A crise aberta nas últimas semanas na Global Media, com uma maior expressão pública com a greve no Jornal de Notícias e o potencial despedimento colectivo na TSF, que acabaria, na prática, com o seu papel enquanto rádio de palavra, coloca novamente na agenda a saúde da comunicação em Portugal. Por arrasto, leva-nos, novamente, a questionar a saúde da democracia. Ambas estão indelevelmente ligadas. Não é possível existir uma democracia salubre e forte sem o papel de escrutínio da comunicação social.

Em todo o mundo, o modelo de negócio da comunicação social está ameaçado. A publicidade foi canibalizada pela Google e pelas redes sociais. As últimas tornaram-se os pontos focais de consumo de notícias de uma grande parte da população, na prática apropriando-se dos conteúdos criados pelos jornalistas. As redes sociais têm hoje a capacidade de serem o “espelho” através do qual a maioria população vê o mundo. A ideia de jornalista enquanto curador de notícia e fiscalizador do poder político está fortemente ameaçada.

O cenário é de catástrofe. Com raríssimas excepções, como órgãos feitos de e para elites, como o Financial Times, as redacções estão depauperadas. Portugal vive um cenário especialmente dramático porque o ponto de partida do consumo de jornais era já muito baixo. Ao contrário da maioria dos países europeus, devido aos seus baixos níveis de literacia e à inexistência de um espaço político e público nacionalizado na primeira metade do século XX, em Portugal, a palavra escrita nunca teve um domínio enquanto mecanismo de informação da população. Como um dia escreveu António Barreto de forma presciente, Portugal foi provavelmente o único país europeu em que a televisão apareceu antes de toda a população saber ler e escrever. Os portugueses não ganharam hábitos de leitura e de consumo de jornais antes de o entretenimento ter entrado, literalmente, pela casa dentro.

Hoje, os grupos de media em Portugal vivem momentos extremamente complexos com equilíbrios difíceis nos seus modelos de negócio. Em muitos casos, escolheram encostar-se ao poder público e económico. Basta ver, de resto, o número de políticos no activo que têm espaços de comentário permanente nas televisões, nas rádios e nos jornais para perceber o paroxismo a que chegámos. Durante o dia estão no parlamento, à noite estão em qualquer televisão não como entrevistados, mas como comentadores a fiscalizar-se a si próprios e ao seu partido. Para tentarmos sair deste estado de coisas, poderá haver três caminhos distintos para financiar a comunicação social, todos eles com problemas e benefícios.

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O primeiro caminho seria o financiamento directo do Estado para assegurar a sobrevivência dos jornais, rádios e televisões. O entendimento do jornalismo enquanto bem público cujo mercado não consegue suprir é um bom argumento a favor de modelo. Todavia, financiar o jornalismo directamente seria difícil de regular. Acima de tudo, seria bizarro que aqueles cuja função principal é fiscalizar os poderes públicos dependessem destes para a sua sobrevivência económica. De resto, mesmo sem financiamento directo, existe já uma imensa promiscuidade entre jornalistas e agentes políticos. Em muitos jornais existem verdadeiros heterónimos de actores políticos, para usar uma frase feliz de António Costa. Basta recordar a distribuição de dinheiro na altura da pandemia, a título de adiantamento da compra de publicidade, para perceber como o governo privilegiou os órgãos amigos. O pequeníssimo valor dado ao Observador, que soube rejeitá-lo com dignidade, não foi um erro. Foi, evidentemente, uma mensagem que qualquer jornal digno desse nome deve usar com orgulho. Incomodar o poder instituído é o melhor elogio que se pode fazer a um jornal.

Um segundo modelo alternativo seria um misto entre público e privado. Neste cenário, o mercado continuaria a funcionar. O Estado daria a cada cidadão um voucher para utilizar para gastar na compra de informação. Assim, em vez de termos uma distribuição directa dos recursos aos órgãos de comunicação social, os cidadãos agiriam como intermediários, escolhendo os jornais que percepcionam como tendo maior qualidade e dirigindo para aí os recursos recebidos do Estado. Este modelo poderia ser bastante interessante, na medida em que junta o melhor dos dois mundos. No entanto, exigiria dos cidadãos um nível de engajamento com a coisa pública e de confiança nas instituições que me parece improvável.

Por último aquele que seria o meu modelo preferido. Os jornais serem propriedade de fundações privadas e entendidas como acções de filantropia. Existem vários modelos pelo mundo fora que ilustram bem este tipo de possibilidade. No Brasil, por exemplo, João Moreira Salles criou um endowment para tornar permanente a sobrevivência da Piauí. Com uma dotação orçamental de 65 milhões de  euros, o objectivo é garantir a independência da revista e a sua perenidade. Nos Estados Unidos, Jeff Bezos comprou o Washington Post, contratando centenas de jornalistas e dando uma nova vida ao jornal. Será este modelo impossível de replicar em Portugal? É certo que, historicamente, Portugal é um país de capitalistas sem capital. Todavia, seria impensável que a Gulbenkian ou a Fundação Francisco Manuel dos Santos criassem um endowment perpétuo para a feitura de óptimos jornais e rádios? Seria impensável que a Sonae desse uma nova vida ao Público numa lógica de pura filantropia? A alternativa a este modelo é uma intervenção contínua do poder político e económico, muito dele com ligações pouco claras a regimes ditatoriais, como, por exemplo, o angolano, que há anos ocupa posições centrais em grupos de comunicação em Portugal.

Enquanto os jornais e os jornalistas agonizam, o poder político tem a vida facilitada. Em 2024, entraremos num ciclo eleitoral importantíssimo para a vida do país. O jornalismo é mais importante do que nunca. É hora de trocarmos umas palavras sobre o assunto, como diz Mário de Carvalho. Ignorar o problema não o fará desaparecer. Enquanto isso perdemos massa crítica dos dois lados da barricada: nos jornalistas e nos leitores, enquanto o poder económico e político sobrevive intacto. A democracia portuguesa merece e precisa de melhor.