Com a verdade me enganas, diz o ditado e neste caso é bem verdade. Os spin doctors do regime apressaram-se a espalhar a leitura que devia ser feita ao desabafo que genuinamente saiu da boca de António Costa, assim que recebeu o cheque das mãos de Ursula von der Leyen. É uma piada, explicam eles. Mas a Presidente da Comissão Europeia, se estudou o histórico de Portugal na gestão de fundos europeus, deve ter tomado bem a sério esta graça do Primeiro-Ministro português.

Por cá, com tantos anos de poder socialista, acho que todos devíamos levar a sério o lapsus linguae de António Costa. As piadas socialistas devem de facto ser levadas a sério. “Quem se mete com o PS leva!” Eis uma piada que também desvalorizámos e que o tempo veio provar que afinal era para levar a sério.

Não, não é maldade. A própria Elisa Ferreira, Comissária Europeia para a Coesão e Reformas, também levou a sério a piada. Ela, que é da casa e foi escolhida pelo PS, sabe melhor do que ninguém o que a casa gasta. Não é por acaso que já depois da entrega do cheque diz, numa entrevista, que Portugal devia preparar-se para deixar de viver de mão estendida e à custa dos fundos europeus.

A verdade é que o Governo está de facto com pressa para ir ao banco levantar o cheque. Infelizmente, suspeito que não é pelas melhores razões. As eleições autárquicas são já daqui a três meses e o dinheirinho dá jeito para entreter o povo.

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A eficácia com que Portugal foi o primeiro a apresentar o Plano de Recuperação e Resiliência em Bruxelas e, depois, o primeiro a receber o cheque não significa, infelizmente, nem uma mudança de hábitos nacionais, nem a pressa para pôr em prática um programa que verdadeiramente mude estruturalmente a nossa economia. Vimo-lo na forma como o programa foi construído e no muito que não se encontra ao ler todas aquelas páginas. Apesar de tudo, por imposição europeia, as prioridades estão lá. Menos mal.

A Espanha e a Grécia chegaram mais tarde a Bruxelas. Mas o timing não refletiu maior preguiça. Pelo contrário, estes nossos parceiros do Sul preferiram demorar mais tempo, mas apresentar uma verdadeira estratégia para redinamizar as respetivas economias.

O governo espanhol de esquerda pôs o socialismo na gaveta e chamou os grandes empresários do país para ajustar com eles uma estratégia que possa gerar crescimento. Pedro Sánchez sabe bem que não deve ser ele a ir ao banco levantar o dinheiro da bazuca. São as empresas que fazem bom investimento, geram emprego e geram riqueza.

Até a Grécia parece ter aprendido com os maus passos dos últimos anos e apresentou um plano muito ambicioso em Bruxelas. O foco está no investimento reprodutor, dito de outra forma, na disponibilização das verbas para o sector industrial privado e na reforma de serviços públicos que possam servir a economia. “O objetivo é criar milhares de empregos e crescimento económico assente num modelo económico totalmente diferente”, diz o primeiro-ministro grego.

Por cá, lendo o famoso PRR, não percebemos bem qual é a estratégia, para além de ir levantar o dinheiro ao banco. Lido e relido, o que percebemos é que é mais uma vez o Estado que vai gerir a grande fatia do bolo. As obras e a construção civil voltam a estar no radar da atribuição de fundos. Governo e autarquias serão os todo-poderosos na definição de projetos. A ambição é manter a estrutura da nossa economia basicamente na mesma.

“Já posso ir ao banco?” Não é uma piada, é uma frase que nos vai ficar colada à pele nos próximos anos. Quando voltarmos à velha ladainha dos desgraçadinhos, à procura de culpados, António Costa poderá sempre dizer que não enganou ninguém.