Eu sou de Coimbra. O mesmo é dizer que em criança e na adolescência a Figueira da Foz era a minha praia (São Martinho do Porto também, mas isso não vem ao caso). Nasci em 1974, portanto as minhas memórias dessa época de praia são dos anos 80. Invariavelmente, essas memórias envolvem mulheres em topless tomando banhos de mar ou de sol. Lembro-me de, muito criança, ter ficado com os olhos vidrados numa francesa (julgo que era francesa, mas sei lá), que, ao ver-me especado, se riu para mim. E eu ri-me para ela e voltei ao meu castelo de areia.

Lembro-me também de, em adolescente, quando a miopia já era mais forte, ter de pôr os óculos, se quisesse ver alguma coisa. Mas, claro, usar óculos na praia é bastante inconveniente pelo que acabava por tirá-los, tornando a praia menos interessante do que podia ser. Nunca tive problemas nem complexos em usar óculos. O principal incómodo talvez fosse mesmo esse. Estou a exagerar e a brincar, claro. A verdade é que o topless era tão corriqueiro e descomplexado que não ligava ao assunto. Eram pessoas que estavam à vontade na praia, tal como a minha mãe estava em casa.

Como escreveu Pêro Vaz de Caminha na sua “Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil”, descrevendo as índias: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.

Quando me tornei adulto, deixei de gostar de praia, pelo que o assunto morreu para mim, mas sempre acreditei que, sendo a sociedade cada vez mais liberal, se mudasse alguma coisa, seria no sentido de o topless se tornar ainda mais generalizado. Sendo pai de duas miúdas, a mais velha com 10 anos, já esta década voltei a ir regularmente à praia. Figueira da Foz, Esposende e as praias do Algarve são as que mais frequento. Voltei a fazer castelos de areia e muralhas que estoicamente resistem ao mar. Ainda hoje o fiz. Mas a verdade é que as mamas destapadas desapareceram totalmente ou quase.

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É como se em duas décadas a sociedade se tivesse tornado muito mais conservadora. Estranhei porque não tinha essa ideia. Do que vejo na televisão, das roupas que estão na moda, dos enredos das séries, não tinha ficado com a ideia de que esse conservadorismo tivesse invadido a sociedade portuguesa. Pensava eu que as portuguesas estavam cada vez mais libertas e, afinal, estão cada vez mais presas.

Neste momento, imagino que o leitor e a leitora pensem que lá estou eu com mais um dos meus artigos sem qualquer interesse. Mas, claro, estão enganados. Este assunto é mesmo tão importante que a revista Elle, há uns anos, lhe dedicou uma capa onde tinha a pergunta inquietante: “La Fin Du Topless Sur La Plage?”. O inquérito mostrava que o topless, outrora um ex-libris das praias francesas, já só era praticado por 2% das mulheres mais jovens. Mesmo jornais altamente respeitáveis, como o The Guardian ou o Observador, fizeram eco dessa preocupação.

Como sabem, vivi 4 anos nos Estados Unidos, enquanto fazia o doutoramento. Lá, tanto quanto pude perceber, o topless era praticamente interdito. E a verdade é que os americanos (e as americanas) tinham (e presumo que ainda tenham) uma relação muito marada com as mamas. Na televisão, pelo menos em canais abertos, nem vê-las. Mesmo filmes eróticos, como o Showgirls, ou eram cortados ou editados de forma a tapá-las. A revista da Victoria Secret, que eu recebia em casa — estão neste momento a pensar que não é uma revista mas sim um catálogo, mas, para mim, era uma revista —, tinha vários soutiens transparentes ou semi-transparentes e, incrivelmente, os mamilos das modelos eram apagados com Photoshop! Ao comentar isto com alguns colegas, disseram-me que eu só podia ser maluquinho para me revoltar com o assunto. Eu respondia que só alguém com uma mente muito perversa é que se lembraria de apagar os mamilos das fotografias e que os tarados eram eles e não eu.

Enfim, pude observar em directo a falta de maturidade dos americanos quando, no espectáculo da final de futebol americano, o famoso Super Bowl, Justin Timberlake, inadvertidamente (?), põe a mama de Janet Jackson à mostra. O mamilo esteve à mostra um segundo. A emissão foi logo cortada. Em minha casa, devia estar com uns 20 colegas a ver a Super Bowl e apenas uns 3 ou 4 se aperceberam do assunto. Lembro-me de uma amiga (bem adulta, note-se) ficar de boca aberta e em estado de choque com o acontecimento. Era algo de brutal e nunca visto. Eu, claro, perguntava qual era o problema. Todo aquele escândalo me parecia surreal. Mas estava sozinho. Era óbvio para todos que era inadmissível. Coitadas das crianças que estivessem a ver. O drama foi tão grande que a presença de Janet Jackson nos Grammy Awards da semana seguinte foi cancelada. A estação de televisão, a CBS, foi multada em meio milhão de dólares. Um disparate pegado.

Mas voltemos à Europa, a Portugal e às portuguesas. Como já perceberam, este é um assunto que me preocupa sobremaneira. Que raio, depois de tantas décadas de luta pela libertação das mulheres, irão as minhas filhas viver numa sociedade mais conservadora do que a minha? As únicas explicações benignas que eu encontrava para esta mamofobia eram duas. Por um lado, preocupações com a exposição solar e com o cancro. Por outro, e acredito que esta seja a principal explicação, o facto de neste momento quase todos os telemóveis terem excelentes câmaras fotográficas torna qualquer pessoa um potencial mirone. Havendo tarados para tudo e havendo tudo na internet, também deve haver alguns sites especializados em fotografias de mulheres em topless tiradas na praia.

Este Verão não estava a ser excepção. Vim duas semanas para a praia, aqui no Algarve, e o padrão dos últimos anos parecia confirmar-se. Até ontem. Ontem fui a uma praia onde tinha várias mulheres nas minhas redondezas imediatas em topless. Estranhamente, muito estranhamente, devo dizer, esta foi a primeira vez nos últimos anos em que fui à praia sem a minha mulher, que teve de regressar a Braga uma semana antes de mim, tendo eu ficado com as crianças. Isto levanta a hipótese curiosa de tudo ser o resultado de uma orquestração da minha maquiavélica querida esposa. Será que tem sido ela a escolher as praias nos últimos tempos ou, ainda mais perverso, a induzir as minhas escolhas?