“No luxury and no comfort, no delight and no pleasure, no new liberty and no new discovery, no praise and no flattery, which we may enjoy on our journey, will mean anything to us if we have forgotten the purpose of our travels, and the end of our labours”
Isaiah Berlin
Acabada de regressar de Washington DC onde esteve a fazer investigação para os seus estudos de doutoramento na Law School da Universidade de Georgetown e acompanhou de perto e com interesse as eleições americanas de 2016 e os primeiros dias de Trump na Casa Branca, a senhora minha esposa, de seu nome Graça Canto Moniz, entre outros escritos, publicou no Jornal i, onde mantinha coluna regular, uma crónica apelidada “A Plea for Caution from Russia”. Nela dissertou sobre diversos aspetos à volta do quadro geopolítico vigente, nas relações entre EUA, China e Rússia. Uma das passagens fazia referências críticas à Rússia, dando nota da contestação interna que Putin enfrentava, numa altura em que a economia do país vivia o terceiro ano de uma grave recessão.
As passagens da crónica relativas à Rússia, relativamente factuais e consensuais nos seus pressupostos, mereceram acesa indignação e crítica de um seu, à época, colega de doutoramento na NOVA School of Law, de seu nome Alexandre Guerreiro. Na página de Facebook onde a Graça partilhou a crónica, Alexandre Guerreiro desenvolveu extensa prosa argumentativa procurando suportar as posições russas e provar quão errada estaria a cronista e a crónica na sua perceção sobre a Rússia. Dentre os argumentos apresentados, destaco aquele em que se afirma não poder ser interpretada uma manifestação ocorrida a 26 de Março de 2017 como sinal de contestação interna relevante, por apenas estarem 7 mil pessoas numa cidade onde habitavam 13 milhões, algo que, e cito, “só engrandece o sistema político e social russo”. Ou a defesa de que as prisões em massa resultariam do facto de a manifestação ter sido ilegal, e cito, “não é a polícia sugerir que façam o protesto num determinado percurso onde possam garantir condições de segurança e os organizadores recusarem e desobedecerem”. Alguns dos argumentos apresentados de forma algo neurótica pelo Alexandre Guerreiro envelheceram mal, sendo os mais chocantes aqueles onde desvaloriza a prisão do então promotor da manifestação, Alexei Navalny, a quem teria sido (supostamente) apenas aplicada uma mera pena de multa, e do seu próprio papel e importância (“Navalny não é líder da oposição, é apenas um ativista com ligações aos ultranacionalistas russos (…) e líder de um partido sem expressão”, escreveu). Outros oscilam entre o trágico e o cómico, como aqueles em que o atual analista-residente da SIC e investigador do ICJP-FDUL desqualifica a BBC como fonte de informação credível (“A BBC como fonte? Está tudo dito relativamente à verdade dos factos”), ou quando enaltece as virtudes do canal oficial russo, RT (“A RT cobriu muito bem os eventos e estamos a falar de um caso raro no mundo inteiro em que uma estação pró-Estado faz investigações e critica o Estado a um ritmo praticamente diário”).
Tendo entrado na discussão numa fase avançada, encontrei um Alexandre Guerreiro (a meu ver, obviamente) já perdido em argumentos sucessivos a tentar projetar a economia russa como grande exportadora de tecnologia, e não apenas matérias-primas, exibindo saúde e robustez, terraplanando nas suas respostas qualquer tentativa de argumento a partir de dados factuais e reais. Colocado (a meu ver, obviamente), sem argumentos razoáveis, o Alexandre Guerreiro teve a indelicadeza factual de, numa atitude de machismo lamentável, afirmar que a Graça, sua colega de doutoramento e cujos méritos ele conhecia, estaria numa relação de subserviência conjugal, subordinada ao que classificou ser a “Agência Rodrigo Adão da Fonseca e seus argumentos”, faltando-nos ao respeito a ambos. Talvez pela troca de ideias estar a ser online, não ser da minha natureza a violência ou o machismo, e não dar excessiva relevância ao discurso verbal, não protagonizei um momento de impulsividade ao estilo do Will Smith na mais recente Gala dos Óscares. Não deixei, porém, de recordar ao Alexandre Guerreiro que o nível de argumentário utilizado, cito, “o desqualificava enquanto analista político, fazendo dele mais um propagandista”, e que “só um javardo desvaloriza uma mulher inteligente como a Graça, insinuando que vive de uma agência conjugal”.
Nada disto teria interesse para uma crónica, quase cinco anos depois, se o Alexandre Guerreiro não estivesse hoje na berlinda, motivando a estupefação geral pelas posições que tem assumido nas suas análises políticas a propósito da guerra na Ucrânia, a mais recente relacionada com o massacre de Bucha, que o Luís Rosa tão bem analisa aqui no Observador. Talvez eu próprio tivesse o assunto esquecido se o Alexandre Guerreiro não tivesse apresentado queixa contra mim por injúrias sem nunca antes ter procurado sequer ultrapassar as desinteligências num ambiente de urbanidade e cavalheirismo (se eu tivesse percebido que ele tinha ficado tão ofendido com o uso das expressões “propagandista” ou “javardo”, logo lhe teria pedido desculpa, como aliás, o fiz publicamente, quando percebi como se havia sentido despeitado). E se o Ministério Público e o Juízo de Instrução Criminal de Moscovo, perdoem o lapso freudiano, Almada, não tivessem considerado haver matéria para – pasme-se – levar semelhante irrelevância até à barra dos tribunais, obrigando-me a constituir equipa de advogados para me defender e assegurar todas as diligências processuais inerentes, incluindo medidas de coação (termo de identidade e residência) e negociação de um acordo.
Espero que, em 2022, o Alexandre Guerreiro tenha a coerência de demandar judicialmente todos aqueles que utilizaram uma linguagem expressiva e assertiva para qualificar as suas intervenções, de uma forma bem menos fundamentada do que o que eu fiz, mantendo o mesmo grau de sensibilidade para a ofensa que manifestou comigo em 2017; e que o sistema judicial português responda no mesmo sentido, com imposição de medidas de coação, incluindo termo de identidade e residência, obrigação de pedido de autorização para deslocações ao estrangeiro, e ponderação de indemnizações, a todos os que têm posto em causa a elevação, independência e excelência académicas e argumentativas do entretanto доктор da nossa Academia por defesa de uma tese onde se analisa a legitimidade, à luz do direito internacional, da anexação da Crimeia pela Rússia (cuja leitura recomendo aos mais curiosos, sobretudo os que gostam de avaliar juízos de coerência entre o “académico” e o “comentador”, em especial, as conclusões preliminares constantes das páginas 573 e seguintes).
Um доктор que defendia, em Abril de 2017, que Alexei Navalny, alvo de uma tentativa de envenenamento em 2020 com um agente novichok, à qual sobreviveu após um mês no hospital na Alemanha, e recentemente condenado a nove anos de prisão, “era apenas um ativista com ligações aos ultranacionalistas russos (…) e líder de um partido sem expressão”, cuja prisão e sinalização não teriam dado lugar a mais do que uma mera contraordenação com multa, fruto de irregularidades processuais fiscalizadas pela polícia no quadro de uma atuação em relação a manifestações, processo exemplar que, e cito, “só engrandece o sistema político e social russo”. O mesmo доктор que, em Abril de 2022, e a propósito dos massacres de Bucha, aventou como hipótese em direto na SIC que tais mortes possam ter sido praticadas pelos próprios ucranianos, contra o seu povo, exigindo uma avaliação imparcial das provas recolhidas, ao mesmo tempo que defende que a investigação de tais atrocidades nunca poderá ser conduzida pelo Tribunal Penal Internacional.
Veremos como envelhecem estas afirmações, e todas as outras que ele – e outros como ele, menos inteligentes e eloquentes, mas nem por isso, menos perigosos – tem vindo a plantar em órgãos de comunicação social onde um falso pluralismo tem sido a meretriz ao serviço de várias propagandas, num país onde tantos têm medo da confrontação. Porque se os factos precisam de provas, e a verdade apurada num ambiente plural precisa de várias perspetivas, não precisamos de comentadores, analistas e académicos cujas projeções envelhecem mal, sendo permanentemente contrariadas pelo fluir do tempo.
Da minha parte, permanecerei onde sempre estive, procurando protagonizar debates assertivos, transparentes, plurais e com respeito pelos meus interlocutores. Resolvendo assuntos mundanos com urbanidade e cavalheirismo, sem entupir tribunais ou patrocinar concursos de chapada. Mas não esqueço que, no final, a intervenção pública não se dilui na mera retórica. Há momentos que nos definem, comprometido que estou com a máxima de Isaiah Berlin que cito no início da presente crónica e que inspirou a minha primeira incursão na blogosfera, há quase 20 anos. Os tempos que vivemos são de exigência e humanidade, sendo importante – e digo-o sem reservas – que ninguém se demita de combater os que, por mero delírio ou entrega consciente a forças do Mal, minam as nossas democracias e o nosso modo de vida.