José não consegue mexer as mãos. Sentado numa cadeira de rodas, dita a Amílcar as suas impressões sobre a vida, que o amigo transcreve para um caderno às quartas-feiras, há dez anos. José guarda numa gaveta a que não consegue chegar sozinho mais de uma dezena de cadernos de ditados da última década, ordenados por anos. Abrindo-a a seu pedido, dou com os pequenos blocos, preenchidos com a letra de Amílcar a esferográfica de várias cores. O que as páginas dizem é quase sempre o mesmo, mas a caligrafia é surpreendentemente outra a cada semana, a cada ano — por vezes expressiva e decidida, outras vezes desenhada, ou apagada, ou sumida. Às vezes, a caneta falha, e a voz continua. Às vezes, houve uma doença e usaram-se minúsculas. Doutras, foi apenas um telegrama sem sumo, mas a letra é a de uma criança que está a aprender a escrever e carrega muito na caneta. Serão os cadernos uma história da vida de José ou da de Amílcar, cuja caligrafia e pontuação dá o ritmo, o tom, e a forma às memórias do seu amigo? Talvez a nossa letra conte a história da nossa vida mesmo desenhando apenas a vida de outra pessoa.

O ditado de José não se queixa de nada, não lamenta nada. Nunca invectiva, nunca se revolta, nunca berra, nunca chora. Fala do estado do tempo e do estado da alma sempre com uma distância respeitosa como se falando de si próprio contasse a vida de outra pessoa. É circunspecto mesmo quando se diz alegre, nunca se deixando tomar pela auto-comiseração, nem pela melancolia, nem pela euforia enquanto dita ao amigo o que lhe vai na alma. Mas ensina a escrever como se ditássemos o que queremos dizer a outra pessoa, e por maior que fosse a amizade nos guardássemos da página como apenas se justifica que nos guardemos de nós mesmos. E, contudo, se Amílcar está impaciente ou tem um problema qualquer, o ditado cerimonioso de José sobre a passagem das estações passa para o caderno numa caligrafia convoluta, de cabeça enrolada. Se Amílcar está apaixonado, os reparos de José ao treinador do Benfica são desenhados como bilhetes de amor; se um está doente, a letra daquele que está bem restabelece-o, quando ambos envelhecem, não têm como se esconder um do outro.

Quem os veja junto ao banco de jardim onde se encontram sente-se como se estivesse em plena rua com vista para um quarto fechado. Uma vez por semana, as mãos de um homem são as mãos do seu amigo, a condição de um a do outro e essa troca, feita à vista de quem passa, devolve-nos a rua e a amizade como lugares onde às vezes não sabemos onde pôr os pés.

Num gravador, dezenas de conversas. Transcrevendo-as, rapidamente se percebe como é difícil pontuar o discurso de uma pessoa com quem se conversou. Nos ditados de José, Amílcar usa apenas pontos finais e vírgulas, meio à pressa, às vezes pontuação nenhuma e maiúsculas. Mas se quisermos ser fiéis ao ritmo da fala de uma pessoa, percebemos a pontuação como um solfejo da humanidade. Fatalmente, pontuamos os outros da maneira como ressoam em nós. Parece, contudo, que a cada voz cabe uma escolha idiossincrática de sinais de pontuação que se tivermos ouvido a consegue fazer saltar da página. Talvez todos quantos escrevem quotidianamente não possam fugir à náusea de escutar nas suas páginas a voz da pessoa mais aborrecida que conhecem e, a partir de certa altura, já não conseguem suportar: o estafermo loquaz que são eles mesmos. Já a voz de quem não saberíamos inventar — nos seus requebros, enlevos, suspiros, soluços, silêncios — é uma surpresa mesmo quando, tendo de a pontuar, estamos cingidos à maneira como o nosso ouvido a percebeu. Encontrar a pontuação certa para a voz de um estranho é bem mais belo, profundo e árduo do que procurar, e encontrar, a nossa voz. E talvez seja até parecido, penso, ao passar de raspão pela amizade falada de José e Amílcar, e tenhamos de aprender a dizer o que queremos dizer apenas como se pontuássemos o que nos disse outra pessoa.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).

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