Foi há dois dias que se publicaram em Diário da República os apoios do Estado à comunicação social, sob forma de antecipação de publicidade institucional. Sem transparência e sem alarido, para que não se levantassem ondas — a atribuição destes apoios não justificou uma conferência de imprensa da tutela, nem os seus critérios de atribuição foram devidamente explicitados ao público. E, assim, o governo decidiu alocar milhares ou milhões de euros em transferências para os grupos de comunicação social, de forma opaca e sem que o escrutínio possa realmente ser exercido, alterando até os valores após a publicação dos apoios. Repito, para quem não entende a gravidade: o governo está, na prática, a subsidiar a comunicação social através de critérios que não são transparentes e fórmulas de cálculo que só foram conhecidas por alguns (os que receberam mais). Se isto não for inédito entre democracias maduras, é pelo menos insólito.

É um erro enquadrar este tema nos valores ridículos que foram atribuídos ao jornal Observador e (bem) recusados pela sua administração. E é um erro porque o que está em causa é muito mais do que a situação específica de um ou outro órgão de comunicação social. Está em causa a transparência de uma decisão política sensível: não é admissível que o governo financie quem escrutina a sua actividade sem publicitar os critérios com clareza, sem adoptar o máximo rigor na sua aplicação e sem optar pela transparência na partilha da informação. Está também em causa a própria credibilidade externa dos órgãos de comunicação social perante o seu público: aceitar tais apoios, distribuídos de forma opaca, é participar num processo que coloca injustamente sob suspeita a independência jornalística que deveria ser à prova de bala. E, por fim, está em causa a natureza destes apoios: o Estado está só a apoiar empresas em virtude da crise ou está a interferir no mercado da comunicação social?

Comecemos por aí. Com esta solução, o governo interfere no mercado da comunicação social. E não tinha de ser assim, porque havia uma alternativa óbvia ao pagamento de publicidade (que, na prática, é um subsídio). Essa alternativa era um empréstimo com garantia do Estado, ao qual todos os órgãos de comunicação social pudessem recorrer — seria, nesse sentido, equitativo e cada um usaria em função das suas necessidades. Mas seria também uma forma de o Estado não interferir na concorrência, como fará, apoiando mais uns em detrimento de outros. Aliás, precisamente para evitar isso, a solução do empréstimo foi aplicada noutros países e, em Portugal, noutros sectores de actividade, pelo que nada teria de difícil na sua implementação. Então, por que razão não se seguiu esse caminho? Talvez porque implicaria manter uma saudável distância entre o poder político e os órgãos de comunicação social. Uma distância que ninguém aprecia. Nem o poder político que, pela sua natureza, ambiciona sempre controlar o escrutínio que a comunicação social lhe aplica. Nem os próprios grupos de comunicação, já que muitos deles vingaram à base de um acesso privilegiado ao poder.

Se o governo já tinha optado por este mau caminho, é lamentável que o tenha conseguido tornar ainda pior com tamanha opacidade no processo. A forma desastrada como geriu este dossier não tem ponta por onde se lhe pegue: não explicitou critérios, não mostrou as suas contas, não explicou porque recusou opções alternativas de apoio, não anunciou a decisão (deixou que a publicação em Diário da República o fizesse), enganou-se nas contas e corrigiu-as com ligeireza. Esquecer que não pode haver financiamento à comunicação social sem total transparência já não é um mero problema de incompetência, é a demonstração de que a tutela não tem noção de que a relação entre o poder político e o jornalismo vive da tensão e do escrutínio, e que não pode ser de aceitação acrítica.

Num país com maior tradição de liberdade e até mais amor próprio, seria de esperar que os grupos de comunicação social rejeitassem, em bloco, todo e qualquer apoio público até que o governo tornasse o processo de antecipação de publicidade transparente e escrutinável. Não seria apenas uma forma de limpar este assunto. Seria, sobretudo, uma forma de a comunicação social dizer a todos (em particular ao governo) que, mesmo em momentos difíceis, não pode ser cúmplice deste tipo de processos — tão opacos que mancham o seu prestígio e colocam sob suspeita a independência com que os jornalistas cumprem a sua missão. Mas estamos em Portugal e reina o silêncio. É uma pena que, por cá, não se perceba que, com a pandemia a permitir poderes excepcionais, a única resposta possível é um escrutínio excepcional.

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