O homem do bigode, a mulher do buço, o pedreiro, a porteira, o peludo, o saloio, o burro, o devorador de bacalhau. Toda a gente, directa ou indirectamente, já se confrontou com os estereótipos que os estrangeiros têm dos portugueses, nomeadamente nos países que receberam imigração portuguesa nas décadas de 1970 e 1980 – França, Canadá, Luxemburgo, Suíça, entre outros. De certo modo, habituámo-nos a eles. Aprendemos a aceitá-los. Em muitos casos, já nem os achamos insultuosos; apenas castiços. Até porque, nessas décadas, essas caricaturas tinham uma ponta de verdade – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico. Foi, também, essa realidade que os nossos emigrantes levaram consigo. E foi esse o Portugal que deram a conhecer.

Mas, verdade seja dita, mesmo que levemos a coisa com alguma tolerância, já não gostamos de ser identificados com esses estereótipos. Afinal, parte dessa caricatura do povo português tem como efeito uma espécie de inferiorização social de nós, portugueses, face a eles, franceses, suíços ou ingleses. Uma inferiorização que, hoje, é particularmente injusta: em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus. E, consequentemente, as novas gerações de portugueses que se aventuram pelo mundo têm um perfil de qualificações muito superior ao da geração dos seus pais e avós. Portugal mudou. E os portugueses também.

Essa contradição, entre o que somos e como ainda nos reconhecem, sobressai na reportagem do Público, publicada há dias. Questionados os jovens portugueses que vivem no estrangeiro sobre esses estereótipos, os episódios vão todos no mesmo sentido: os portugueses que hoje emigram são cientistas ou engenheiros, mas continuam a ser vistos como trolhas. Ou seja, continuam a ser vistos como se fossem os seus pais.
Seria confortável acharmos que o preconceito que criticamos (e em que todos esses equívocos assentam) é exclusivo aos estrangeiros, que desconhecem a realidade portuguesa. Mas é um engano. A verdade é que esse preconceito está bem vivo entre nós e é aplicado a portugueses por portugueses. Esse é o lado negro da relação de Portugal com os seus emigrantes, que fingimos não existir e que não é mais do que o confronto entre dois países tão distantes como o Portugal de 1970 e o de hoje. Chocar de frente com o passado não é fácil. Sobretudo em Portugal: o país detesta olhar para o que foi e, quando tem mesmo de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

É Agosto. Carros de matrícula estrangeira percorrem as estradas e invadem as aldeias e pequenas cidades do país. É o mês dos emigrantes. E eles regressam à pátria para matar saudades, mostrando aos filhos, muitos deles nascidos fora, o que os fez esperar um ano pelo Verão. Mas, em muitos casos, o que os espera a eles é o mesmo desprezo social com que lidam lá fora – piadas e anedotas sobre o seu português afrancesado, estranheza e alguma condescendência com os seus hábitos. Portugal olha para os seus emigrantes com a mesma superioridade que censura aos que os recebem lá fora.

Não é só um problema de ingratidão – os emigrantes contribuíram muito para o desenvolvimento do país com as suas remessas, numa relação apaixonada e incondicional com as suas raízes. É, sobretudo, um problema de memória. Enquanto eles cá estiverem, todos os anos em Agosto, seremos forçados a lembrarmo-nos de onde viemos – das dificuldades da geração dos nossos pais, do analfabetismo, do inconformismo face a um país com poucos horizontes que os fez arriscar tudo lá fora. Mas, quando eles deixarem de vir? Iremos, finalmente, esquecer tudo. E quem esquece o passado perde também a visão sobre o futuro.

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