Boa notícia para Portugal: “desta vez, correu francamente bem”. A afirmação é do Presidente da República Portuguesa, congratulando-se pelo desempenho nacional. Na Economia? Não, o país sobrevive há 20 anos em estagnação e será ultrapassado pela Roménia no PIB per capita, já em 2024. Na Saúde? Não, todos os dias lemos notícias de demissões e de rupturas nos serviços hospitalares do SNS. Na Educação? Não, a recuperação da aprendizagem permanece uma ficção e as greves aparecem no horizonte. Então, enquanto tanto corre francamente mal no desenvolvimento económico e social do país, o que “desta vez correu francamente bem”? Foi o futebol. Celebremos.

Este é um velho assunto: a importância atribuída ao futebol não constitui novidade nem pode surpreender. A resignação com que se tolera as falhas do Estado nos sectores-chave (saúde, educação) também não começou ontem e, dir-me-ão, também por isso não nos apanhará desprevenidos. Certo. Mas tudo tem um limite: uma coisa é resignação, outra coisa é ser tratado como idiota. E, por mais resignados que os portugueses possam ser, Governo e Presidência da República já só falam ao país através de versões contraditórias e incoerentes, partindo do pressuposto que, do outro lado da câmara, ninguém percebe, ninguém repara, ninguém se importa.

Só que já todos percebem, reparam e se importam. E, nesse aspecto, a Saúde serve de caso exemplar — veja-se a evolução. Em 2015 e 2016, o país deixou-se embalar pela cantiga de que teria o melhor SNS do mundo (como afirmou o então bastonário da ordem dos Médicos). Eram os tempos da geringonça e o país aconchegou-se a essa ilusão até a bolha rebentar. Rebentou em 2019, explodiu completamente em 2020 com a pandemia e manteve-se em frangalhos desde então, com a falta de médicos no SNS e o agravamento de indicadores sobre os cuidados prestados, desde o excesso de mortalidade (que a Covid-19 não explica) a falhas graves nos serviços (como os de obstetrícia e neonatologia). Nada que impedisse, em 2021, Marcelo Rebelo de Sousa de condecorar o SNS com a mais importante Ordem Honorífica nacional, por “actos e serviços excepcionais prestados, em particular durante a pandemia”. Mas, hoje, em vez de ovações ao melhor SNS do mundo, tornou-se consensual que o SNS está em implosão e que carece de reformas estruturais urgentes — aquelas que Governo e Presidência da República ignoraram durante anos. Por isso, o que pensar quando se ouve Marcelo a alertar para a oportunidade “que não pode ser desperdiçada” de actualizar o SNS?

Multiplico os exemplos. Na Educação, ignora-se o arraso na aprendizagem de milhares de crianças, nomeadamente as dos contextos sociais mais desfavorecidos, fazendo de conta que está tudo bem: o Presidente da República assegurou que temos os melhores professores do mundo e o Governo já garantiu que os alunos portugueses melhoraram durante a pandemia — viva Portugal, o país dos milagres. Na Segurança Social, voltou a discussão sobre a sustentabilidade do sistema de pensões, com uma comissão para responder aos “desafios do envelhecimento” — isto depois de nos prometerem que não havia discussão nenhuma a ter; o “envelhecimento” da população deve ter apanhado as autoridades públicas de surpresa. Na economia, enquanto os pobres romenos de há 20 anos se tornam mais ricos do que os portugueses, e o nosso país se afunda nas comparações europeias, o governo veio garantir-nos que está tudo bem: afinal, estamos a crescer mais do que a Alemanha, diz-nos o primeiro-ministro orgulhoso.

Enfim, “correu francamente bem” no futebol? Óptimo. Mas no desenvolvimento económico e social do país tudo corre francamente mal. É indisfarçável: já todos perceberam e já todos se importam. Todos menos Marcelo e Costa. Está na hora de Presidente da República e Primeiro-Ministro largarem as fantasias e, também eles, começarem a importar-se.

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