Quando Lemuel Gulliver chegou a Lagado, a sua viagem já ia longa. A sua última paragem havia sido a ilha de Laputa, que flutuava no céu. Os costumes dos habitantes de Laputa pareceram-lhe estranhos. Viam o mundo sob um modo exclusivamente matemático e tudo ali obedecia a formas geométricas. Os bifes eram servidos com a forma de rombóides e os bolos de cicloidais. Os empregados cortavam o pão em cones, em cilindros, em paralelogramas e outras figuras geométricas. E a prática da geometria manifestava-se em todos os planos da vida quotidiana. Os alfaiates, por exemplo, utilizavam regra e compasso para tirarem as medidas aos clientes e os arquitectos focavam-se apenas na geometria pura. Resultado: os fatos acabavam muito mal feitos e informes e as casas mal construídas, fruto de erros de cálculo.

A própria apreciação da beleza feminina obedecia aos mesmos critérios, sendo as descrições feitas em termos de losangos, círculos, paralelogramas, elipses e outros termos geométricos. Naturalmente, toda a imaginação, toda a criação, toda a invenção se encontravam banidas. A linguagem dos laputianos não continha sequer termos para exprimir essas ideias. O que não impedia os habitantes de Laputa de se interessarem obsessivamente pela política: “inquietam-se constantemente com o estado das coisas públicas, oferecem as suas ideias em matérias governamentais e discutem apaixonadamente a mais insignificante das suas opiniões”. O que leva Gulliver a manifestar a sua surpresa, já que não lhe foi nunca possível descobrir a menor analogia entre a matemática e a política.

Chegado a Lagado, as coisas revelam-se ainda piores. Visitando a Academia, Gulliver informa-se sobre os avanços nas ciências especulativas. É confrontado, por exemplo, com o projecto de construção de uma máquina que permitirá ao mais ignorante, por um preço módico e sem esforço praticamente algum, “escrever livros de filosofia, de poesia, de política, de legislação, de matemática, de teologia, sem sombra de génio ou de estudo”. Mas o mais interessante é a filosofia da linguagem aí desenvolvida. Na tentativa de eliminar toda e qualquer equivocidade no uso da linguagem, os sábios da Academia buscam eliminar todas as palavras que não sejam substantivos.

E alguns vão mesmo mais longe, propondo a supressão completa das palavras. A comunicação faz-se, entre os adeptos desta solução radical, transportando consigo permanentemente um saco contendo todos os objectos aos quais se referem, bastando apontá-los em qualquer conversação. A coisa arrisca-se, no entanto, a tornar-se cansativa e Gulliver nota ter visto sábios literalmente esmagados pelo peso da nova forma de expressão. Esta grande e admirável reforma teria tido sem dúvida sucesso “se as mulheres, em conluio com a arraia-miúda e os iletrados não tivessem ameaçado revoltarem-se se lhes proibissem falar com a sua língua à maneira dos seus antepassados. O que prova como o vulgo é sempre inimigo da ciência”.

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Laputa e Lagado representam sociedades em que, à falta de uma percepção sensível das relações humanas e em virtude da sua substituição radical por regras perfeitamente abstractas, toda a comunicação entre os seres humanos se torna impossível. A tentativa de eliminar qualquer ambiguidade da linguagem e de extirpar a sua dimensão histórica, os sedimentos do passado que ela transporta, conduzem fatalmente ao grotesco e à incomunicabilidade máxima. Aristóteles dizia que a busca de uma exactidão absoluta em certas matérias é um sinal indubitável de ignorância. É disso mesmo que se trata.

Muitos dos traços da existência humana em Laputa e Lagado foram retomados por outros autores. Assim, por exemplo, a recusa da imaginação, da inovação e da criação em Laputa encontra-se presente em Erewhon de Samuel Butler. Nos Colégios de Desrazão ensina-se que o génio e, mais modestamente, todo o pensamento original, são pura e simplesmente ofensivos e devem ser militantemente desencorajados. Compete a cada um pensar como pensam os seus vizinhos. O “venerável Professor de Sabedoria Mundana” gozava da “reputação de ter feito provavemente mais do que qualquer outro ser humano vivo para suprimir toda a espécie de originalidade”. A competição entre os estudantes é desencorajada. “Se um homem chega a saber mais do que os seus vizinhos, deve guardar esse conhecimento para si, até os ter sondado e ter visto que eles concordam, ou são supostos concordar, com ele”. Do mesmo modo, todas as invenções mecânicas do passado são destruídas, se bem que os habitantes de Erewhon não tenham completamente esquecido o seu passado: tal é, no entanto, o projecto do mesmo Professor de Sabedoria Mundana dos Colégios de Desrazão, que é igualmente Presidente da “Sociedade para a Supressão do Conhecimento Inútil, e para uma Mais Completa Obliteração do Passado”.

E no Ministério da Verdade do 1984 de Orwell, sinal da transformação da linguagem, produzem-se novas versões, “textos definitivos”, de “poemas que se tornaram ideologicamente ofensivos, mas que por uma razão ou outra deviam ser retidos nas antologias”: “Toda a literatura do passado será destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron – existirão apenas em versão Newspeak, não apenas transformados em alguma coisa diferente, mas efectivamente transformados em algo completamente diferente daquilo que eram”.

Há várias passagens memoráveis que vão neste sentido nos grandes distopistas do século XX, como Zamiatine ou Aldous Huxley. Mas não creio que alguém tenha, de facto, tocado tanto no essencial como Swift. Com certa injustiça, é verdade, em relação a algumas figuras e instituições do seu tempo: a Academia de Lagado é, como se sabe, uma paródia da Royal Society. Essa injustiça, no entanto, não se verifica se pensarmos num tempo como o nosso, que parece ter como projecto a realização do mundo artificial que Swift imaginou.

Os exemplos não se contam. A suposição da competência máxima dos cientistas (palavra, já agora, criada no século XIX pelo grande filósofo e historiador das ciências inglês William Whewell) em matéria política é um dado palpável. Basta, por exemplo, ver o prestígio por inteiro espúrio de que gozam quando se pronunciam sobre o curso do mundo e colocam os seus nomes em abaixo-assinados. Quando, como Swift notou, a sua competência naquilo que é a sua esfera própria não é de modo algum exportável para o domínio da política. Ou toda a política da linguagem que é o pão nosso de cada dia e que se manifesta, entre um sem fim de exemplos, nos propósitos aberrantes sobre a última canção de Chico Buarque, de que ainda ontem José Manuel Fernandes aqui falou. As palavras têm de ter um significado único, muito quadriculadozinho, e não há lugar para a ambiguidade e a ironia, sem as quais não há verdadeira reflexão nem pensamento digno desse nome sobre a natureza humana. Ou as consequências desastrosas de projectos sociais geométricos, que transformam, por comparação, os azares dos alfaiates e arquitectos de Laputa em brincadeiras de meninos de coro. E nem quero mencionar a eventual aceitação que hoje em dia poderia receber em vários círculos o critério de apreciação da beleza feminina vigente em Laputa. Poderia estar a dar ideias ao Bloco.

O que fazer por estes dias em que tagarelas autoritários, eméritos laputianos e lagadianos, furiosos de intensidade apaixonada, como no poema célebre de Yeats, procuram a todo o custo regular todas as formas de expressão e limitar, por aí, os princípios de comunicação humana? Bem gostava de saber. Chegou-se a um momento em que todos os delírios se arriscam a ver a luz do dia. Bom, pelo menos, podemos, por enquanto, dar umas gargalhadas-manguito ao constatar neles os legítimos herdeiros de Laputa e Lagado. Um outro poeta, Robert Frost, escrevia: The strong are saying nothing until they see. O problema é que já tudo está claramente à vista e os fortes, se os há, poucas probabilidades têm de fazer ouvir a sua voz. Vamos por muito maus caminhos.