Enquanto o primeiro-ministro entrega a governação do país aos secretários de Estado interpelados pela comunicação social acerca dos problemas que se acumulam sem solução à vista, como as filas de espera para o Cartão do Cidadão, não cessa a campanha para as eleições de Outubro: é um «bodo aos pobres» diário, desde os escassos milhares de euros oferecidos a emigrantes para que voltem ao país até aos milhões prometidos a uma pirâmide invertida de centros de investigação onde há mais «excelentes» que «bons»

Entretanto, o estado da saúde em Portugal está cada vez mais ameaçado. A despesa privada não para de crescer em relação à despesa pública (SNS), o que dá a medida exacta da direcção que o sistema tomou durante e após a depressão, sem volta atrás. Com efeito, se é certo que o gasto total com a saúde passou de 10 para 17 mil milhões entre 2000 e 2017, aumentando 70% mas mantendo um gasto médio (8-9% do PIB) abaixo da UE, a parte dos particulares aumentou perto de 80% enquanto a despesa estatal só cresceu 50%.

Acresce que as contas públicas não são claras: cerca de 500 milhões de euros anuais da ADSE são incluídos no orçamento de Estado quando se trata de uma espécie de companhia de seguros para os funcionários públicos, o que adiciona mais 4% à despesa dos particulares com as companhias de seguros, cujo peso mais do que quadruplicou de 160 para 680 milhões de euros nesse período. O conjunto do negócio eleva-se pois a mais de mil milhões, parte dos quais a chinesa FORSUN! Do seu bolso, as famílias já gastavam perto de 5 mil milhões de euros em 2017, equivalentes a metade da despesa pública, a qual também é paga por nós, obviamente!

A questão dos cuidados de saúde, incluindo todas as despesas, está mais associada do que nunca ao tremendo envelhecimento demográfico da população devido à multiplicação de doenças crónicas próprias da idade. Faz exactamente dez anos que o meu colega Pedro Alcântara e eu publicámos O estado da saúde em Portugal – um estudo onde o sistema era avaliado pelos utentes. Em 2009, a situação combinada da saúde pública e dos cuidados privados que já na altura existiam, mas com muito menor peso, era bastante bem avaliada pelos utentes. Nesse ano, a despesa global era ligeiramente superior à de hoje e a privada claramente menor.

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Houve, portanto, uma privatização acentuada dos cuidados de saúde, a qual se deve fundamentalmente à fuga de utentes para o sector privado, através das companhias de seguros e da ADSE, perante o aumento das chamadas «esperas», sobretudo nos hospitais. Isso já na altura acontecia com algumas especialidades médicas, alargando-se entretanto às outras. É esta a chave combinada do problema, que tem raízes profundas no passado do próprio SNS e das movimentações da classe médica no final do antigo regime.

Não é por acaso que o Professor João Lobo Antunes escrevia, a propósito da implantação do «estado social» em Portugal, que «a corporação médica tinha uma hegemonia monopolista e esta tendência persistiu até hoje» (Ouvir com outros olhos, 2015, p. 58). É de recordar que, no dia 25 de Abril, a sede da Ordem dos Médicos estava encerrada à ordem da PIDE e, entre os médicos então detidos achavam-se futuros membros dos governos provisórios…

A chamada «falta de médicos» resulta do controle que a Ordem tem mantido sobre o restritivo «numerus clausus» para os cursos de Medicina. Quanto às remunerações dos profissionais de saúde, é virtualmente insolúvel. Ou se permite a acumulação do exercício profissional nos sectores público e privado e estarão cada vez mais insatisfeitos com as condições de trabalho no sector público; ou não se permite… e será a debandada geral em favor das remunerações do privado, ficando portanto cada menos profissionais no SNS sem no entanto que o sector privado tenha meios para pagar bem a toda a gente!

Na realidade, os bons cuidados de saúde são demasiado caros para serem pagos pelos doentes. Não há hospitais que deem lucro: nem públicos nem privados. Não sendo os impostos suficientes para pagar a saúde, só os pagamentos das pessoas saudáveis às companhias de seguros podem manter hospitais adequados e estes, por seu turno, funcionam como chamariz para tomar um seguro!

A solução de fazer pagar a todos os contribuintes um «imposto de saúde» não é má ideia e já é praticada em inúmeros países, sujeita às regras de probabilidade de estar doente. Já existe a ADSE e o que se tira aos impostos em geral mas, para garantir serviços condignos, faltam muitos milhares de milhões de euros. Assim houvesse um governo com coragem para criar um seguro de saúde obrigatório. Ficar calado e fazer de conta que uma nova lei vai resolver o problema, isso é mistificação!