A presidente do Parlamento Europeu veio a Portugal para um debate no parlamento. Graças ao PCP (e ao Chega) a visita que podia ser de rotina tornou-se um evento político relevante. Ficou claro que a marca identitária fundadora do PCP como partido do Kremlin continua bem visível. É certo que o PCP até já vagamente criticou Putin, mas essencialmente por não ser comunista e não ter restaurado a “saudosa” União Soviética. Em rigor com quem o PCP está plenamente alinhado é com os comunistas russos e ucranianos. Mas esses são, hoje, acima de tudo, partidos do ultranacionalismo russo e aliados vocais de Putin na sua ação externa de expansionismo imperialista.
Ucranofobia versus Metsola
Há novidade nisto? É verdade que há um elemento de continuidade ao longo dos cem anos de existência do PCP: tudo perdoar e apoiar no expansionismo russo – começando com a invasão da Polónia de mãos dadas com Hitler. Mas ficámos a saber até que ponto isso hoje resulta numa ucranofobia delirante. Culpar o país invadido pelas mortes causadas pela invasão mostra a que ponto o PCP faz eco dalguma da pior propaganda ultranacionalista russa.
E é novo o PCP preocupar-se com a democracia pluralista e a proibição de partidos numa democracia burguesa. Nunca o fez relativamente à velha União Soviética. Nunca o fez, em anos recentes, quando elogia repetidamente a Cuba castrista, a Síria dos Asad, ou até a Coreia do Norte da dinastia Kim.
O PCP começou no tal debate com Metsola por acusar a UE de promover a guerra na Ucrânia de mãos com os EUA e a NATO. Porquê? Por ajudar um país a defender-se. Este é, recordo, um direito e um dever nos termos da Carta das Nações Unidas. Os EUA ainda têm obrigações adicionais como garantes da segurança da Ucrânia por via do Memorando de Budapeste, de 1994, em que Kiev entregou as suas armas nucleares à Rússia em troca da promessa de respeito pela sua independência, segurança e fronteiras. E a NATO? O capítulo VIII da Carta é muito claro: os países são encorajados a criar e a recorrer a organizações de segurança regional, de adesão voluntária, claro. Mais, Putin não invadiu a Finlândia que aderiu à NATO, mas invadiu a Ucrânia que não estava sequer num processo de adesão. O apoio europeu à Ucrânia é uma forma de tentar reequilibrar uma enorme assimetria de armamento que em fevereiro de 2022 se estimava ser de 10 para 1, favorável à Rússia. É uma forma de dar hipóteses a uma paz que não seja uma rendição. Metsola denunciou muito bem a hipocrisia deste falso pacifismo. O PCP contra-atacou acusando a Ucrânia de não ser uma democracia, de proibir partidos e de ter um falso parlamento.
Democracias em tempos de guerra
É verdade que a Ucrânia suspendeu a atividade de 11 partidos, dos quais 2 tinham representação no parlamento. Restam mais de trezentos partidos legais e nove grupos representados no parlamento. É normal proibir-se ou suspender-se partidos numa democracia pluralista? Não é. Pessoalmente prefiro um campo o mais aberto possível. Mas também não é inaudito democracias proibirem certo tipo de partidos. Em Portugal a constituição de 1976 proíbe partidos fascistas. O PCP está contra? Votou a favor em 1976. Na Alemanha, são proibidos partidos ou símbolos da ideologia nazi. Alguém se opõe? Não é ser sério ou rigoroso discutir a proibição pela Ucrânia da exibição pública de símbolos nazis e comunistas ignorando o facto de o país ter sido dos principais palcos dos horrores destes regimes totalitários que aí mataram milhões. Sobretudo, todos os regimes democráticos preveem regimes de exceção, de limitações das liberdades, em períodos de guerra.
A Ucrânia estava a ser invadida quando suspendeu as atividades destes partidos pró-russos sobre os quais havia suspeitas de vários serviços informações, os tais que avisaram que uma invasão russa estava iminente, de que funcionariam como uma quinta coluna do invasor. Recordo que o uso de infiltrados e a instalação de governos fantoches é uma tática que a União Soviética usou repetidamente no passado para justificar e facilitar várias invasões, da Hungria em 1956, à Checoslováquia em 1968, até ao Afeganistão em 1979. O PC ucraniano era publicamente alinhado com Moscovo. O mesmo se passava com o partido criado pelo compadre de Putin, Viktor Medvedchuk, que foi detido a tentar fugir para a Rússia, e depois foi trocado por prisioneiros de guerra ucranianos e agora vive na Rússia. Era razoável pedir à Ucrânia para respeitar um direito de alinhar e colaborar com o invasor? Qual seria o precedente histórico para isso?
A mais antiga democracia parlamentar da Europa, a Grã-Bretanha, proibiu partidos e organizações pró-alemães e pró-italianos, em 1939, nomeadamente a União Britânica de Fascistas de Oswald Mosley. Deteve milhares de dirigentes e militantes destes movimentos, e outros estrangeiros suspeitos, durante toda a duração da guerra. Quando encontrou provas de colaboração, enforcou os colaboradores. Podemos criticar, hoje. Certamente não considero que valha tudo em tempo de guerra. Mas não é sério pedir ao pluralismo democrático que se desarme completamente perante inimigos armados.
Aliás, devíamos ajudar a Ucrânia a defender-se, mesmo que não fosse uma democracia. Apaziguar uma potência imperialista que não respeita tratados ou compromissos, que mente descaradamente, nunca resultou numa paz durável, apenas em guerras mais perigosas, como vimos na década de 1930. Uma paz justa e duradoira será sempre difícil com a Rússia de Putin, mas só é minimamente realista se a Ucrânia estiver numa posição de relativa força e para isso precisa do nosso apoio.
Abusos de guerra
Pode-se abusar da situação desta situação de emergência para destruir uma democracia? Pode e devemos procurar evitar isso. Mas recordo que 23 deputados do partido de Medvechuck, que se distanciaram da invasão, mantêm-se em funções. E o exigente processo de adesão ucraniana à UE será – por muito que isso custe ao PCP – das formas mais eficazes de evitar derivas iliberais. Uma vez dentro da UE, a questão muda.
Alguém ouviu o PCP criticar Putin precisamente por ter usado a sua invasão da Ucrânia para destruir o pouco que ainda restava de imprensa independente e de sociedade civil livre? Alguém ouviu o PCP dizer alguma palavra sobre Alexei Navalny, que mesmo preso num Gulag continua a ser acusado de mais crimes e condenado a mais anos de cadeia pelo crime de ser verdadeira oposição ao senhor do Kremlin? Face a isto é suposto acreditarmos que o PCP descobriu agora, a pretexto da Ucrânia, as maravilhas da democracia pluralista burguesa?
E não, não vou falar hoje dos erros da política externa norte-americana, ou da forma como a democracia na Europa pode ser melhorada, ou do papel do PCP antes e depois do 25 Abril. Não vou fazer isso porque seria desviar-me do tema que aqui quis tratar. Isso não é estranho, nem desonesto. É normal, porque ninguém pode falar com rigor de todos os problemas do Mundo ao mesmo tempo. Evocar outros assuntos é um sinal seguro da falta de argumentos relativamente ao assunto que se está a discutir.