Nuno Palma é um académico, historiador económico, professor na Universidade da Manchester. Poucos fora do meio universitário deviam ter ouvido falar dele antes da Convenção do MEL – depois da Convenção o país do comentariato e os indignados do twitter transformaram-no num dos seus alvos de estimação porque considerou que que – e vou citá-lo – “compreender o Estado Novo é importante não para o defender, porque é indefensável a nível político, mas para compreender porque é que Portugal é hoje um país com imensa resistência a ideias que não sejam de esquerda”. Isso fez dele imediatamente um “fascista” – axioma: tudo o que não seja denunciar o fascismo, idealmente combater o fascismo, porventura mesmo “matar fascistas”, é suspeito de ser fascista – e permitiu que colegas da Universidade (ou melhor, do ISCTE) se achassem no dever de se armarem em “pides” e de quase sugerirem o seu saneamento de Manchester – axioma: tudo o que não seja pensamento alinhado não é tolerado e deve ser “cancelado”.

Para além da baixeza do gesto e da grosseria da distorção das suas palavras, há uma razão de ser neste ataque que vai para lá desse desporto nacional que foi fazer da Convenção do MEL o saco de pancada de tudo o que se queria bem-pensante neste país – bem-pensante mas pouco pensante, mas isso para o caso pouco importou. E essa razão de ser está em Nuno Palma, nessa sua intervenção mas sobretudo no seu trabalho académico, na sua investigação histórica e económica, pôr em causa alguns dogmas da esquerda. E por mostrar duas coisas: a primeira, que teimamos em repetir os erros do passado; a segunda, que só escondendo e mistificando a história é possível manter a narrativa de mentira que faz com que essa repetição seja social e politicamente aceitável.

Na intervenção de Nuno Palma foram abordados vários temas, alguns já sobejamente conhecidos – pelos menos é o que se espera –, como o facto de os anos finais do anterior regime terem sido os de mais rápido crescimento económico da nossa história, nem sequer igualados pela década de Cavaco Silva. Menos conhecida é a sua investigação mais recente, realizada em conjunto com Jaime Reis, do Instituto de Ciências Sociais, sobre o recuo do analfabetismo durante o Estado Novo. Em Can autocracy promote literacy?, um estudo de resto já referido por Luís-Aguiar Conraria na sua coluna no Expresso, os autores mostram que, apesar da retórica, o regime autoritário foi mais eficaz no combate ao analfabetismo do que o regime republicano que o precedeu.

Nuno Palma e Jaime Reis verificaram que a probabilidade de um jovem recruta saber ler subiu 50% depois de começarem a chegar à tropa aqueles que tinham feito a primária já no Estado Novo. Detetaram mesmo uma descontinuidade relativamente à Primeira República.

O método que os autores usaram para verificar o grau de alfabetização da população foram os testes de literacia que o Exército português introduziu a partir de 1924, o que lhes permitiu verificar que ocorreu uma descontinuidade significativa: a probabilidade de o jovem recruta saber ler subiu 50% depois de começarem a chegar à tropa aqueles que tinham feito a primária já no Estado Novo. Detetaram mesmo uma descontinuidade relativamente à Primeira República, um tempo em que o discurso oficial era de luta sem tréguas contra o analfabetismo – uma luta sem tréguas só nas palavras, não nos actos.

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O fracasso da Primeira República não me surpreende, mas não estava à espera do relativo sucesso do Estado Novo. Eu sabia que o republicanismo tivera um discurso que em nada coincidira com a prática – basta pensar  que de 1910 a 1926 o número de crianças na escola primária passou de 271 mil para apenas 367 mil, correspondentes a somente 29,7 por cento do universo de crianças em idade de frequentar a escolaridade mais elementar, que só na lei era obrigatória. Mas como sabia que o Estado Novo diminuíra a escolaridade básica de quatro para três anos (só voltou aos quatro anos em 1956, tendo sido estendido para seis anos em 1964), também “comprei” o discurso sobre a autocracia irremediavelmente obscurantista. Sim, era autocracia, era obscurantista, mas factos são factos, pelo que os registei, em vez de optar por os distorcer ou ignorar, como está a fazer o nosso comentariato de esquerda.

Não é novidade, pois há factos que são factos há mais de 250 anos e que a nossa esquerda teimosamente se recusa a aceitar porque não encaixam nos seus esquemas mentais e no seu projecto de poder. Designadamente factos sobre a educação.

A esse propósito vale a pena ler, ou reler, um texto de que se tem falado também por estes dias, pois fez 150 anos. Falo de “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos” de Antero de Quental. O autor identificou três causas, uma moral, a religião católica e a Contra-Reforma, uma política, o Absolutismo, e uma económica, “as conquistas”. Muito bem escrito, o texto de Antero ainda hoje alimenta alguns mitos, se bem que uma análise objectiva nos devesse levar a concluir que é um daqueles ensaios que resistiu mal à passagem do tempo e ao que hoje sabemos sobre a nossa secular decadência – e também sobre a actual. De resto isso mesmo notou Nuno Palma numa nota que escreveu há pouco mais de um mês. Aí lembrou, por exemplo, que não fazia muito sentido a insistência de Antero na religião Católica como causa da nossa decadência “à luz de que o segundo país a ter uma revolução Industrial, a seguir à Inglaterra, foi a Bélgica”, um país que se separou da Holanda precisamente por ser católico.

Ora a obsessão com a religião Católica, com a Contra-Reforma e em especial com os Jesuítas é talvez a marca mais forte do texto de Antero de Quental, que sobre o papel destes últimos no sistema educativo escreve mesmo que “o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis”. Para ele, tal como para muitos pensadores ditos “iluministas”, e para aqueles que ainda hoje os seguem, muitos dos nossos males radicariam no papel que os Jesuítas haviam tido no sistema educativo e a nossa redenção viria no dia em que o Estado por fim resgatasse as crianças das suas mãos.

Na estimativa do historiador de ciência Henrique Leitão, quando o Marquês de Pombal expulsou a ordem havia 20.000 alunos a frequentar instituições de ensino jesuíta em Portugal, um número que só́ viria a ser novamente alcançado, incluindo todo o ensino público, mais de 150 anos depois.

Assim pensou e agiu o Marquês de Pombal, assim gostaria de ter agido a Monarquia Liberal e assim voltou a agir a Primeira República mal assentou arraiais em Lisboa. O resultado foi catastrófico e o mais espantoso é como, tanto tempo passado e tanta evidência recolhida, se repetem não apenas os mesmos dogmas, como se reafirmam as mesmas políticas julgando que porventura elas trarão resultados diferentes.

O matemático Jorge Buescu, ao procurar explicar porque temos ainda hoje dificuldades com a Matemática, não hesitou em escrever que “Pombal provocou um terramoto educativo cujos efeitos foram duradouros e, num certo sentido, ainda se fazem sentir”, pois desmantelou a única rede escolar estável do País, composta por dezenas de colégios e mantida pelos Jesuítas. Essa rede desapareceu em 1759 e só voltámos a ter algo semelhante século e meio depois. Na estimativa do historiador de ciência Henrique Leitão, havia nessa altura 20.000 alunos a frequentar instituições de ensino jesuíta em Portugal, um número que só́ viria a ser novamente alcançado em todo o país, incluindo todo o ensino público, mais de 150 anos depois.

Pelo meio os Jesuítas ainda tiveram oportunidade de regressar a Portugal, de criar dois grandes colégios, o Colégio de Campolide, em Lisboa, e o Colégio de São Fiel, na Beira Baixa, sendo que foi neste último que, poucos anos depois da conferência de Antero de Quental, estudaria aquele que viria a ser o nosso único Prémio Nobel numa área científica, Egas Moniz. O ensino jesuítico tornou-o, está visto, um imbecil.

Pelo caminho também o Marquês fez também desaparecer a única escola de Matemática em Portugal, a Aula da Esfera, que funcionara ininterruptamente entre 1590 e 1759 no que é hoje o Hospital de São José e era então o Colégio de Santo Antão.

Mas apesar de os factos serem estes, quais são os dogmas da esquerda? Os de que estas reformas – as do Marquês, as da Monarquia Liberal, as da Primeira República – foram todas excelentes reformas. “Portugal foi o primeiro país católico onde o Estado assumiu a responsabilidade e o controlo do sistema de ensino, com reformas que, no final do século XVIII, constituíram uma referência para outros países europeus”, escreveram António Teodoro e Graça Aníbal na Revista Lusófona de Educação, indicando que essa era a boa direcção – e como não poderia ser se pensarmos que António Teodoro foi durante muitos anos secretário-geral da FENPROF, o lugar hoje ocupado por Mário Nogueira?

Só que sempre houve uma dissonância entre a retórica e a prática – uma dissonância que recua até aos dias do Marquês mas que tem lídimos intérpretes nos actuais governantes. Também eles acham que “o controlo do sistema de ensino” pelo Estado é a boa referência e por isso, mais uma vez, retomaram a cruzada contra tudo o que escapasse ao controlo do Estado. Se em 1910 não foram sequer necessárias cem horas após José Relvas ter subido à varanda dos Paços do Concelho de Lisboa para proclamar a República e já estava assinada a lei que voltava a proscrever os Jesuítas, com a “geringonça” todos nos recordamos de como os primeiros meses do Ministério da Educação foram marcados pela sua campanha para acabar com os contratos de associação, assim condenando à morte inúmeras escolas privadas, quando muitas delas prestavam melhor serviço e por melhor preço que as públicas. Nesta “limpeza” de novo houve uma escola jesuíta que soçobrou: o Colégio da Imaculada Conceição, perto de Coimbra. Como escreveu Carlos Fiolhais, os governantes responsáveis não só prestaram “um mau serviço à educação” como mostraram desconhecer “os contributos dos Jesuítas para o ensino, a ciência e a cultura”.

Afonso Fuzeta e Pedro Santa Clara notaram que entre 1960 e 1979 o nosso rendimento per capita foi multiplicado por duas vezes e meia (são 14 anos de “fascismo” e 5 de pós-revolução) enquanto de 2000 a 2019 só evoluiu 15% (com 13 anos de governos de esquerda contra apenas 6 de executivos de direita).

Na verdade penso que desconhecem isso e muito mais. Desconhecem tudo o que não encaixe na sua visão ideológica e pré-concebida do mundo, e por isso preferem insultar Nuno Palma em vez de olhar para os factos que ele estudou. Também por isso não compreendem, nunca compreenderão, como foi que – e agora vou citar outros autores, pois os factos são teimosos – estudiosos como Afonso Fuzeta e Pedro Santa Clara puderam notar que entre 1960 e 1979 o nosso rendimento per capita foi multiplicado por duas vezes e meia (são 14 anos de “fascismo” e 5 de pós-revolução) enquanto nos últimos 19 anos – ou melhor, de 2000 a 2019, sem contar com o desastre de 2020 – só evoluiu 15% (com 13 anos de governos de esquerda contra apenas 6 de executivos de direita).

É se na Educação a retórica por si só não produz resultados, pelo contrário, também na Economia repetir ad nauseamas mesmas fórmulas esperando que delas resulte algo diferente – neste caso mais crescimento – não é apenas teimosia, nem sequer falta de inteligência: é tão-somente uma fórmula de conservação do poder.

A fórmula é tão simples como perversa: trata-se criar dependência de um Estado que controla tudo e subsidia tudo. É um modelo que funcionou e funciona bem sempre que há dinheiro em abundância, seja ele o ouro do Brasil ou os fundos de Bruxelas. Ou ainda juros baixos quando nos alimentamos de dívidas. É um modelo que a “bazuca” poderá assegurar por um par de anos, mas que não nos trará nem crescimento, nem prosperidade, nem ar fresco, antes novas dependências e ainda mais rendas. Mas é o modelo que está montado e que dá dividendos, pois há sempre uma forma de fazer chegar uma migalha até aos mais esquecidos (mesmo que sejam só 310 euros para os cuidadores informais, pois “é o pais que temos”…)

A fórmula é tão simples como perversa: trata-se criar dependência de um Estado que controla tudo e subsidia tudo. É um modelo que funcionou e funciona bem sempre que há dinheiro em abundância, seja ele o ouro do Brasil ou os fundos de Bruxelas.

Nuno Palma chama a este mecanismo “a maldição dos recursos”, Afonso Fuzeta e Pedro Santa Clara protestam e falam de um “imperativo moral do crescimento económico”, eu em tempos usei a imagem do sapo a morrer lentamente dentro de uma panela, adormecendo docemente sem capacidade de reagir. Julgo que todos temos razão mas que isso de pouco nos serve enquanto se mantiverem as superstições dominantes, que vão da superioridade da Educação estatizada à intocabilidade do dirigismo económico.

Mas é escusado: a esquerda nunca aprende nada, e o país também não – pelo menos por enquanto.