No triénio 2019-2021, Portugal entrou num ciclo irreversível de mudança determinado pela troca de posições entre esquerda e direita.

À esquerda, a cissiparidade persistente entrou em refluxo. A geringonça institucionalizou, desde 2015, a aproximação voluntária entre o que vai resistindo de muitas esquerdas dos anos setenta. Com o surgimento do Chega, em 2019, a essa vontade própria de comunhão sobrepôs-se a imposição das circunstâncias. A tendência continua a sedimentar-se no interior do moderado Partido Socialista (PS), cada vez mais propenso a naturalizar a integração de radicais de esquerda, ou no Bloco de Esquerda (BE), onde figuras gradas radicais passaram a autoidentificar-se como moderadas sociais-democratas.

A direita passou a rumar na direção contrária, da cissiparidade. Cresceu no seu interior o pluralismo e, por vontade própria, os indefinidos Partido Social Democrata (PSD), CDS-Partido Popular (CDS-PP) e Iniciativa Liberal (IL) prestam-se ao papel exigido pelo regime, o de impor a cerca sanitária também no interior do seu campo político ao puritano Chega.

Primeira conclusão: a transição da cissiparidade para a homogeneização é sinal de declínio de um campo político, o que significa que, pela primeira vez desde 1974, o coração político da democracia portuguesa desloca-se para a direita.

Segunda conclusão: só um campo político renovado e em ascensão consegue gerar reformas nas democracias, fundamentais em sociedades descrentes e afundadas em crises.

Terceira conclusão: os movimentos reformistas (distintos na intensidade dos revolucionários) apenas acontecem quando comportam uma dimensão dessacralizadora, isto é, quando espoletam e renovam emoções e sentimentos coletivos. No âmago destes estão questões morais, intelectuais, culturais, identitárias, religiosas ou ideológicas, hoje revertidas em emoções e sentimentos suscitados pelo racismo, minorias, xenofobia, ideologia de género, nacionalismo, fascismo, corrupção, colonialismo, imigração, multiculturalismo, islamismo, globalismo, entre outras questões sociais sensíveis. É sempre o peso dessa dimensão afetiva e emotiva que impulsiona a reforma e renovação das sociedades, sendo ela que dá conteúdo à frieza das questões económicas, financeiras ou fiscais. Julgar possível subverter essa lógica e ao mesmo tempo reformar um regime político é um manifesto de ignorância sobre a condição humana.

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Quarta conclusão: em 2019, a guerra civil doutrinária à direita deu início ao ciclo histórico reformista cujos contornos determinarão o futuro de Portugal.

Olhar sobre a frente leste (PSD, CDS-PP e IL)

PSD, CDS-PP e IL optam por manter pé e meio contra o lado substantivo das reformas (a dimensão emotiva-afetiva), na prática defendem que o jogo político deve continuar determinado pela esquerda à qual reconhecem superioridade moral, e apenas avançam com meio pé favorável às reformas (a dimensão económica). Contra essa direita, a autonomia da vida quotidiana não pára de multiplicar sinais contrários.

É o que faz com que, nas relações entre o Poder e o Povo (expressão feliz de Vasco Pulido Valente), as fissuras geradas pela nova direita antissistema do Chega (1,29% de votos nas legislativas de 2019) se tenham transformado, em pouco tempo, em crateras (11,9% de votos no seu candidato às presidenciais de 2021). Esquerda e demais direita insistem em não compreender que não é a cauda que abana o cão, como referiu Norbert Elias. Não é a aridez de uma classe política acomodada que determina o rumo do icebergue da história e da sociedade quando a rota deixa de lhe ser favorável.

Se sobrepusermos a crise endémica do país, o crescimento da abstenção eleitoral e a alteração substantiva do sentido de voto, desfazem-se dúvidas sobre a erosão social da legitimidade da Terceira República Portuguesa. Esta transita da fase da descrença à da falência moral, um tipo de crise de regime irreversível. De agora em diante, nada mudará em Portugal sem que pelo menos uma das forças políticas consiga alterar, antes de tudo o resto, o primado moral que determina o sentido do destino coletivo. O demais é acessório.

É porque somos humanos que a fonte de todos os falhanços reside no topo da pirâmide, no primado moral. O do regime de 1974 espraia os seus vícios na dissolução crescente das instituições (família, saúde, ensino, justiça, segurança, entre outras), da sociedade (incapaz de se autorregenerar e gerar mobilidade social ascendente), da economia (frágil e afundada numa dívida soberana colossal) ou da política (desregulada pela aridez de princípios, narcisismo, corrupção, nepotismo).

Analise-se a substância dos discursos de Rui Rio aos de José Pacheco Pereira, assim como a produção doutrinária ou programática do PSD; faça-se o mesmo com Francisco Rodrigues dos Santos, Adolfo Mesquita Nunes, Paulo Portas e com o CDS-PP; assim como com Carlos Guimarães Pinto, João Cotrim de Figueiredo ou Tiago Mayan Gonçalves e com a Iniciativa Liberal – e veja-se se existe alguma proposta reformista digna de registo. Domina a carência da mais básica noção de princípios reformistas que ou começam pela moral social ou não começam.

Um regime político em erosão também jamais será reformável sem a renovação do ideal de cultura cívica ou de comunidade cívica contra o falhanço dos histerismos ativistas progressistas globalistas esquerdistas. Procure-se em tudo o que os indivíduos e partidos referidos acima escreveram ou disseram até hoje e só por milagre se encontrará um qualquer princípio reformista em matéria tão fundamental.

Num outro domínio, a sociedade portuguesa jamais conquistará a dignidade e a prosperidade coletivas sem a garantia da defesa da liberdade de pensar e da liberdade da crítica. Na direita do regime (PSD, CDS-PP e IL), não se vislumbra o mais leve impulso renovador num tempo de espiral do silêncioimposta pelo regime. Não faltam segmentos profissionais e sociais compulsivamente silenciados, bastando ser honesto sobre o que se passa nas universidades, escolas, hospitais, tribunais, autarquias e demais instituições controladas pelo Estado. Face a um regime de forte pulsão autoritária que se torna socialmente insuportável, a direita do sistema faz-se bastiã da defesa do ideal e práticas de «liberdade» enquanto propriedade exclusiva da esquerda, a dona desse mesmo regime, atacando, a preceito, a dignidade dos militantes e votantes do Chega.

Não é necessário multiplicar argumentos sobre a ausência de uma pulsão reformista ou renovadora neste campo na guerra civil doutrinária da direita.

Relato da frente ocidental (Chega)

Vejo por dentro a frente contrária por ser parte interessada. O Chega vive da retórica política como os demais partidos, com virtudes e erros. A diferença é a de estar a consolidar, no seu interior, a consciência de não sobreviver dela a prazo. Daí investir persistentemente naquilo que o demarca da direita tradicional preexistente (PSD e CDS-PP) e da direita contemporânea recente (IL). Ambas podem desfazer ilusões sobre cedências doutrinárias e políticas do Chega.

Até agora parece que só no interior do Chega existe a consciência da relevância da conjugação entre bons resultados eleitorais e rápido crescimento da militância no partido, fenómeno que voltou a acentuar-se no mês de janeiro de 2021. É a fórmula que garante a solidez de qualquer partido político, para mais quando a sua inserção social está a sustentar-se numa militância dos mais variados tipos sociais, e disseminada por todo o país e pela emigração. Só um estado de alienação imposto pela comunicação social impede que tamanho óbvio seja de senso comum.

Claro que as vantagens referidas esfumar-se-iam se não se fizesse circular, na nova militância do Chega, ideais de agregação doutrinária e institucional. Um dos mais sólidos é justamente liderar a transição do consenso da moral social da matriz soviética, imposta aos portugueses pelo regime desde 1974 e assente no primado da vitimização, para o primado da autorresponsabilidade, este inserido na tradição milenar do Ocidente europeu da qual deriva a secular nacionalidade portuguesa.

No que envolva atitudes e comportamentos de indivíduos, grupos, instituições, comunidades ou Estado – o Chega está a investir, como nunca, na moral social da autorresponsabilidade, o mais importante pressuposto reformista, à direita, contra toda e qualquer fragmentação moral entre maioria (carrasca) e minorias (vítimas) em nome de um futuro de coesão e harmonia social.

É difícil encontrar fórmula mais sólida de fazer nascer, crescer e projetar no tempo a identidade de um partido político de génese reformista. É isso que está em curso há meses no interior da militância do Chega, e apenas o confinamento tem impedido a aceleração da partilha desse ideal moral transformado em princípio doutrinário da Nova Direita.

Em simultâneo está em curso a reforma do ideal de cultura cívica ou de comunidade cívica que rompa com a hegemonia dos ativismos progressistas globalistas esquerdistas. Trata-se do aprofundamento do princípio da separação de poderes (legislativo, executivo e judicial) em dois domínios: separação entre Estado e Sociedade e separação entre Sociedade (poder da rua) e Instituições (autoridade legitimada). Esse é o caminho de renovação histórica do ideal de democracia.

No primeiro caso, o reforço da autonomia entre Estado e Sociedade, é a via doutrinária de reforma de um regime político decadente porque viciado em impor o inverso por todos os meios, a intromissão abusiva do Estado na vida quotidiana habitual, modelo que a cada dia deixa salientes as suas consequências desastrosas (abuso fiscal, corrupção, má gestão pública, ineficiência dos serviços, degradação das instituições, manipulação e esterilização da vida social, cultural ou económica).

No segundo caso, a autonomia entre a Sociedade e as suas Instituições, reformar implica uma renovação profunda do pensamento social e político, e respetivas práticas, nesta matéria. O Chega promove o ideal de relação entre opostos.

Por um lado, que se preserve a representação da sociedade como um espaço aberto, sem hierarquias, onde todos têm voz, todos são iguais, tudo pode ser negociado, discutido, colocado em causa. A sociedade tem de ser o espaço da democracia plena.

Pelo contrário, a instituição tem de passar a ser representada como o oposto daquela. Deve ser concebida como um espaço fechado e autónomo determinado pelo cumprimento de uma função social específica, por isso reservado aos agentes de dentro para que cumpram a sua missão sem intromissões abusivas, muito em especial políticas. É apenas na instituição que se devem restaurar e imperar valores sociais fundamentais ostracizados pela esquerda, como hierarquia, ordem, autoridade, regras. É desta forma que estes valores estão ostensivamente integrados na matriz identitária do Chega, o único partido político português que abertamente populariza, por essa via, o dever dos cidadãos de respeitarem e defenderem as suas instituições pela partilha social legítima da autoridade.

No olhar doutrinário do Chega, toda a instituição que não regule as atitudes e os comportamentos dos seus membros deve ser considerada uma instituição falhada, não para ser condenada, antes para se autocorrigir. Seja uma família, escola, igreja, associação, empresa, clube. Aqui se inclui a defesa, pioneira em Portugal desde 1974, do dever cívico de respeito por pais, polícias, professores, médicos, enfermeiros, bombeiros, entre outras figuras institucionais socialmente legitimadas.

Rotular o Chega de direita securitária é de uma ignorância e grosseria absurdas, como se uma sociedade livre e regulada por valores sociais e institucionais fosse uma anormalidade.

É no compromisso entre a defesa da autorresponsabilidade moral, da sociedade aberta e da instituição fechada que o ideário do Chega está a renovar, como nunca, o ideal e as práticas da democracia que procurará estender de Portugal, pelo menos, ao mundo ocidental. Não será necessário mais para jogar ao lixo para sempre dúvidas e insinuações patológicas sobre a legalidade, legitimidade, dignidade e identidade de direita do Chega.

É tempo de proporcionar aos portugueses uma reforma democrática profunda contra décadas dos mais variados falhanços.