Nas horas, mesmo nos dias seguintes, a uma noite de horror como a de Paris é fácil, natural, quase instantânea a unanimidade. Afinal, “somos todos parisienses”. Como fomos todos “Charlie”. Ou nova-iorquinos.

O pior é o que vem depois – o pior é saber o que fazer depois. Por isso aqui ficam algumas reflexões que são sobretudo interrogações. Mas é precisamente por admitirmos a dúvida e questionarmos as certezas que somos aquilo que somos e queremos continuar a ser: ocidentais sem vergonha do Ocidente (e perdoe-me Francisco Assis por lhe roubar esta expressão).

Então vamos lá, uma por uma.

1. Estamos em guerra? Sim, estamos. E o que quer isso dizer?

Quando, na sequência do 11 de Setembro de 2001 e dos ataques às Torres Gémeas o Presidente Bush falou de estado de guerra muitos foram os que o condenaram. Agora foi a vez de Hollande de ser claro: “É um acto de guerra cometido por um exército terrorista, o Daesh [Estado Islâmico], um exército jihadista, contra a França. Contra os valores que defendemos por todo o mundo. Contra aquilo que nós somos.” Assino por baixo. E subscrevo os diagnósticos das capas de alguns jornais franceses de hoje: o 13 de Novembro de 2015 não foi apenas um massacre, foi uma operação concertada que levou a guerra ao coração de Paris. Mais: a França sabe que a dúvida não é a de saber se vai haver mais atentados, é a de saber quando é que eles vão ocorrer.

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Mas se estamos em guerra, e se sabemos contra quem – o Estado Islâmico –, um grupo jihadista que até tem uma base territorial, o que fazer? Como podemos defender-nos? E como contra-atacar? E será que ainda estamos dispostos a combater?

Desde o início da crise da Síria que a posição dos grandes países europeus tem oscilado entre assobiar para o lado e tentar tratar uma gangrena com aspirinas. Muitas palavras, poucas acções. Apenas alguns drones, aqui e além uma acção de forças especiais. Entretanto os russos já vieram com aviões a sério, colocaram tropas no terreno e fizeram gala nos seus mísseis de cruzeiro. Os israelitas, mais discretos, mas mais eficientes e, sobretudo, muito mais conscientes dos riscos da situação, já conseguiram retirar da Síria não só todos os judeus que ainda aí viviam, como o património judaico mais relevante. Nós, pelo nosso lado, abandonámos Palmira aos bárbaros.

Será que alguma coisa vai mudar? Será que a França, que de alguma forma é a “mãe” da Síria moderna, pois aquele território foi um seu protectorado quando os despojos do Império Otomano foram divididos entre as potências vencedoras da I Guerra Mundial, vai mudar de política? E tem meios? E conseguirá arrancar Obama da sua inação? E ter a solidariedade e colaboração dos parceiros europeus e dos aliados da NATO?

E mesmo que queira fazer alguma coisa, que fazer? Ainda esta semana o Presidente dos Estados Unidos anunciava, optimista, que se tinha conseguido conter o “Estado Islâmico”. É possível: este deixou de se expandir na Síria e no Iraque. Mas não serão os ataques de Paris o sinal de que, agora, a estratégia dos jihadistas mudou, que deixaram a guerra convencional e regressaram ao terrorismo indiscriminado? São perguntas como estas que os líderes europeus têm de colocar – e depois de encontrar respostas.

(Entretanto, entre nós, o PCP já regressou ao seu delírio habitual em matéria de política externa, colocando-se ao lado de Assad, o que bem sinaliza a solidez da aliança que nos serviram a semana que findou…)

2. Vamos sacrificar liberdades em nome da segurança? É bem provável

É a discussão que não acaba: até onde estamos dispostos a permitir a intromissão dos serviços de segurança dos Estados na nossa vida privada para estes, em troca, conseguirem dar-nos mais e prevenirem o maior número possível de atentados?

De cada vez que sucede um grande atentado, sobretudo um que implicou preparação e não é apenas fruto de um “lobo solitário”, isto é, de um fanático a agir por conta própria, imprevisível e indetectável, percebemos que algures os serviços de informação falharam.

Ao mesmo tempo, de cada vez que um Julian Assange ou um Edward Snowden nos aparece a revelar segredos dos serviços diplomáticos ou das agências de espionagem, não falta quem os trate como heróis e até os proponha para o Prémio Nobel da Paz. Contudo as suas denúncias – e não estou aqui a avaliá-las positiva ou negativamente – e o seu activismo tiveram e têm uma consequência: tornar mais difícil detectar as redes terroristas e mais complexo antecipar a organização de um grande atentado.

Este é um paradoxo das nossas sociedades abertas: não é possível conjugar o máximo de liberdade (e de reserva da nossa privacidade) com o máximo de segurança. E se se não concebemos um mundo sem liberdade, mesmo para se ser altifalante das acusações dos Assange e dos Snowden, também não é possível viver em democracia e em paz sem que as pessoas se sintam em segurança, como recordou o Cardeal Patriarca de Lisboa na sua reacção aos atentados.

Eu, por mim, vou ser directo e franco: sinto-me melhor num mundo em que existe uma NSA com sistemas de vigilância globais porque sei que essa NSA, mesmo podendo cometer excessos, está sujeita à supervisão dos legisladores de uma grande democracia. E posso dizer o mesmo de um MI5 ou de um MI6 e de outros serviços congéneres, incluindo a CIA e a Mossad. Não que o seu jogo seja sempre limpo – mas porque estamos mesmo em guerra.

3. Teremos de falar de novo de “Choque de civilizações”?

Eu sei: o tema é tabu. O que fica bem defender é a “Aliança das Civilizações”, um daqueles sonhos bonitos que ficam bem na boca de uma Miss Mundo mas não deviam ser levados demasiado a sério.

Na noite do atentado de Paris recordei-me de um artigo que li, salvo erro no Le Monde, poucos dias depois do 11 de Setembro, em que alguém recordava que Samuel P. Huttington, o cientista político que ficou célebre com essa sua obra O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, não tinha previsto o grande atentado para Nova Iorque, ou sequer para os Estados Unidos, mas sim para uma França que, há 25 anos, quando o livro foi escrito, já se debatia com problemas suscitados pela sua minoria muçulmana. E interroguei-me: será que é agora?

Quando vi o Estado Islâmico a proclamar que o seu maior inimigo era realmente a França e, depois, quando fui ver que país da Europa Ocidental tinha contribuído com mais jihadistas para o Estado Islâmico e confirmei que de França tinham ido 1200, o dobro dos que saíram da Alemanha ou do Reino Unido, resolvi mesmo voltar a colocar o livro na minha mesinha de cabeceira. Porque sinto que o tema estará de regresso.

Na verdade qualquer pessoa que tenha viajado pela Europa nos últimos anos, passado por algumas cidades do sul de França, do norte de Inglaterra, ou por alguns bairros de Bruxelas ou Malmo, sabe que encontrou uma Europa em tão rápida mutação que, por vezes, nos sentimos estrangeiros nas ruas que percorremos. Mais: percebeu aquilo que aqui, neste cantinho apesar de tudo protegido, é difícil perceber: boa parte dos muçulmanos que têm enchido essas cidades e bairros não se integra, não se acultura, não transige nem tolera, antes exige e reivindica.

É por isso que o escândalo do romance Submissão, de Michel Houellebecq, não é a sua provocação, é a sua verosimilhança, como notou Rui Ramos.

E o terror de Paris não é também apenas o número de mortos: é a percepção de que o inimigo está no meio de nós, vive na porta ao lado, pode ser o nosso vizinho.

4. Vai tudo ficar igual no acolhimento aos refugiados? Não, não vai

Um dos tweets mais citados da noite do atentado foi aquele em que alguém recordava que os refugiados não eram os terroristas, eram os que também fugiam dos terroristas. É verdade. Ou quase cem por cento verdade. A areia na engrenagem foi saber-se que o passaporte de um dos terroristas fora processado aqui há umas semanas numa das ilhas gregas a que chegam, nas inumanas condições que todos conhecemos, as vagas de foragidos da Síria, do Iraque, do Afeganistão.

Nada que não se soubesse que um dia ia acontecer. O problema é que agora aconteceu. E a partir deste momento as consequências serão inevitáveis: mais vigilância nos campos de trânsito, mais exigências à chegada, maior dificuldade de circulação. Muitos vão sofrer pela acção de muito poucos, mas a verdade é que se as autoridades europeias não derem provas de uma extrema vigilância, então será muitíssimo mais difícil encontrar quem aceite receber, de braços abertos, como vizinhos, refugiados que, noutras circunstâncias, seriam vistos e avaliados apenas pelo contributo que dessem para as sociedades que os acolhessem.

Mais: da mesma forma que teremos de questionar, sem drama, sem histerismo, as regras da livre circulação no nosso Continente, também teremos de enfrentar sem complexos o tabu da integração, ou da não-integração, das comunidades muçulmanas.

Se não fizermos essa discussão já – sendo que até já é tarde – podemos ter de nos confrontar com as imprevisíveis derivas de eleitorados que, de repente, se sentem a viver num continente em que não se reconhecem. E vamos lá dizer tudo até ao fim, sem medo das palavras: é mesmo diferente a integração de imigrantes que têm uma mesma base cultural e religiosa, neste caso cristã, e a de imigrantes que vivem de acordo com valores morais e referências religiosas muito diferentes. Não queiramos tapar o sol com uma peneira.

Eu não quero ser, e julgo que a maioria dos europeus também não quer ser, como o protagonista de Submissão. Não quero ter de optar entre ser um estranho na minha terra ou submeter-me ao impensável.

5. O islamismo é um totalitarismo? É, e como tal tem de ser tratado

Gostei de ler, no Le Monde que saiu logo a seguir ao atentado, o seu director escrever que, como o seu jornal explicou mais do que uma vez, “o islamismo, pela sua absoluta radicalidade, é um totalitarismo – essa promessa louca de regular todos os aspectos da vida dos homens em nome de uma religião erigida em fonte única de redenção”.

Já estou a ver inúmeras boas almas aos saltos de indignação e a jurarem que o terrorismo nada tem a ver com o Corão. Mas não é isso que estou a dizer. O que estou a dizer é que o islamismo é uma deriva radical da religião muçulmana, uma deriva que recusa a modernidade e a liberdade, uma deriva que se baseia numa leitura dogmática e fundamentalista do livro do Profeta.

Nada devemos ter contra a religião muçulmana – mas temos de ter tudo, e fazer tudo, contra o islamismo. É um trabalho que começa no interior das próprias comunidades muçulmanas, pois é nelas que se trava a primeira das batalhas. Mas é uma guerra que não permite fechar os olhos aos pregadores do ódio que pontificam em tantas mesquitas por essa Europa fora. É também uma guerra em que não podemos recuar um milímetro que seja na defesa da liberdade de expressão, de crítica ou mesmo de sátira, uma guerra onde teremos de enfrentar todos os que estão mais empenhados em perseguir qualquer alegada “islamofobia” do que em circunscrever o islamismo.

Aquilo que conhecemos sobre os mecanismos de recrutamento destes novos jihadistas mostra-nos, mais uma vez, que as raízes do radicalismo e do extremismo quase nunca estão na exclusão social ou na pobreza, antes correspondem à milenar capacidade de atracção das ideologias finalistas e redentoras. É isso que torna ainda mais difícil, no tempo da Internet, detectar a estudante de Medicina ou o jovem mecânico de automóveis que, insatisfeitas com o niilismo por vezes tão opressivo das nossas sociedades, julgam encontrar o seu caminho numa batalha final que podem travar nos confins da Síria ou, armados com uma kalashnikov, numa sala de espectáculos de Paris.

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Como vêm, muitas dúvidas, poucas certezas. Mas uma preocupação: olhar para os problemas para tentar entendê-los, fugindo do receio de criticar o outro. Porque isso, tal como a rejeição do outro, também seria uma forma de racismo: se somos capazes de nos criticar uns aos outros, não podemos deixar-nos atemorizar com os que, em nome da “integração”, recusam ver o ovo da serpente. E muito menos afrontá-lo.