Vamos explodir por causa da Coreia do Norte? Quem diria que a metade mais pobre da Península da Coreia, aquela que, vista do espaço, fica às escuras à noite, como se não fizesse parte do mundo contemporâneo — quem diria que seria por causa da Coreia do Norte que estaríamos aqui a falar de catástrofes e de guerras? Mas a verdade é que a I Guerra Mundial começou por causa da Bósnia, e a II Guerra Mundial por causa de Dantzig: não seria a primeira vez que a humanidade decidia massacrar-se por causa de um canto obscuro do mapa. Que sentido faz isto? Não é culpa dos EUA? E sobretudo de Trump? Deve ser, claro. Só pode ser. Mas é mesmo?

Ninguém percebe a Coreia do Norte. É uma monarquia hereditária comunista que sobreviveu à Guerra Fria, mas não é isso que faz dela um caso. A China, o Vietname ou Cuba também ainda vivem sob ditaduras comunistas. Mas a China, o Vietname e agora, segundo parece, também Cuba, inseriram-se na globalização, conjugando a ditadura do partido com uma economia capitalista. É o que muita gente gostaria de ver Pyongyang fazer. Mas em vez disso, Kim Jong-un persiste na velha receita soviética de industrialização militar à custa da miséria da população.

Aos comentadores ocidentais, resta praticar toda a ginástica analítica possível para tentar encaixar Kim em alguma narrativa confortavelmente racional. Que quer ele? Garantir o seu regime contra interferências externas? Mas não lhe basta o pouco interesse da China e da Rússia numa Coreia unificada e aliada dos EUA? Ou pretende apenas obter contrapartidas, como o pai fez em 1994? São as suas armas um meio alternativo de se integrar na economia mundial — em vez de exportar sapatos, testa mísseis e bombas nucleares? O ponto destes raciocínios é clara: basicamente, trata-se de encontrar ângulos que permitam passar a bola para o campo americano, e assim culpar os EUA pela crise coreana — ou porque pressionam a Coreia do Norte, como Trump, ou porque a ignoram, como Obama.

Tudo pode ser mais complicado. Talvez o motivo de Kim Jong-un não seja o medo de acabar como Kadhafi na Líbia, mas a tentação de projectar poder no mundo, sujeitando uma cidade americana à sombra dos seus mísseis nucleares. Seja como for, é possível conceber uma ordem estável enquanto um Estado se distrai a disparar para os lados, a ver se acerta em alguma coisa? Trump ajudou à incerteza, oscilando entre a retirada da Coreia do Sul e o ataque preventivo. Mas ninguém tem soluções boas. Uma defesa anti-míssil na região irritaria a China, por a privar do seu dissuasor nuclear. Entretanto, a parada está a aumentar. Kim fez 35 testes de mísseis em quatro anos, contra 18 do seu pai em 18 anos. Há quem incite Trump a entender-se com a China, grande parceiro comercial de Pyongyang, para fechar a Coreia do Norte numa jaula diplomática. Mas qual o preço da China? É sabido que Pequim, tal como Moscovo, gostaria de convencer os EUA a substituir o projecto das Nações Unidas de uma ordem mundial com as mesmas regras para todos, pelo retorno a um mundo dividido em “esferas de influência”, cada uma com os seus valores próprios. Será esse um mundo melhor?

É fácil tratar cada surpresa bélica de Kim Jong-un como mais um “teste” aos presidentes americanos. É a nossa maneira de reconhecer o papel dos EUA como única potência capaz de ordenar e de dar inteligibilidade ao mundo. É também a nossa maneira de ignorar o potencial de desordem e de opacidade desse mundo. Porque o que a crise da Coreia pode acabar por demonstrar é que talvez os EUA já não cheguem para dar ordem ao planeta — nem como salvadores nem como culpados.

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