Foi a semana passada que o primeiro-ministro se lembrou de lamentar a “doença nacional”: o cepticismo. Houve quem discordasse. O cepticismo? Se alguma coisa definia os portugueses não era o exercício da desconfiança, especialmente em relação ao poder, mas o contrário: a crendice, a disponibilidade servil para acolher tudo o que, de cima, lhes diz quem manda. Desculpem, mas desta vez terei de defender o chefe do governo, e não é porque eu seja crente. É porque me parece que os portugueses também não são. Crentes? Não há na Europa ocidental, segundo os inquéritos sociológicos, população mais desconfiada, menos disponível para acreditar nos outros. E não, não é indício de discernimento ou de individualidade. É a desconfiança dos pobres, escassez do que, no jargão universitário, se chama “capital social”. Sim, o cepticismo existe. O que faltou dizer ao primeiro-ministro foi que essa “doença nacional”, de que neste momento se queixa, lhe deu muito jeito até agora.

Não, os portugueses nunca acreditaram em António Costa. Votaram nele, mas acreditar nele, no sentido de entusiasmar-se com os seus projectos, partilhar os seus ideais, isso não, e por esta simples razão: Costa nunca lhes deu nada disso para eles acreditarem. Não percebe o poder socialista quem julgar que é feito de fé no socialismo. António Costa viveu até hoje do cepticismo dos portugueses. Em primeiro lugar, do cepticismo em relação à possibilidade de quaisquer “reformas” tornarem as coisas em Portugal melhores do que são. Os organismos internacionais bem as recomendam, como meio de adaptar a sociedade portuguesa para melhor competir nos mercados internacionais e criar mais riqueza. Outros países fizeram isso com sucesso. Os portugueses não acreditam: ocorrem-lhes as dificuldades da transição, assustam-se com os efeitos secundários neste ou naquele sector, mesmo que tudo em geral corra bem. Por isso, Costa pôde apagar a palavra “reforma” do dicionário político nacional. Pôde mais: ver Portugal ser ultrapassado na hierarquia da riqueza por países ainda há poucos anos mais pobres, sem que isso causasse qualquer estremecimento nacional. Ninguém em Portugal acredita que Portugal possa fazer melhor.

Ninguém acreditou que as reformas fossem vantajosas. E ninguém acreditou também, durante muito tempo, que fossem necessárias. Isso foi o que em 2011, por ocasião da bancarrota de José Sócrates, muita gente disse aos portugueses, a começar pelas instituições internacionais que impediram que salários e pensões deixassem de ser pagos: ou Portugal mudava, ou dali a poucos anos estaria na mesma aflição. Os portugueses não acreditaram. Viram o BCE fazer os juros baixar, apesar de a dívida pública continuar a subir. Viram mais: Bruxelas a festejar Costa, enquanto a “geringonça” repunha e restaurava tudo o que lhe tinham recomendado que não repusesse nem restaurasse. Numa época em que se podia imprimir notas de banco sem que surgisse inflação, não era preciso reformar. Quando veio o PRR, o cepticismo pareceu justificado: bastava deitar dinheiro para cima dos problemas. António Costa teve a sua maioria absoluta.

Agora, porém, o primeiro-ministro queixa-se do cepticismo. E com razão. É que os portugueses parecem ter começado a não acreditar também noutra coisa: em que isto se possa manter. O tempo do dinheiro barato acabou como os livros sempre disseram que teria de acabar, num pânico inflacionista. Ora, o poder socialista tem sido o poder do dinheiro barato, que dispensou reformas e permitiu favorecimentos. Segundo uma sondagem desta semana, 91,5% dos portugueses convenceu-se finalmente de que as reformas são necessárias, mas 65,8% não acredita que o governo as faça, mesmo com a maioria absoluta. O cepticismo atinge agora o poder socialista.  O que está a ter este curioso efeito: de repente, tudo parece mal. Reparem nos títulos de imprensa da última semana: “Marta Temido: de estrela do PS a ministra do caos na saúde”; “aumento da pobreza não aparece nos dados oficiais”; “produtividade mais longe da média europeia e salário só sobe nos menos qualificados [por via do aumento administrativo do salário mínimo]”. A única notícia nestes casos é que estes casos são finalmente notícia. António Costa tem motivo para se queixar: o fogo começa a chamuscar os dedos ao feiticeiro. Só lhe faltava agora que, ainda por cima, os portugueses, de repente, começassem a acreditar em alguma coisa.

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