de Lampedusa mais que duplicou. Para evitar a situação de ruptura na ilha, decorre agora uma operação de transbordo de imigrantes para o território continental italiano. Enquanto isso prosseguem novos desembarques de imigrantes, os habitantes da ilha manifestam-se contra o que dizem ser a intenção das autoridades de montar um campo de tendas (o centro de acolhimento com capacidade para 400 pessoas há muito que está sobrelotado) e Giorgia Meloni, a primeira-ministra italiana, convidou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a ir este Domingo a Lampedusa. Macron já terá telefonado. O que também prossegue é a língua de pau para tratar deste assunto. Uma sucessão de clichés. Aqui ficam alguns.

Dizer sempre refugiados. O termo imigrantes foi desaparecendo. Tem vindo a ser substituído por migrantes e refugiados. As palavras escolhidas não são neutras pois são muito diferentes as obrigações dos países de destino para com os refugiados: um refugiado não só não se pode mandar para trás tal como (e bem) tem direito a um conjunto significativo de apoios. Ora quando se banaliza o termo refugiado acaba a generalizar-se o que é excepcional. A maior parte da imigração que chega à Europa é económica e qualquer português sabe como a busca de uma vida melhor nos pode levar a procurar outros países mas isso não fez nem faz de nós refugiados.

A forma como outros países condicionam as vagas de imigração não é assunto. Quando, em Março de 2022, vagas de refugiados ucranianos, maioritariamente mulheres e crianças, como é próprio das vagas de refugiados, deixaram aquele país, alguns questionaram se Putin estaria a contar com o efeito desestabilizador que esses milhões de pessoas teriam nos países europeus para onde estavam a fugir. Na verdade não seria a primeira vez que tal táctica era usada por Moscovo. Em 2016, a Rússia e a Síria tinham manipulado as vagas de refugiados sírios como uma forma de pressão sobre a UE, uma pressão que visava criar divisões entre os diferentes países e entre estes e a NATO. Quanto à Turquia, de há muito que explora o seu papel de controlador dos fluxos de imigração nas fronteiras da UE. Desde 2015 que a UE paga milhares de milhões de euros à Turquia para que este país mantenha em campos no seu território os refugiados e imigrantes, maioritariamente sírios, que pretendem chegar à UE. Simultaneamente a Turquia impôs para os seus nacionais a simplificação do regime de vistos para a UE. A estes grandes protagonistas no condicionamento dos fluxos migratórios para a UE, como é a Turquia, juntam-se outros de menor dimensão mas capazes de criar incidentes de grande impacto humano e mediático, como acontece com Marrocos em relação a Espanha, sobretudo nas chamadas vallas de Ceuta e Melilla. Obviamente a imigração para UE não acontece por causa de países como a Turquia ou Marrocos mas só por grande ingenuidade ou má fé se pode ignorar que este é um dos assuntos mais sensíveis dentro da UE – o Brexit aconteceu por causa de quê? – logo uma muito eficaz forma de pressão.

Os únicos responsáveis pelos imigrantes são os governantes europeus. Em Agosto deste ano o patrulheiro espanhol Tajo resgatou 170 homens, na sua maioria senegaleses, ao largo da Mauritânia. Em seguida o Tajo dirigiu-se para o porto mauritano de Nuadibú. Mas as autoridades da Mauritânia não aceitaram o desembarque dos homens. Terão exigido “muito”. O caso tornou-se conhecido porque os 170 homens acabaram a ameaçar revoltar-se. O patrulheiro era manifestamente exíguo e a comida pouca. Perante a ameaça de motim a tripulação disparou para o ar e fechou-se no interior da embarcação enquanto navegavam. Tudo acabou pacificamente mas se assim não tivesse sido além dos militares espanhóis ninguém mais teria sido chamado a responsabilidades. Quem governa os países donde esses imigrantes saíram jamais é acusado do que quer que seja. Cleptocratas, ditadores ou simplesmente incompetentes (as três categorias são frequentemente acumuladas), jamais esses dirigentes são confrontados com as suas responsabilidades. Um bebé morre numa traineira que tenta chegar a Lampedusa? A culpa é das autoridades italianas. Uma traineira sobrelotada que transportava imigrantes da Líbia para a Grécia naufragou. Terão morrido centenas de pessoas. Quem acaba por ser processado por uns sobreviventes devidamente arregimentados pelo movimento do senhor Varoufakis? Não os traficantes a quem cada um deles terá pago aproximadamente 1800 euros para ter um lugar naquele caixão em forma de barco mas sim as autoridades portuárias gregas. De igual estado de graça beneficiam os políticos dos países que estes imigrantes atravessam até chegar à UE, mesmo quando esses dirigentes contribuíram com as suas declarações para o incremento de actos de grande violência sobre os imigrantes: quantas notícias vimos sobre a violência sofrida na Tunísia pelos imigrantes negros? E o que sabemos sobre as declarações do presidente da Tunísia, Kaïs Saïed, sobre as pessoas provenientes da África subsariana? Pois é, sem homem branco proveniente da cultura judaico-cristã não há culpa nem culpados.

Não haveria problema algum com este afluxo de pessoas não fosse a extrema-direita. Este é o cliché mais cliché. É mesmo um item obrigatório. Está mais ou menos implícito que: a) Não haveria problema algum com este afluxo de pessoas não fosse a extrema-direita. b) Que havendo necessidade de controlar a imigração isso vai favorecer a extrema-direita. c) Na dúvida usam-se as duas explicações anteriores conforme der jeito. Entretanto, e com o assunto devidamente transformado num tabu, aconteceu o que garantidamente nunca ia acontecer: em 48 horas, um município europeu viu a sua população duplicar. Aos seis mil residentes juntaram-se sete mil imigrantes. Foi em Lampedusa. E se fosse em Porto Santo? A sério que querem deixar este assunto para a extrema-direita?

PS. Depois de ouvir as declarações de Mariana Mortágua sobre o lay off na Autoeuropa – a empresa “tem de assumir responsabilidades e tem uma responsabilidade social para com os trabalhadores, para com o país e para com o Estado, de quem já recebeu muitos apoios” – resta-me a seguinte dúvida: que responsabilidades assumiu o BE, a quem não faltam apoios do Estado, para com os trabalhadores que despediu?

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