Acontecia-me, de vez em quando, passar pela montra de uma tabacaria e ver as capas das revistas onde famosos de vária pinta (na maioria para mim desconhecidos) abriam para nós, com uma fotografia e uma frase, o seu coração. Falavam de paixões, de traições, de fundas tristezas e de altíssimas alegrias. Uma actriz, que por acaso conheço pessoalmente, numa semana estava a viver o melhor momento da sua vida, banhando em felicidade, para, duas semanas depois, atravessar a mais dilacerante crise sentimental, confessando, lá para o fim do mês, ter sido tocada pela graça de um amor daqueles que já não se vêem. Mas mesmo quando nunca tinha ouvido falar dos famosos, parava para ver. Não me reprovo nem me aplaudo. O facto é que sempre me fascinou, mesmo quando é uma simples maneira de ganhar a vida, a facilidade e o gosto que as pessoas têm em expor os meandros da sua alma, que avança sem titubear nas variadas direcções do amor, do ódio, do desprezo da ira e da devoção.

Entretanto, a coisa piorou. Por causa destes telemóveis modernos, todas essas explorações dos meandros do eu chegam-me directamente às mãos sem precisar de sair de casa e sem que eu tenha quase a liberdade de continuar em frente sem olhar. Basta uma pequena distracção, uma pequena pressão indevida do dedo, e, zás!, entram-me pelos olhos dentro todas as traições de que a jornalista de televisão foi vítima por parte dos colegas e coisas assim. E, de repente, o mundo é ocupado quase em exclusividade por gente que não olha para fora de si, gente que olha exclusivamente para si mesma, como se o mundo lá fora não existisse.

É nestas alturas, assaltado pela melancolia, que me lembro do meu velho amigo Carl Spitzweg. Desde que, há muitos anos, vi alguns quadros dele na Ilha dos Museus de Berlim, que aquela pintura me fascina. E sei, coisa rara, exactamente porquê. Porque ele é o pintor da atenção por excelência. Nenhum outro pintor tão bem retratou essa actividade imaterial da qual a filosofia, com Malebranche ou Maine de Biran, fez um tema seu. Pode ser alguém a ler um livro, ou um geólogo a olhar para uma pedra, ou um amador de cactos que os observa escrupulosamente (há vários quadros dele com este último assunto). Ou ainda um homem sentado no campo que olha fixamente para uma lebre que lhe retribui o olhar.

O sentimento de maravilhamento que se experimenta ao fixarmos a nossa atenção nesses seres presos pela atenção não se conta. Porque, decididamente, eles saíram, no momento pintado, para fora do tempo, para fora daquilo que Schopenhauer, ao comentar a teoria estética de Kant, chamava princípio de razão. Olham para certos fragmentos do mundo com tanta atenção que é como se nada mais existisse. Eles próprios é como se desaparecessem através da sua atenção ao objecto que os maravilha.

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É uma lição que convém não esquecer, a da atenção de Spitzweg. Não há prazer estético que não viva da atenção. E não apenas, é claro, o prazer na pintura ou na literatura. Com a música é exactamente a mesma coisa: pode-se falhar perfeitamente uma peça musical, num concerto ou em casa, se não conseguirmos obter a atenção necessária para verdadeiramente a escutar. Por uma razão simples: sem a atenção, a imaginação necessária para compreender a arte não funciona. E o que resulta dessa falta é uma indiferença mais ou menos mal disfarçada.

Mais genericamente, a atenção de Spitzweg é o exacto avesso da concentração obstinada sobre si mesmo que no início falei e que é, no fundo, puro desinteresse pelo mundo. E é um antídoto perfeito para a esfera crescente das expressões do eu que, de Harry e Meghan à jornalista de televisão, nos invadem o quotidiano com confissões das suas entranhas que, numa subversão anatómica, querem expor à superfície.

Dito isto, devo confessar que não sou suficientemente moralista para condenar sem apelo nem agravo tais exposições. Às vezes, em momentos de especial boa disposição, ainda me apanho a observá-las. Mas prefiro francamente, como as figuras de Spitzweg, olhar para cactos. Parecem-me mais reais e menos desesperadamente vazios.