Não é só a Catalunha…

É também o País Basco e o fim da Espanha como a conhecemos. E o contágio: depois da Catalunha, como nos terramotos, poderão seguir-se… a Bélgica, que há tantos anos ameaça fraccionar-se entre valões e flamengos. E Veneza, região de Veneto, que em referendo não vinculativo em 2014 votou pelo regresso à República que foi até 1866, o que arrastaria provavelmente todo o Norte de Itália, farto de pagar despesas do pobre mezzogiorno italiano.

Não é só a Catalunha.

É também a Sardenha, claro e ainda em Itália o Tirol do Sul, cujas raízes (o coração e até a língua, o alemão) estão noutro local, mais perto da matiz germânica pretérita do que dos arroubos transalpinos que prevaleceram após a 1ª guerra mundial. E a Escócia, ferida não fechada, espada de Dâmocles sobre a cabeça da união britânica. E a Córsega, pátria de Napoleão símbolo de França, a despertar a fúria centralista de Paris, preocupada com o contágio sobre a Bretanha ou a Alsácia, sinais de um país unido – mas não muito…

Não é só a Catalunha. Até na Baviera já houve quem manifestasse intenções independentistas (caso de Wilfred Scharnagel, da CSU), o que para já não parece tocar nenhuma corda sensível no coração dos bávaros – para já. A Baviera é quem mais paga para os Estados alemães mais pobres e tudo pode mudar com facilidade, como se tem visto noutros países.

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Não é só a Catalunha e por enquanto referi apenas países do Ocidente: a leste o panorama é ainda mais frágil – e tenso (vidé Ucrânia, claro).

Um pouco por toda a Europa, o cimento que colou nações identitariamente diversas em Estados unitários, federais ou regionais, começa a estalar. São muitas as explicações evocadas:

O crescimento de organizações internacionais de vocação universal, como a ONU, a OMC, o FMI, a própria União Europeia – regional, mas com clara influência global -, é uma clara ameaça à coesão dos Estados-nação; a democratização do espaço público, com a multiplicação das fontes de opinião, que permite a expressão livre dos anseios de povos com identidade própria, contidos em espaços maiores que, aos seus olhos e consciência, os mantêm pela força ou pelo menos contra vontade; e as crises económicas, que acentuaram as tensões, com o sentimento de injustiça sentido pelos que consideram contribuir em excesso e os que lamentam a falta de solidariedade do todo ou de partes do todo a que (ainda) pertencem.

O nacionalismo foi um instrumento de afirmação da identidade dos distintos Estados-nação da Europa. Aos poucos, contudo, foi-se tornando um obstáculo à sua sustentação, detido como tem sido por líderes e partidos que o utilizaram para conquistar, e depois manter, o poder. Em Espanha, por exemplo, a aspiração catalã à independência (estando os catalães divididos, como se viu nestas eleições), resulta em partes mais ou menos iguais da reacção contra o centralismo de Castela e da vontade de gerir a riqueza produzida pela região (ainda que tributária da pertença a um grande mercado como o espanhol).

Escrevi há cerca de um ano neste mesmo jornal a propósito do referendo na Escócia: “o paradigma nacional foi posto em causa: invertendo mais de 2 séculos da progressiva união de povos sob a égide de Estados (mais ou menos) unitários, a Europa Ocidental – a leste é outra história – conhece a partir de agora uma verdade nova simples de enunciar e profundamente complexa: as nações e os povos podem autonomizar-se dos Estados a que pertencem, pois os laços identitários que os justificam são mais frágeis do que todos criam. (…) Emerge agora (esta ideia) de uma união britânica que sempre pareceu a mais sólida na sua precariedade, porque assente numa espécie de pacto volitivo inicial baseado na assunção plena do reconhecimento das diferenças dos respectivos povos – pois se as nações britânicas até têm cada uma a sua própria seleção de futebol!  (sim, é um auto-plágio, o que parece ter-se censurável, mas que dá jeito para ilustrar uma ideia que por acaso é nossa, ainda que nos tempos que correm nunca haja ideias completa ou exclusivamente nossas).

A Escócia decidiu manter o Reino unido, mas a decisão não foi esmagadora como queria Westminster e a ameaça permanece. Em Espanha, o futuro imediato ditará o destino de outro Reino. E o futebol até terá sido (vá-se lá saber) um dos factores que contribuiu para a incompletude da vitória do Junts pel Si, com a possibilidade do Barcelona ficar resumido a jogar um campeonato catalão com o Real Club Desportivo Espanhol (a ironia é clara).

Há uma ideia simples – quase simplista – que não resisto a expressar: à primeira cisão concretizada, seja a da Catalunha, Escócia, País de Gales ou Córsega, muito provavelmente se seguirão outras, como peças de um dominó, cada uma delas ciente e orgulhosa de uma identidade própria, na reconquista de um destino autónomo em nome de um direito assente na excepcionalidade de laços antigos das velhas comunidades de origem.

Contra esse direito, contudo, estará o direito da União Europeia e a Constituição espanhola. Steffen Seibert, porta-voz do governo alemão, afirmou-o na segunda-feira: a soberania e a integridade territorial dos Estados europeus, garantidas pelo Tratado da União Europeia, devem ser respeitadas. E a Constituição de Espanha declara a indivisibilidade do Estado. No rescaldo destas eleições – e com as eleições gerais espanholas no horizonte (Dezembro) resta às partes envolvidas procurar, com bom senso, um caminho alternativo às duas únicas opções por enquanto assumidas por ambas: independência ou status quo.

Haverá sangue? Dificilmente. Mas os europeus, entretidos a forjar uma união de soberanias com mercado e moeda únicos, têm de encontrar um caminho para evitar que os seus Estados-nação se fragmentem, criando novas e profundas divisões no seu seio. A Europa que impôs ao continente africano fronteiras desenhadas a régua e esquadro, está agora confrontada com a sua própria Conferência de Berlim – ao contrário.

E em Portugal? Velha nação com quase 900 anos, talvez seja dos poucos países europeus imunes ao contágio. Mas nunca fiando; como dizia a minha avó: está na hora de pormos as barbas de molho (e talvez não fosse mau que o assunto fosse discutido na campanha eleitoral, mas isso é capaz de ser sonhar alto de mais).

Desculpem a interrupção, a campanha segue dentro de momentos.