É difícil ser um bom cristão quando a prova é ver Paulo Portas avisar os tele-espectadores dos perigos de uma relação demasiado íntima entre os políticos brasileiros e a religião. E, no coração, reprovei no teste: ri-me do seu aviso, provavelmente com uma ponta de cinismo de que não me orgulho. Passo então a explicar melhor esta minha dificuldade em levar a sério aquele final do Jornal das 8 da TVI, no Domingo 9 de Outubro passado: a partir de um gráfico que projectava no Brasil o número de evangélicos a tornar-se superior ao de católicos (old news), e de uma imagem em que alegadamente Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, baptizava Jair Bolsonaro (fake news—Paulo Portas desconhece que essa imagem vinha de uma unção com óleo em 2019 (!), prática mais típica da cena mais neo-pentecostal), o comentador alertava acerca da “diversidade de credibilidade nas igrejas ou seitas”, acautelando, claro, algumas distinções.

Ouçamos então o rigor de Portas nestes assuntos da tão estranha diversidade religiosa brasileira, tendo em conta a nossa óbvia vocação portuguesa para cenários de crença simples e limpa. Há “confissões respeitabilíssimas como protestantes clássicos (metodistas, luteranos)”, há “neo-pentecostais, onde a coisa se começa a complicar—o exercício de algum fanatismo é bastante evidente; e depois aquilo que é terrível que são seitas [olhos arregalados]. Nessas seitas, evidentemente a mais forte chama-se IURD.” Ah bem: haja um português sensato que meta travão nos excessos da credulidade tropical. Ok, acho que resvalei novamente para o cinismo… Deixem-me tentar concentrar-me de novo.

Somos em Portugal um país com liberdade religiosa? Diria que sim e diria que não. A cabeça diz sim e o coração diz não. É, como os miúdos dizem agora, complicado. A consagração da liberdade religiosa na nossa lei é testada quando as religiões são tão natural e publicamente distinguidas pelos políticos a partir do seu grau de respeitabilidade. Isto, sim, parece-me uma relação entre religião e política tão ou mais perigosa do que a de promiscuidade que tão facilmente apontamos aos outros países. Sim, Bolsonaro em namoros com pastores e padres não é um cenário inspirador. Mas o que dizer do cenário português em que políticos diferenciam os bons bispos dos maus bispos? Foi isto que na prática aconteceu quando Paulo Portas explicou a imagem do Presidente da República brasileiro com Edir Macedo nestes modos: “esta é uma fotografia de um entre aspas baptizado e um entre aspas bispo, que é o chefe da IURD”. O ponto do meu argumento é este: que tipo de liberdade religiosa existe quando um político se sente tão à vontade para separar a gente que é séria da gente que é seita? Na minha opinião, é uma liberdade religiosa que não é realmente crida—a cabeça diz sim e o coração diz não. Neste sentido, falo de políticos que, lá no fundinho do coração deles, não acreditam realmente em liberdade religiosa.

Em Portugal a lista de políticos que, lá no fundinho do coração, não acredita em liberdade religiosa é antiga e escandalosamente presente nas figuras mais altas. Não é só Paulo Portas. Marcelo Rebelo de Sousa, no fundinho do coração dele, também não acredita em liberdade religiosa. Confirmam isto os seus discursos recentes que misturam evangélicos e extrema direita (seja na Europa ou no Brasil), como bem mencionou o Jorge Fernandes aqui no Observador, no texto “A banalidade da vulgaridade”. E, nesse sentido, o nosso actual Presidente da República apenas segue uma tradição já praticada por outros antes dele. Mário Soares, no fundinho do coração dele, também não acreditava em liberdade religiosa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apenas para um exemplo substancial, menciono uma notícia do Expresso em 2009, em que Soares falava “da existência em Portugal de ‘religiões que não são religiões, mas sim seitas’, referindo ‘as Testemunhas de Jeová, que me afligem muito, porque são coisas do tipo comercial, mais do que religioso’”. Na altura em que era Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa (uau!), sentia-se à vontade para acrescentar: “as pobres das pessoas não percebem, mas esta é que é a verdade, as pessoas perdem muito dinheiro com essas seitas”. A saudosa harmonia religiosa portuguesa via-se, portanto, ameaçada à custa da “invasão de ‘religiões’ (…) sobretudo através da imigração brasileira”, desferindo uma evidência última: “os protestantes evangélicos são muito fanatizados”. Com uma tradição destas, tão ampla e convivialmente praticada por um dos pais da nossa democracia, por que haveria Marcelo Rebelo de Sousa de ser diferente?

No fundinho do coração, a própria Lei de Liberdade Religiosa que temos não acredita em liberdade religiosa. O Bruno Vieira Amaral apontou isto no livro que escreveu chamado “Aleluia”, quando explicou que o ponto número 2 do artigo 37º é, na prática, uma cláusula anti-Igreja Universal do Reino de Deus, que “só reconhece como radicadas no país as igrejas e as comunidades religiosas existentes há pelo menos trinta anos ou, no caso de fundadas no estrangeiro, há sessenta”. O que isto quer dizer é que fizemos uma lei para a religião ser livre desde que as religiões com fraco grau de respeitabilidade que vêm lá de fora não sejam aqui tão livres assim. A facilidade com que se pode bater na Igreja Universal do Reino de Deus, resumida popular e sarcasticamente na sigla IURD, é, por si, reveladora. Liberdade religiosa? A cabeça diz sim mas o coração diz não.

Em Portugal qualquer devasso vira devoto quando, falando de religião, quer distinguir os sérios dos da seita. Já há uns anos escrevi isto num texto chamado “Não sendo, é como se fosse da seita” (que podem ler no blogue Voz do Deserto). O mais triste é que, nestas matérias, o povo parece alinhar com os seus políticos: para quê praticar a nova modalidade da liberdade de religião se os nossos músculos estão tão habituados ao velho campeonato do respeito?