Comédia não é propriamente o meu género cinematográfico de eleição, no entanto há honrosas excepções de que é exemplo o filme “A Canção de Lisboa” de Cottinnelli Telmo. Julgo que ninguém resiste a dar umas boas gargalhadas e a ser condescendente com Vasco Santana no papel do estudante boémio Vasco Leitão que, sem pudor, alimenta a farsa de ser Doutor perante suas tias que o financiam. Da ficção à realidade nem sempre vai uma grande distância, até porque é nos factos da vida real que se encontra tantas vezes a inspiração.

Há dias, quando revisitava o clássico na versão de 2016 de Pedro Varela, não pude deixar de me lembrar do Pedro [nome fictício] e da sua triste história. Quando me procurou tinha 29 anos e continuava inscrito no curso de engenharia que tinha iniciado com 18. Poderão pensar “hããã, grande malandro, que rica vida” ou até “como é que o marmanjo não tem vergonha que os pais lhe continuem a pagar os estudos tantos anos… havia de ser comigo!”. Na verdade, o Pedro não era nenhum bon vivant, não adiava a entrada na idade adulta porque aproveitasse inconsequentemente os prazeres da vida na moratória institucionalizada de ser estudante ou tão pouco era desprovido de sensibilidade para com a boa-vontade de seus pais.

“Não posso desistir, não agora que passaram estes anos todos. Não posso fazer isso aos meus pais” diz-me Pedro, com um tímido sorriso no canto da boca à procura da minha validação. Continuamos a conversar sobre a sua vida e o drama que agora enfrenta face à possibilidade de prescrever, isto é, de ser impedido legalmente de se inscrever na sua Faculdade por não ter realizado um conjunto mínimo de unidades curriculares num determinado período de tempo, o que o empurra a pedir ajuda profissional.

Conta-me que nunca soube o que queria ser, ou se até queria continuar a estudar depois do Secundário que completou sem entusiasmo, mas a avó e os pais insistiram muito e como não tinha planos alternativos deixou-se levar. Gostava de computadores, mais propriamente de jogar, e não se opôs à ideia que informática fosse o seu futuro, ignorando qualquer cenário acerca do que tal implicaria. Mas o dia-a-dia do curso revelou-se penoso para quem, como ele, não tinha motivação alguma para se dedicar ao que lhe era exigido e, sem amigos para o apoiar, sem irmãos para o desafiar e acompanhar, sem interesses e actividades para se conhecer, desejando sempre e mais do que tudo que os pais não se desiludissem com ele, sente-se só e refém das suas ilusões e da obrigação de cumprir as expectativas familiares.

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A sua narrativa resume-se a uma rígida condição que sente ter de cumprir (terminar o curso) mas para a qual, paradoxalmente, nada ou pouco faz para superar. O seu olhar pacato parece adaptado a essa ideia, mas as manchas vermelhas que sobem pelo seu pescoço enquanto falamos revelam a sua ansiedade, a sua inquietude. O calendário escolar avança impiedoso, nada querendo saber dos prazos e necessidades do Pedro, que gradualmente vai tomando consciência do tanto que precisa amadurecer e do nada que investiu em si, quando se acomodou nos silêncios da não oposição aos planos parentais, no proteger-se dos seus colegas por os recear, no contentar-se com um mundo pequenino que de contrário teria que explorar…

O desenvolvimento vocacional é uma dimensão do desenvolvimento psicológico global que ocorre na interacção constante do indivíduo e seus contextos, confrontando com a necessidade de construção, implementação e revisão de projectos de vida, articulados com os vários papéis que na vida também se assumem. Sem procura, sem questionamento, sem experienciação, não há investimento, não há acção. E se o reportório do mundo do Pedro é estreito, também se cruza com o de sua família que estreito é. Agora, há que o expandir (queira o Pedro) porque os Vascos… esses são felizes!

Psicóloga Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Educação, Psicoterapia e Psicologia Vocacional e do Desenvolvimento da Carreira