Para quem já reparou no estado caótico do trânsito em Lisboa sugiro a leitura desta nota no portal do governo. Data de 2019 e, nessa altura, o trânsito fluía tão bem que os problemas eram outros: faltava um mês para as eleições europeias e seis para as legislativas, de modo que era preciso criar uma dinâmica ainda mais optimista. Uma das soluções encontradas foi a redução do preço dos passes sociais na Área Metropolitana de Lisboa para 40 euros por mês, comboios incluídos. Claro que se mencionaram outras razões, como “aumentar o uso do transporte público, reduzir as emissões de CO2, descarbonizar a economia e enfrentarmos as alterações climáticas”. Eram todas óptimas e louváveis. Pena foi que se pensou em tudo menos nas pessoas que utilizam esses transportes públicos. Foi decretada a redução dos preços e isso bastou, a par com a travagem da privatização da Carris, do Metro de Lisboa e dos transportes colectivos do Porto.

É sintomático da leitura da dita nota que a única referência aos passageiros, ao seu conforto ou ao cumprimento dos horários seja para, perante a ineficiência, percebermos “do que estamos a falar para não deitarmos fora o bebé com a água do banho”. O bebé deviam ser as orientações governamentais para o sector, um valor mais alto que se levanta e que se impõe ao bem-estar dos passageiros. É curioso como a abstracção de boas intenções permite que os privilegiados vejam os outros como um grupo de gente, povo, e não como pessoas concretas que são. É curioso, mas verdade seja dita que o fenómeno não é de agora. Esse foi até um dos vícios a que a democracia liberal quis pôr termo. Nem sempre com sucesso, como se vê.

Era fácil perceber que a redução do custo dos passes sociais ia correr mal. Bastava colocar as perguntas certas e suspeitar um bocadinho da boa-fé socialista. Até eu, que não percebo nada de transportes públicos, me questionei sobre o barrete da redução dos preços dos passes sociais. E nem deu assim tanto trabalho. Na verdade, não havia estudos que levassem a crer que os portugueses iam trocar o automóvel pelos transportes públicos; tão pouco haveria investimento dos operadores, pois o Estado já lhes tinha garantido o pagamento devido, independentemente do aumento da procura. Pelo contrário, tudo indicava que a forma como seria implementada a redução do preço dos passes sociais ia levar a um desinvestimento no sector e a uma deterioração dos serviços prestados. Houve quem avisasse que os autocarros e os comboios iam ficar sobrelotados, mas praticamente ninguém fez caso disso. As europeias eram daí a um mês e as legislativas daí a 6. Havia muita coisa em jogo.

Entretanto, chegámos a 2023 e o mês de Março começou com uma notícia estranha. No final da tarde do primeiro dia, os passageiros de um comboio da linha de Sintra tiveram de ser retirados das carruagens porque se sentiram mal e accionaram o alarme. A PSP compareceu no local e afirmou que as carruagens estavam sobrelotadas. A CP, diga-se que prontamente, corrigiu essa observação para ‘lotação completa’. Como seria de esperar o dedo foi de imediato apontado às greves convocadas. Não vou discutir se bem, se mal, se de acordo ou em violação das regras. A questão é outra: o investimento nas infra-estruturas não estava garantido?

Há um ano o governo extinguiu a parceria público-privada do hospital Beatriz Ângelo, em Loures. Bem ou mal, o hospital funcionava. O governo decidiu não renovar a parceria mesmo sabendo que essa decisão era mais cara e de eficiência duvidosa. Um ano depois o resultado é estarrecedor. Os utentes, as tais pessoas que as boas intenções abstractas não têm em conta, estão estupefactas com o fecho da urgência de pediatria. O desnorte socialista é tal que até o autarca do PS quer o regresso da parceria público-privada. Uma reviravolta semelhante à de Pedro Nuno Santos que, em Novembro de 2021, ofendia quem era a favor da privatização da TAP para, em Novembro de 2022, propor a privatização da mesma companhia aérea. No meio disto temos os truques a que nos habituámos: que o comboio de Sintra não estava sobrelotado, mas “circulava com lotação completa”; que o fecho da urgência pediátrica em Loures não se deve a falhas na gestão do hospital decorrentes do fim da PPP, mas “porque não há disponibilidade de profissionais”; que não há austeridade, mas “exigência”. De certa forma nem há um governo, mas uma semântica. Não temos um primeiro-ministro, mas um senhor de cabelos brancos que anda pelo país do qual pouco sabe, não é responsável por nada e se limita a ser quem é. São pequenos grandes sinais que demonstram que no PS e no governo não se faz ideia do que se quer e do que se está por ali a fazer. Pedro Nuno Santos saiu quando percebeu que as tais pessoas concretas começavam a dar conta disso; Fernando Medina é menos afoito para tomadas de decisão desse tipo. Já António Costa, enfim, o tal senhor que anda por aí a acenar aos comboios não passa de António Costa.

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