Conheci o Professor Manuel Heitor há quase 20 anos. Eu estava em funções públicas e ele era secretário de Estado. Cruzámo-nos várias vezes depois disso em outros cargos e funções que desempenhei, nomeadamente quando estive na direção da sociedade das ciências médicas de Lisboa. Nunca foi propriamente cordial, não é o seu género, mas lá trocávamos cumprimentos. Desejei-lhe felicidades na tomada de posse como ministro. Voltámos a cruzar caminhos depois de eu ter saído do governo. Depois disso, faz de conta que não me conhece. Na verdade, estou mais velho e isso deve notar-se na minha cara. Admito que não me reconheça. Já era assim antes da máscara obrigatória.

É um homem inteligente, sem o rasgo, nem a educação do Professor Mariano Gago. Digamos que absorveu alguma da arrogância do PS de hoje. Mas tem desempenhado bem as suas funções, tanto quanto posso apreciar, e já anteriormente tive ocasião de o defender em alguma crónica, em especial quando defende a necessidade de aumentar o número anual de licenciados em Portugal.

Deu uma entrevista, no passado dia 2 de setembro, ao Diário de Notícias. Foi pouco cuidado na linguagem. Estou certo de que não esperaria tanta controvérsia. Atacado pelos médicos em geral e até por aqueles que estudam para ser médicos, merece que a polémica seja colocada no contexto adequado.

Quando lhe perguntaram “que outros legados quer deixar”, respondeu que seria “…o alargamento do ensino e da modernização do ensino da Medicina. Espero chegarmos a 2023 com a possibilidade, ou as oportunidades, de virmos a ter três novas escolas de ensino da Medicina, nomeadamente em Aveiro, Vila Real e na Universidade de Évora”.

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O argumento de que há médicos a mais em Portugal, falso para quem ansiosamente aguarda mais de 1 ano por uma consulta hospitalar no SNS ou meses em alguns hospitais privados (menos, obviamente, se o cliente puder pagar a pronto e preço sem convenções), não é razão para argumentar que não precisamos de formar mais médicos. Como é falso que tenhamos médicos a mais se olharmos para os que efetivamente exercem medicina clínica, ainda mais falso se olharmos para o futuro próximo em que as aposentações continuarão a suplantar a formação de novos especialistas. O argumento de que a oferta de formação universitária de um País deve estar dependente das possibilidades de encontrar emprego nesse País é, compreende-se com intuição desprovida de preconceito, um disparate. Se assim fosse, desde já deixaríamos de formar juristas, historiadores, biólogos, alguns engenheiros, gestores ou economistas.

Ultrapassando esta visão tacanha que foi usada para combater novos cursos de medicina em universidades privadas, resta-nos esclarecer alguns pontos.

Será que os ditos centros académicos de que o Professor Manuel Heitor deseja têm condições clínicas, assistenciais, satisfatórias? Não falo de condições para ensino básico, as que terão de ser construídas de raiz – talvez não em Aveiro-, mas sim de qualidade assistencial suficiente para poderem ser centros de demonstração e ensino de medicina. Não será evidente que a capacidade de ensinar medicina, ou outra profissão de saúde, num hospital do SNS depende da qualidade estrutural, processual e de resultados de saúde? Os três centros hospitalares que refere já terão o nível adequado? Até que ponto está o ministério de Heitor com vontade de ajudar o SNS para que mais hospitais possam ser universitários? É que antes de ensinar medicina é preciso que a medicina praticada seja excelente e a do SNS nem sempre é.

Será que já têm corpo clínico suficiente para poderem tratar doentes e ensinar alunos em simultâneo? Não me refiro à cansativa narrativa de falta de doutorados. Na faculdade onde aprendi medicina, com gosto e proveito, conheci alguns doutores que eram mais ignorantes do que internos, psicopatas e incompetentes pedagógicos, ao mesmo tempo que tive o prazer de contactar com médicos – doutorados e não doutorados – que me fizeram o médico que sou, acima de tudo tornando-me numa melhor pessoa. O Professor Heitor, no estrito cumprimento das suas obrigações como ministro, deveria não perder esta oportunidade para simplificar os processos de doutoramento e, no caso dos médicos, recuperar o programa de casamento entre internato de especialidade e doutoramentos que foi desenhado no governo do Dr. Passos Coelho e em que trabalhei sob a liderança esclarecida da Professora Leonor Parreira. Mas, claro, sendo Passista não era programa para aperfeiçoar, mas sim para destruir. E, já agora, reconhecendo que nem os governos anteriores trataram de resolver isso, para quando a equivalência a mestrado dos licenciados ante Bolonha que cumpriram 6 anos de licenciatura médica?

Será que não teria sido melhor ter criado um curso na Universidade de Aveiro antes de ter um em Faro? Será que pretende criar mais cursos de curta duração, como erradamente foi feito na Universidade de Faro, ou vai impor uma formação completa com 6 anos, como deveria ser sempre, independentemente de os alunos já terem uma licenciatura anterior? Será que vai exigir o mesmo que exigiram à Universidade Católica e tem exigido a outros privados que pretendem ensinar medicina ou, porque são universidades públicas, irá ser mais “benevolente” no processo de licenciamento? Finalmente, será que pretende falar com o ministério da saúde, eternamente ignorado no que diz respeito à formação pré-graduada, e com a ordem dos médicos, organismo incontornável para a obtenção de licenças de exercício em Portugal?

Mas Heitor não se ficou por aqui. Ultrapassou os limites da sua competência e meteu foice na ceara alheia, a da sua colega Dra. Marta Temido. Espero que não tenha sido um acesso de ciúmes depois do congresso do PS. Sejamos claros e precisos, a formação de especialistas não está sob a alçada do ministério da ciência e ensino superior (deixemos a tecnologia de fora). Poderia estar, mas não está.

Citemos a entrevista.

“Se for ao Reino Unido o sistema está diversificado, sobretudo aquilo que é a medicina familiar, que tem um nível de formação menos exigente do que a formação de médicos especialistas… A questão é que para formar um médico de família experiente não é preciso, se calhar, ter o mesmo nível, a mesma duração de formação, que um especialista em oncologia ou um especialista em doenças mentais”.

Ora, a questão está na terminologia empregue. Confundiu exigência com tempo de formação.

No Reino Unido (RU) ainda há um sistema de internato geral, “foundation years”, a que se seguem 3 anos de “core training” que podem ser complementados por mais 3 anos de treino em sub-especialidade. Os médicos de medicina geral e familiar do RU apenas precisam de fazer 3 anos para exercerem como especialistas.

O mesmo para ser psiquiatra ou internista, podendo fazer mais 3 anos para obterem uma subespecialidade, como pedopsiquiatria, hematologia, cardiologia, oncologia, etc. No caso das cirurgias é o mesmo. Só se é ginecologista ou ortopedista depois de 3 anos de treino em cirurgia geral.

Confesso que gosto deste modelo, com defeitos e virtudes, também seguido de forma geral em outros Países, nomeadamente nos EUA. Só que na UE há um regime de reconhecimento mútuo de especialidades, cheio de erros, que não permite uma mudança simples e não negociada dos regimes de formação de especialistas, matéria que está dependente dos colégios de especialidade da ordem dos médicos. Algumas especialidades em Portugal, incluindo a hematologia que exerço, têm currículos demasiado longos, desajustados das necessidades e com estágios desnecessários porque inúteis. De um modo geral, falta formação básica aos nossos especialistas. Note-se que eu defendi o fim do internato geral tal como ele existe. Mantenho a defesa dessa posição, já que o internato geral deveria ser substituído pelo “core” habilitante, os primeiros 3 anos, do internato de especialidade. Mas aceito que é matéria demasiado técnica para ser aqui apresentada. O fim do internato geral em Portugal foi pensado para garantir igualdade entre licenciados, já que um médico português licenciado na República Checa pode frequentar imediatamente o internato da especialidade em Portugal e um português licenciado em Portugal ainda tem de passar pelo internato geral, diga-se de passagem, absolutamente inconsequente nos moldes atuais. Todavia, reconheço, pode haver lugar à reforma do internato geral sem a sua abolição. O que de todo não faz sentido é a realização do exame para seriação na escolha de especialidade antes de ter completado o internato geral, se o quiserem manter.

Claro que o Professor Heitor se contradiz quando afirma “…valorizando também outras profissões médicas, como, por exemplo, os médicos de família, que sabemos que na nossa sociedade, e sobretudo no sul da Europa, não são tão valorizados como outras especialidades”. Médicos de Família não são uma profissão médica, são médicos e não há outra profissão médica que não seja ser médico! E se os quer valorizar, não pode dizer que os quer com formação menos “exigente”.

O mais importante da entrevista do Professor Manuel Heitor é que ele demonstrou estar interessado na formação dos profissionais de saúde, percebe a necessidade de olhar para a capacidade formativa nacional de médicos e olha, ainda que com pouca atenção, para o quintal da vizinha. Expressou-se mal, mas levantou pontos que merecem uma discussão cuidada, nomeadamente a da formação de especialistas médicos.

Mas ainda mais relevante é a teimosia, bem na linha do governo, quando refere não retirar nada do que disse sobre a formação de médicos de família. Poderia ter reconhecido que ao falar de “exigência” e “nível” apenas se estava a referir a duração e modelo de formação e abrir a porta a uma discussão que tarda em Portugal e na Europa. A persistência no erro é sinal de que prefere ficar na boutade. É pena.

PS. A tristeza pelo falecimento do Presidente Jorge Sampaio tem também de ser um luto por alguém que colocou sempre a defesa da Saúde Pública na primeira linha da sua atividade política. Além de um grande conjunto de ações que desenvolveu enquanto Presidente da República, promovendo reflexões e fazendo publicar textos orientadores, teve um relevantíssimo papel junto da ONU para a promoção da saúde e prevenção da doença, nomeadamente no que disse respeito à tuberculose e aos estilos de vida. Um Senhor que agora desaparece e que a todos fará muita falta. Deixa-me muita saudade.