Uma das questões- talvez em grande medida- que cria graves constrangimentos à justiça tributária é a confusão de conceitos que a Autoridade Tributária faz entre a leitura de normas na perspectiva civilista transpondo-as para a esfera fiscal.

Diria mesmo que, grande parte da culpa nos atrasos da decisões dos Tribunais Administrativos e Fiscais se deve a uma litigância desnecessária meramente porque o Estado abusa da leitura das normas.
O caso da tributação da caução no arrendamento é um exemplo claro desse abuso.
Enquadremos pois, a questão da caução de rendas na perspectiva correcta atendendo à leitura da norma jurídica prevista no nosso Código Civil. Aqui podermos encontrar o que o legislador entendeu para definir o regime da caução.
Artigo 1076.º
2 – As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respectivas.

Mas para que não haja dúvidas sobre o que significa o termo “ caução” há ainda por parte do legislador uma explicação mais detalha que se segue.
“A caução serve, pois, como uma garantia caso exista algum incumprimento. Na prática significa que o senhorio pode exigir ao arrendatário o pagamento de uma caução, a fim de prevenir eventuais danos que este venha a causar no imóvel durante o período de tempo em que o ocupar. A previsão da caução deverá constar do contrato de arrendamento, nomeadamente, o seu valor. Quanto ao valor, não existe qualquer limite, cabendo às partes acordar no mesmo. Habitualmente, o valor é fixado tendo em consideração a renda, correspondendo a uma ou duas rendas. Nada obsta, contudo, que o valor seja inferior ou superior. Quanto ao seu objeto, a caução pode ser prestada por depósito em dinheiro, título de crédito, penhor, hipoteca ou fiança bancária. Habitualmente, nos arrendamentos comerciais o locatário garante o pagamento da renda através de uma garantia bancária. Não se deve confundir a caução com o pagamento antecipado de rendas. Com efeito, caução de uma renda, significa que a mesma visa garantir o cumprimento de obrigações, não constituindo a antecipação de qualquer renda. Deve ser usada para assegurar o cumprimento da obrigação garantida e, caso não exista necessidade da mesma, deve ser restituída a quem a prestou.”

Chamo à atenção do uso das expressões:

1- …não se deve confundir a caução com o pagamento antecipado de rendas ;

2-…não constituindo a antecipação de qualquer renda.

Parece claro que o legislador civilista definiu o regime da caução em arrendamento de forma exímia sem subjetividade alguma deixando preto no branco a informação ao legislador fiscal que a caução não é rendimento e por consequência não é sujeita a qualquer tributação.
Tanto assim é , que a forma legal de se constituir a caução é diversa e não obriga a que seja prestada por mera via pecuniária.

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Aqui chegados, vejamos a perspectiva fiscal.
Para tal convido à leitura da interpretação que a Autoridade Tributária faz do tema através do Ofício-Circulado n.º 20256/2023, de 07/06. Aqui podemos encontrar desde logo um total desrespeito pela norma civilista e a sua explicação. Há uma confirmação clara desse desrespeito quando a própria AT assume que e transcrevo , o legislador
fiscal procedeu a uma redefinição, para efeitos de IRS, do conceito de renda utilizado no direito civil, dando-lhe uma amplitude maior do que a que resulta desse ramo do Direito.

Assim para que se proceda à tributação da caução, a Autoridade Tributária esclarece que nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Código do IRS, consideram-se rendimentos prediais as rendas de prédios rústicos, urbanos e mistos colocadas à disposição dos respetivos titulares, quando estes não optarem pela sua tributação no âmbito da categoria B,
explicitando o n.º 2 as ações incidentes sobre o bem imóvel que dão origem à qualificação do rendimento como renda, nomeadamente, “as importâncias relativas à cedência do uso
do prédio ou de parte dele e aos serviços relacionados com aquela cedência”.
4. Ora, considerando-se que o rendimento disponibilizado a título de caução traduz-se, efetivamente, num acréscimo de valor ao património de quem cede o uso ou o gozo
temporário do bem locado, associado e acordado em razão do contrato celebrado e com reflexos na sua capacidade contributiva do ano da disponibilização, e tendo em conta que,
nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Código do IRS, os rendimentos prediais (rendas) relevam
no momento do seu pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, é de considerar a caução como renda para efeitos de IRS, no ano do seu recebimento.

Ora a confusão da Autoridade Tributária está em não ter percebido nada daquilo que o legislador civilista explicou no que concerne à natureza do regime de caução. A AT afirma que o legislador fiscal alargou o conceito de renda, no entanto não é de conceito de renda que o tema trata, o tema é o regime de caução.

Vejamos: então se a caução pode ser acordada de forma diversa que não obrigando à forma pecuniária, como é que a Autoridade Tributária tributa um sujeito passivo que receba como caução uma jóia dada de garantia?

Ora está claro, que há uma enorme confusão, entre dois conceitos que têm natureza distinta e que se encontram devidamente regulados. O conceito de renda é um, o conceito de caução é outro.

Não é de tributar a caução, porque só pode ser tributado o que é rendimento e é claro que a caução não é rendimento efetivo da mesma forma que a sua devolução não é nenhuma despesa como entende a AT. Assumidamente a Autoridade Tributária informa que de facto há um choque entre o legislador fiscal e o civil – “alargando o conceito de renda”- indo mais longe misturando dois conceitos totalmente distintos fazendo uma leitura fora da letra da lei e do seu espírito civil.

São situações como esta, de mera falta de noção associada a uma elevada desonestidade intelectual e de uma abusiva interpretação da lei que levam a que o contribuinte entenda necessário recorrer à justiça fazendo inundar os tribunais com processos que, em grande parte tem origem na culpa da Administração Central – leia-se, AT, porque esta claramente abusa da leitura da lei.

Existem de facto muitas razões para que justiça tributária se encontre no estado em que se encontra. Muitos falam da escassez de meios e da complexidade processual, mas existem pequenos processos que são evitáveis de chegarem aos tribunais Administrativos e Fiscais. Estes simplesmente dependem da inteligência de alguém, da sensatez de alguém e de muitas outras questões que podem diminuir os litígios fiscais e administrativos.

Se este é um pequeno exemplo de como a própria Administração Central poderia ter cuidado na forma como trata algumas questões fiscais que não padecem de complexidade alguma mas sim de competência e também porque não dizê -lo, de inteligência, muitos outros haverá. Que não haja dúvida alguma : tributar uma caução é uma inabilidade total de tudo aquilo que a expressão “caução“ significa e o legislador já explicou. Só não entende isto quem não quer.