1. Terminou há poucos dias com Leonor Beleza um ciclo de “Conversas” que mantive com várias pessoas* na Paróquia do Campo Grande e agora que acabou terei talvez alguma legitimidade para falar nisso. Antes ter-me-ia faltado o direito de me introduzir no fluxo de um rio que solto, corria, ora de mansinho, ora veloz, ora inquieto, ora seguro, ora em tumulto, para o mar. Também não queria ter a imprudência de introduzir indesejado ruído somando-o aquele que – suponho que sem grande eco – fora já tentado introduzir, no correr do rio.

O ciclo chamava-se “E Deus nisso tudo?”, a Igreja do Campo Grande abriu as portas, entrou quem quis, muita gente acorreu a esta chamada. É muito interessante, por vezes mesmo apaixonante, observar o que as mulheres e os homens com fé fazem com ela nas suas vidas: como se relacionam com o divino, encaram a figura de Cristo, olham o Espírito Santo, vivem os seus diversos quotidianos – as vezes antagónicos entre si – pessoais, familiares, profissionais, sociais, culturais. Como lidam, enfim, com algo de muito parecido com um tremendo compromisso. E porventura ainda mais se se tratar de uma figura dita (horrenda expressão) “pública”: será a exposição pública fornecedora de maior delicadeza, exigência, complexidade, necessidade de discrição na prática da fé e no seu testemunho? Ou pelo contrário? E como era então “Deus nisso tudo”? E o “isso tudo” era justamente uma vida pública preenchida e com alto grau de exposição.

E como não sabia, fui perguntar-lhes (nunca se pode deixar de fazer perguntas). Já o fizera, uma vez, há três anos, na Capela do Rato, com o apoio estimulante de José Tolentino de Mendonça, que então lá oficiava antes de partir para Roma; voltei a fazê-lo este ano, com o vivo empenho do jovem Pároco da Igreja do Campo Grande, Hugo Gonçalves, e do seu ex Prior Vitor Feytor Pinto mas que ainda é hoje na Paróquia uma presença vital — celebrando, escrevendo, acolhendo — e o apoio da Renascença.

2. Seguiram-se diversas quartas feiras de conversas abertas com os meus interlocutores, todas elas porém com uma mesmíssima característica: foram extraordinariamente diferentes umas das outras, doze distintas maneiras de falar do sagrado, tantos são os caminhos afinal para o mesmo porto. Como se Deus “prolongasse” um intimo diálogo já encetado com cada um dos doze conversantes e como eu gostaria de saber descrever aqui o fulgor, o inesperado, a vitalidade dessas “diferenças” que nos iam interpelando e surpreendendo. Contando cada um e cada uma a sua história de vida com Deus lá dentro — mas contando-a com marca própria e assinatura pessoal, isto é, como seres humanos únicos e por isso irrepetíveis. Fizeram-no assumindo a primeira pessoa com uma saudável, genuína naturalidade e fizeram-no sem pieguice ou subterfúgio, antes usando da sua liberdade, inteira e quase comevedora de tão substancial.

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Estava este rio a correr quando subitamente fui alertada para a discordância (quanto a tudo, aliás) de um sacerdote – Gonçalo Portocarrero de Almada — manifestada com surpreendente veemência aqui mesmo no Observador.

Discordava ele – ou zangava-se ? — do convite (da minha exclusiva responsabilidade) a José Manuel Pureza, como se a Igreja não fosse lugar e pertença de todos mas apenas de alguns autorizados (e por quem?); como se “a Igreja em saída” pedida pelo Papa não fosse parecido com isto; como se “em casa do Pai não houvesse muitas moradas”; como se o Evangelho não recomendasse um coração atento em vez de uma mão de aço. Dir-se-ia que evoco o trivial. Pois evoco: não é senão neste imenso trivial que reside o princípio de tudo. Em nome dele não me pareceu afronta nem ofensa trazer para dentro da Igreja a chama da divergência: convidado e convidante num diálogo capaz de transformar o aparentemente instransformável em “discutível” . Abrindo, abrindo, em vez de excluindo, excluindo…Olhos e ouvidos tapados ao outro? Então qual o lugar do “trivial” se não o pomos a render?

3. E onde irei eu buscar humildade e paciência (deficitárias, Deus me perdoe, após ter lido um texto azedo) para suster a insinuação, falsa e feia, de que “levei” o deputado José Manuel Pureza “10 dias antes das eleições”, insinuando-se que intencionalmente beneficiei um partido, o Bloco de Esquerda — do qual estou mais longe que a terra da lua — ao dar-lhe voz e palco. Sabendo certamente muito bem o autor do escrito que um programa destes é por definição preparado com meses de antecedência e logo que há quatro ou cinco meses, quando o propus à Paróquia, se ignorava em absoluto a data das eleições europeias (sendo certo que, ao sabê-lo, a vida – a minha e a destas “Conversas” – continuou, indiferente e incólume, à proximidade de tal acto eleitoral).

4. Por uma questão de esclarecimento mas sobreudo de seriedade intelectual face aos leitores que se viram metidos nisto sem aviso prévio, deixo aqui a sua indignada indignação.

Ei-la, num texto aqui mesmo saído, há algumas semanas:

“O patriarcado de Lisboa publicou, na sua página numa rede social, um quadro elaborado pela Federação Portuguesa pela Vida, que elucidava os cristãos sobre o ideário dos vários partidos, em relação a questões que são essenciais para qualquer fiel que queira votar de forma livre e responsável. Quando se soube, iam caindo o Carmo e a Trindade: Valha-nos Deus, que voltou o fantasma do voto católico! Ai Jesus, que os bispos andam a fazer campanha eleitoral! Que Nossa Senhora nos acuda e salve o povo laico do papão do clericalismo!(…) As puríssimas virgens, que tanto se escandalizaram com o atrevimento dessa publicação num ‘site’ oficialmente católico, não ficaram, contudo, incomodadas com a ida, no passado dia 16 de Maio, de José Manuel Pureza à igreja do Campo Grande, para falar sobre a sua militância política no partido mais anticatólico de Portugal, porque defensor acérrimo de todas as mal-ditas causas fracturantes.

Apesar dessa conversa, integrada no ciclo “E Deus nisso tudo”, ter tido lugar dez dias antes das eleições e no espaço sagrado de um templo católico, ninguém se escandalizou. Nem sequer de ouvir Pureza, de camisa aberta, refastelado num sofá, mesmo à frente do altar em que se celebra a Eucaristia, dizer desrespeitosamente que “Jesus é um tipo que se dá com prostitutas”.

A conclusão é óbvia: não se pode informar os católicos sobre as opções dos diversos partidos, em questões que relevam para a fé e para a justiça social, mas pode-se ceder o altar de uma igreja lisboeta, a dez dias das eleições europeias, ao principal promotor, no nosso país, da eutanásia.”

Fim de citação.

5. E já agora e porque sempre me aflige a gratuitidade infértil, tenho o dever de o informar que outros cavalheiros que ali estiveram — ovelhas mais dignas de si do que outras? – também iam de camisa sem gravata; que é inexacto e induz em desnecessário erro dizer que o meu convidado “foi lá falar da sua militância política” quando nos foi falar da sua vida e do seu caminho (que é feito disso mas não só disso); e finalmente que me espantou não só o uso — por tão revelador de um coração em fúria — da expressão “refastelado na cadeira” para classificar o deputado Pureza; como a alusão enviezadamente retirada do contexto da conversa segundo a qual José Manuel Pureza se referiu a Jesus “desrespeitosamente” como “um tipo que se dá com prostitutas” (e não dava?).

6. Finalmente: manifestou o sr. Padre a sua opinião escandalizada, está no seu direito. Eu retive a sua distração: houve alguém mais fracturante do que Cristo?

*Como todos e todas foram muito bem vindos à Igreja do Campo Grande mas apenas José Manuel Pureza foi aqui mencionado no texto que me vi compelida a escrever, deixo obviamente o nome dos restantes: Maria Rueff, António Lobo Xavier, Isabel Capeloa Gil, Leonor Xavier, Joana Carneiro, Ruy Vieira Nery, Peu Madureira, Paulo Miguel Pereira da Silva, Henrique Leitão, António Filipe Pimentel, Leonor Beleza. (E agradeço-lhes).

PS: Como muita gente retive, com aplauso, a extraordinária “novidade” que significou ,e não só geracionalmente, o discurso de João Miguel Tavares no dia 10 Junho (fica para a semana). Mas o que retive ainda mais foi que o imediato (fulgurante?) acolhimento que ele teve nas redes sociais, foi inversamente proporcional ao comentário — ou mais discreto, ou mais hesitante, ou mesmo quase omisso — nos écrans televisivos. Sucede que não bastará evocar pela enésima vez a considerável e muito nossa conhecida diferença entre opinião pública e opinião publicada. Talvez seja preciso começar a pensar a sério noutras novidades e noutras diferenças que estão por aí.