Naquele jeito que em Portugal  se chama arruaça se usado à direita mas à esquerda cai no paradigma do carisma, do animal político ou do líder hábil, António Costa perguntou, ou melhor ripostou: “Está a brincar comigo?”

Para lá da falta de auto-controlo de António Costa é no brincar que está a questão. Alguém tem andado a brincar com os portugueses e com Portugal. E não, não foi o governo da Holanda.

Quem declarou que no SNS “até agora não faltou nada” não foi o governo da Holanda mas sim o primeiro-ministro de Portugal. Aliás esta patética polémica com a Holanda e consequente arrobo patriótico cumprem o papel  de fazer esquecer as declarações infelizes do primeiro-ministro português.

Quem durante anos cativou as verbas indispensáveis ao SNS português e o fez chegar a este Março de 2020 em condições de acentuada degradação não foi o governo da Holanda.

Quem entreteve Portugal em Fevereiro – repito em Fevereiro, quando o avanço da epidemia já era mais que óbvio – impondo uma discussão grotesca e fútil sobre a eutanásia não foi o governo da Holanda. (A propósito de discussões inadiáveis: o que aconteceu à regionalização que tinha fatal e rapidamente de avançar este ano para desbloquear o país?)

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Quem teve um comportamento repugnante, ocultando informação, perseguindo médicos e jornalistas, alterando registos de óbitos, dando informações falsas sobre a evolução da epidemia não foi o governo da Holanda mas sim o governo chinês sobre cuja actuação o governo português – como tantos outros – não se pronuncia. Não por acaso os países melhor sucedidos no combate ao vírus foram aqueles que, como a Coreia do Sul e Taiwan, não acreditaram nas informações que estavam a ser dadas pela China e tomaram medidas preventivas muito cedo. Tomaram-nas até contra a opinião da Organização Mundial de Saúde, organização em que o poder da China é uma evidência que esta crise expôs. (Pede-se encarecidamente a Ana Gomes que actualize os seus dados sobre os donos do mundo e as vozes dos donos: a Alemanha não é dona de nada, apresenta apenas algumas reservas em subsidiar o socialismo noutros países. Quanto a Francisco Louçã as suas intervenções no Conselho de Estado pautam-se pelo nível destas declarações “A Alemanha gosta desta situação, beneficia destas crises” ? )

Quem declarou “não há grande probabilidade de chegar um vírus destes a Portugal” não foi o governo da Holanda nem nenhum populista ignorante mas sim a muito portuguesa directora-geral da Saúde, médica de formação e coleccionadora de orquídeas segundo prestimosa informação recente. (Já eu colecciono artigos providenciais sobre políticos e titulares de cargos públicos que estão a viver maus momentos no seu desempenho. Como se calcula tenho um acervo de preciosidades mas confesso que ver Graça Freitas ser classificada como “tranquila, segura, eficaz” como acontece num desses artigos é mais ou menos tão insólito quanto deparar aqui no meio da rua com uma Shenzhen Nongke que o google me diz ser a orquídea mais rara e cara do mundo).

Quem nos últimos dois anos cortou o orçamento da portuguesa Linha Saúde 24 não foi o governo da Holanda. Muito menos foi o ministro das Finanças holandês quem despediu o responsável por essa linha após ele ter avisado dois dias depois de ter avisado o ministério da Saúde que o serviço podia colapsar com o aumento da procura motivado pela epidemia de COVID-19.

Quem pede censura e auto-censura aos jornalistas portugueses não é o governo da Holanda mas sim jornalistas e ex responsáveis portugueses incomodados com a possibilidade de se fazerem perguntas ou declarações que perturbem a comunicação institucional.

Quem levou os últimos anos a ampliar a disparidade entre os trabalhadores do sector público e do sector privado em Portugal não foi o governo da Holanda mas sim o governo português com o aval do Presidente da República, disparidade essa que nesta crise vai mais uma vez fazer-se sentir. (Espero que na sua quarentena Marcelo Rebelo de Sousa tenha tido tempo para avaliar se a aprovação da semana de 35 horas para os trabalhadores em funções públicas provocou ou não um aumento das despesas com o pessoal. É que o PR, naquele seu estilo político enguia, de agradar a todos sem nunca se responsabilizar por nada, aprovou o diploma em 2016  “apesar das questões políticas e jurídicas” que o mesmo lhe suscitava, mas dando o “benefício da dúvida” ao Governo e avisando que ia estar atento e que se houvesse um aumento das despesas por causa da medida, pediria a intervenção do Tribunal Constitucional.)

Por fim falemos da Holanda. Não das finanças da Holanda nem da sua oposição à emissão de dívida conjunta europeia (ao contrário do que afirmam os seus defensores, os eurobonds não salvam a UE, pelo contrário vão acabar com a UE em pouco tempo e acentuar o crescimento exponencial dos nacionalismos). Prestemos atenção à forma como a Holanda está a lidar com a pandemia: as autoridades daquele país têm apostado na criação de uma “imunidade de grupo”, não fecharam completamente o país, tentando preservar do contágios os grupos mais frágeis.

Longe de mim ter a pretensão de dizer o que é mais ou menos acertado no combate à pandemia mas convém que nos deixemos de maniqueismos em que os inteligentes-bons são aqueles que procedem como nós e os maus-estúpidos são os que actuam doutro modo: parar um país é sustentável durante quanto tempo? E quando escrevo sustentável não me refiro apenas ao dinheiro. Refiro-me, por exemplo, à segurança: como felizmente o nosso governo é de esquerda não temos gritos de “governo assassino” nem “governo mata” a ecoar por aí mas tome-se atenção ao que está a acontecer no sul de Itália e nos banlieu franceses.

Temos de ser capazes de pensar um pouco mais além da espuma dos noticiários do dia e da versão Disney que fomos criando do mundo. Ou ficaremos inevitavelmente à mercê do vírus da demagogia.