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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Francisco Ferreira: "Como é que uma empresa pode estar nos rankings da sustentabilidade se não oferece o passe?"

Em entrevista ao Observador, o ambientalista Francisco Ferreira reflete sobre o ativismo radical — atirar sopa a quadros é "uma distração" — e fala sobre a sua experiência nas negociações das COPs.

Francisco Ferreira começou a dedicar-se à defesa do ambiente ainda na infância. Em 1976, na escola preparatória, juntou-se a um grupo de colegas mais velhos, estudantes do Liceu de Setúbal, numa campanha de luta pela criação de uma reserva natural no estuário do Sado, para proteger o rio da poluição. O envolvimento naquele primeiro movimento ambientalista marcou-o decisivamente: poucos anos depois, na hora de escolher um curso universitário, optou pela Engenharia do Ambiente e, a partir daí, dedicou toda a sua vida profissional ao ambiente e ao clima.

Atualmente, é um dos nomes mais conhecidos da ciência climática em Portugal. Presidente da Quercus entre 1996 e 2001, fez parte do grupo de históricos daquela associação ambientalista que em 2016 fundou a Zero, a que hoje preside. Além de ambientalista e ativista climático, Francisco Ferreira é professor e investigador no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa — e tem sido um dos cientistas portugueses mais ativos no debate climático global, tendo estado presente em múltiplas cimeiras das Nações Unidas sobre o clima, incluindo na COP21, em 2015, da qual resultou o Acordo de Paris.

Dois meses depois de ter estado no Canadá e no Egito, para participar na COP15 (sobre a biodiversidade) e na COP27 (sobre as alterações climáticas), Francisco Ferreira fala, em entrevista ao Observador, sobre as dificuldades das complexas negociações em torno de temas como a mitigação dos impactos das alterações climáticas, a adaptação dos países aos efeitos inevitáveis do aquecimento global e sobre o dever dos países mais ricos e desenvolvidos de ajudar os países mais pobres a pagar a elevada fatura de se reerguerem depois dos eventos meteorológicos extremos que já podem, atualmente, ser associados às alterações climáticas.

Francisco Ferreira aborda também o novo ativismo climático, acelerado pelo fenómeno Greta Thunberg e que nos últimos meses se tem traduzido em protestos radicais, incluindo o vandalismo de obras de arte com sopa, e com ocupações de escolas em Portugal. Para o cientista climático, é necessário que haja um “repensar muito sério deste ecossistema dentro do ambientalista”, para que a ação climática não se resuma a atos violentos que acabam por ser “uma distração e uma divisão” — que, muitas vezes, não transmitem corretamente a mensagem à generalidade da população. O líder da Zero diz, por exemplo, que os jovens que no final do ano passado exigiram a demissão do ministro da Economia, António Costa Silva, falharam o alvo — e avisa os jovens ativistas que a credibilidade se constrói com “muito trabalho” e “muita literacia”.

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Francisco Ferreira é o presidente da Zero desde 2016

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A última COP ainda está fresca na nossa memória, foi no ano passado. Tivemos a COP do clima em novembro e a da biodiversidade em dezembro e foi um dos portugueses que estiveram presentes nas duas. Talvez o dado mais revelador da COP27 seja o número “27”. Continua a ter esperança no sucesso destas cimeiras?
Claro que sim. Se não, também não fazia o investimento de participar nestas conferências. Talvez deva explicar um bocadinho o que é este mecanismo das Nações Unidas. Nós temos nas Nações Unidas, e na área do ambiente nomeadamente, várias convenções. Aliás, houve um momento muito importante, que foi em 1992, quando no Rio de Janeiro, na chamada ECO-92, foram criadas três convenções: a convenção relativa às alterações climáticas, a convenção relativa ao combate à desertificação e ainda a relativa à diversidade biológica, ou biodiversidade, se quisermos. Estas convenções são, no fundo, o principal fórum decisório à escala global para as matérias que estão em jogo em cada uma delas e têm uma periodicidade de reunião com as partes. Aqui, as partes são todos os países, cada país é uma parte, sendo que a União Europeia também é uma parte.

Os países signatários.
Os país signatários, exatamente. Por exemplo, e por curiosidade, os Estados Unidos não são signatários da convenção da diversidade biológica, mas são das alterações climáticas. E, por exemplo, a convenção da biodiversidade só se reúne de dois em dois anos. Por isso, nós tivemos em dezembro a COP15, a 15.ª conferência das partes, enquanto que no clima já vamos na 27.ª, com o intervalo que houve, devido à pandemia, no ano 2020. Acho que a imagem do copo meio cheio e do copo meio vazio é aquela que prefiro para falar destas reuniões. Se nós olharmos, por exemplo, para o Acordo de Paris, em 2015, na chamada COP21, e olharmos para os cenários que estavam aí em cima da mesa, nós falávamos de um aumento de temperatura em relação à era pré-industrial entre 4ºC e 6ºC — sendo que, neste momento, já vamos em 1,1ºC, 1,2ºC. O Acordo de Paris traçou-nos um caminho para ficarmos bastante abaixo de um aumento de 2ºC, preferencialmente 1,5ºC. Mesmo esta diferença de meio grau é significativa. Ora, neste momento, o último cenário das Nações Unidas aponta-nos para um aumento de 2,4ºC a 2.8ºC. Ou seja…

Políticas atuais estão a conduzir a Terra para um aquecimento de 2,8°C

…já se fez qualquer coisa.
Já se fez qualquer coisa. Pode dizer-se que ainda estamos muito acima de 1,5ºC, que é o desejável.

E esse valor continua a prometer impactos grandes.
Exatamente: 2,4ºC a 2,8ºC são impactos muitíssimo significativos. Mas o que é facto é que é muito melhor, e se não tivéssemos tido a aplicação do Acordo de Paris, mesmo que de forma limitada, muitos dos países mais vulneráveis, dos países em desenvolvimento, não tinham os apoios que neste momento têm — e nós estaríamos a falar de um cenário de certeza muito pior em termos de aumento de temperatura. Esta é a parte que me convence de que alguma coisa está a avançar.

"Se nós olharmos, por exemplo, para o Acordo de Paris, em 2015, na chamada COP 21, e olharmos para os cenários que estavam aí em cima da mesa, nós falávamos de um aumento de temperatura em relação à era pré-industrial entre 4ºC e 6ºC. Ora, neste momento, o último cenário das Nações Unidas aponta-nos para um aumento de 2,4ºC a 2,8ºC."

É o que o faz continuar a participar?
É o copo meio cheio. O copo meio vazio — ou um bocadinho mais vazio — é, realmente, aquilo que são objetivos absolutamente cruciais, de estabelecermos metas já de muito curto prazo, por exemplo, para esta trajetória de 1,5ºC. A ideia é que a partir de 2025 à escala global as emissões começassem a reduzir, em vez de continuarem a aumentar. Aliás, nós só tivemos três momentos, ao longo das últimas décadas, em que tivemos um recuo nas emissões, ou seja, as emissões decresceram em relação aos anos anteriores. Foi aquando da queda da União Soviética, aquando da crise financeira no final da década de 2000-2010 e agora com a pandemia. De resto, tem estado sempre a crescer, praticamente de forma exponencial. Cá está: o resultado que nós queríamos não estamos a conseguir.

Não, a pandemia não é boa para o ambiente. Mas pode deixar pistas para um futuro sustentável

Na COP26, nas horas finais de negociação em Glasgow, a expressão “acelerar a eliminação progressiva do carvão”, que estava na primeira proposta, após uma ronda de negociações bastante intensa, em que os países cuja economia depende do petróleo tiveram uma voz discordante, acabou por se transformar numa expressão inócua: “Aceleração dos esforços rumo à redução progressiva da eletricidade a carvão não sujeita a compensação carbónica e dos subsídios ineficientes para os combustíveis fósseis.” Ou seja, pouco ou nada. Qual é a sua experiência a negociar com estes países?
Nós às vezes temos uma ideia de que são apenas os países do Norte Global que têm uma responsabilidade muito grande nestas negociações. E têm, acima de tudo, do ponto de vista histórico, porque o dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa que nós pomos na atmosfera não podem ser vistos numa escala anual, eles ficam na atmosfera. Aquilo que habitualmente é utilizado é uma lógica de fazermos as contas a 100 anos. Portanto, se for ver o historial, quem ganha são obviamente os Estados Unidos, depois a União Europeia, e por aí em diante. Mas o que é facto é que também era de esperar, da parte de alguns países — a China já tem o maior peso em termos das emissões atuais —, que fossem também mais ambiciosos. Neste momento, do ponto de vista per capita, por habitante, e obviamente não entrando aqui com algumas outras nuances — o meu computador feito na China está a contabilizar as suas emissões na China, não está a contabilizar aqui —, a China tem maiores emissões per capita do que Portugal. Foi a China e a Índia — foi a Índia que deu o pontapé de saída, no final da conferência de Glasgow, a dizer “nós não aceitamos o fim do carvão”. E a China a seguir diz: “A Índia tem toda a razão, nós achamos que o carvão tem de continuar a ter um peso importante na nossa produção de eletricidade.” E o carvão é realmente dramático do ponto de vista das suas emissões. A própria Europa, neste momento, está a ir buscar o carvão para lidar com a crise energética. Para se ter uma ideia, uma central a carvão emite, por cada kWh de eletricidade produzida, mais de 900 gramas de dióxido de carbono, enquanto uma central também usando combustíveis fósseis, como o gás, se for uma central de ciclo combinado, está ali à volta dos 320-350.

COP26. Como quatro dias de negociação baixaram a ambição do Pacto do Clima de Glasgow

Por isso é que se fala do gás como combustível de transição.
Sim, às vezes de forma exagerada e demasiado confiante. Porque, realmente, o gás natural não é natural: é fóssil. Ou seja, pelo menos sejamos claros em relação a isso. Foi isso que marcou muito a conferência de Glasgow. E agora também no Egito.

E essas delegações apresentam-se na mesa negocial com disponibilidade para ceder nessas rubricas dos fósseis?
Há um grande problema que estas negociações das Nações Unidas têm, e isso notou-se novamente agora em Sharm El Sheikh, no Egito, na COP27: chegámos ao fim, a União Europeia tinha em cima da mesa objetivos como o recuo das emissões a partir de 2025, o estar no texto das conclusões finais a necessidade de terminar com o uso de combustíveis fósseis, entre outras matérias acima de tudo na área da mitigação, e o que é facto é que também não se conseguiu. Porquê? Porque as decisões têm de ser tomadas por unanimidade.

Alemanha e Áustria retomam produção elétrica a carvão para reduzir necessidade de gás russo

Não pode haver uma voz discordante.
Não pode haver uma voz discordante.

Por isso é que muitas vezes se chega a estes consensos inócuos?
Exatamente. Ou, pelo menos, sem um nível de ambição que seria desejável. É claro que é diferente ter um país pequeno a levantar a voz, outra coisa é ter a Índia e a China a dizer “isto é inaceitável”.

O cientista e ambientalista defende que é necessário repensar o modo como as ações de defesa do clima são conduzidas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Uma das questões tem a ver com a injustiça. Muitos países cuja economia se está a desenvolver nesta fase da história dizem “mas o Ocidente, há 100 ou 200 anos, gastou carvão e fez muitas emissões para desenvolver a sua economia, porque é que nós não temos esse direito?” Esta tensão nota-se?
Claro que se nota. E nota-se de forma muito clara e explícita a todos os níveis. Diria que os pontos críticos são precisamente este da mitigação, da redução das emissões, e um outro que está intimamente relacionado, que é o do financiamento. Obviamente, o que esses países dizem é: “Se vocês não querem que eu use o carvão, têm de nos proporcionar a tecnologia e os meios financeiros para o fazer.” E aí os países desenvolvidos acabam por estar longe daquilo que seria desejável. Em Paris, considerou-se que deveria existir um fundo de 100 mil milhões de dólares por ano, a partir do ano 2020 e até ao ano 2025, para depois aumentar, destinados precisamente à mitigação e à adaptação, que ainda não conseguiu atingir este valor anual. Portanto, há aqui legitimidade dos países que se estão a desenvolver para levantar esta questão. Mas não nos esqueçamos que nesta divisão que existe entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, há países classificados como em desenvolvimento que são, por exemplo, a Arábia Saudita ou o Qatar. Este pote dos países em desenvolvimento mete desde países africanos que estão em situação dramática, já com o impacto das alterações climáticas e cuja emissão é quase negligenciável por habitante, até à China e à Índia, e até a países que são enormes produtores de petróleo.

Na COP27, um dos temas foi a questão das “perdas e danos”, um conceito da ONU para a necessidade de financiar a adaptação e a mitigação dos efeitos nos países mais pobres. Neste caso, pareceu que já era da parte das economias mais desenvolvidas, dos EUA, da União Europeia, que havia uma resistência a chegar a um acordo com maior ambição. Também o preocupam estas resistências da parte ocidental?
Esta questão das perdas e danos era, do ponto de vista político e de confiança neste mecanismo das Nações Unidas e na realização das COP, um elemento absolutamente essencial agora no Egito. O que é que são as perdas e danos? Não é a mitigação, não é a adaptação, é o lidar com eventos meteorológicos e climáticos extremos para os quais eu preciso, depois, de dinheiro para ultrapassar as consequências. Ou seja, uma coisa é eu preparar-me para a subida do nível do mar, para lidar com ondas de calor ou com a seca. Outra coisa é eu ter um ciclone tropical, como é o caso do Oceano Índico, afetando países como as Filipinas ou Moçambique, ou ter secas dramáticas ou as monções no Paquistão, que tiveram uma intensidade muito maior — e que se sabe estarem a ser ampliadas pelas alterações climáticas —, e depois precisar de financiamento.

COP27 devia acabar esta sexta-feira, mais vai prolongar-se. O que está a fazer adiar um acordo final?

Para a reconstrução?
Para a reconstrução, para as pessoas desalojadas, etc. E qual era a resistência grande dos países desenvolvidos? Isto é um processo que já tem 30 anos, e que em 2013 e 2019 teve dois avanços fundamentais, mas o fundo, que era o mais importante, só foi agora constituído. Mas quais eram os obstáculos? Em primeiro lugar, é sempre o assumir de algo óbvio — que não deveria, nesta altura, levantar quaisquer dúvidas — que é: “Nós, países desenvolvidos, somos os responsáveis por isto estar a acontecer, pelo facto de as alterações climáticas estarem a ter lugar, porque fomos os que emitimos mais.”

E é preciso também associar as alterações climáticas a esses acontecimentos extremos e às vezes ainda há alguma resistência.
É verdade. Essa é a segunda questão. Há alguma resistência em, no fundo, assumir do ponto de vista científico o que é o sair do normal, apesar de isso, neste momento, ser já relativamente fácil e simples. A outra questão crucial dizia respeito ao financiamento. Os EUA, a Europa, etc., diziam: “Bem, então mas quem é que deve apoiar este fundo e quais são os destinatários? Porque é que um país rico do Médio Oriente, produtor de petróleo, não deve também contribuir para este fundo e devem ser apenas os países classificados como desenvolvidos?”

Ou a China…
Ou a própria China. E quais devem ser as prioridades? Estamos a falar de todos os países em desenvolvimento poderem receber este dinheiro? Ou devemos apenas falar daqueles que estão efetivamente mais vulneráveis, nomeadamente os africanos, que era aí que a COP, aliás, estava a ter lugar. E foi esta tensão entre o assumir da responsabilidade dos países e a parte de se encontrar quem poderia contribuir para o fundo — e isso acabou por ficar em aberto — que criou esta tensão que levou a mais dois dias de conferência.

"Em Paris, considerou-se que deveria existir um fundo de 100 mil milhões de dólares por ano, a partir do ano 2020 e até ao ano 2025, para depois aumentar, destinados precisamente à mitigação e à adaptação, que ainda não conseguiu atingir este valor anual."

Havia o risco de termos financiamento oriundo desse fundo a chegar à Arábia Saudita ou à China e isso era um problema identificado.
Esse era um problema do ponto de vista, diria, até quase ético, quando temos as situações muito mais complicadas de países que precisam mesmo deste dinheiro.

Foi presidente da Quercus entre 1996 e 2001 e hoje é o presidente da Zero — e acho que podemos dizer que é um dos rostos mais conhecidos do país no que toca à questão do ambientalismo e da ciência climática. Mas ao mesmo tempo, passa os seus dias na universidade. O que é que surgiu primeiro?
Eu liguei-me aos movimentos ambientalistas numa altura bastante precoce. Estávamos em 1976, eu estava na altura na escola preparatória, portanto no 5.º ou 6.º ano, e em Setúbal iniciou-se uma campanha levada a cabo por alunos do Liceu de Setúbal para a criação da reserva natural do estuário do Sado — e, além disso, também em 1976 foram criados o Parque Natural da Arrábida e o Parque Natural da Serra da Estrela. O Sado era um rio poluído à data e eu acabei também, porque conhecia alguns colegas mais velhos, por me envolver nesse movimento. Nessa altura, fazíamos parte da Liga para a Proteção da Natureza. Depois, foi criado o Setúbal Verde, que era um jornal, depois o Projeto Setúbal Verde — e mais tarde o Projeto Setúbal Verde é integrado na Quercus. Portanto, na altura em que eu estou no 12.º ano a escolher o que é que deveria ser o meu caminho, acabei por ir para Engenharia do Ambiente. Ainda pensei em seguir uma rota completamente diferente, em que a minha ação voluntária na área do ambiente fosse complementar, mas achei que valia a pena ter a base científica e técnica dessa área — e foi isso que, depois, me levou a prosseguir os estudos nesta matéria. Sendo que, na parte do clima, a área em que eu trabalho é, acima de tudo, a qualidade do ar e o clima do ponto de vista das emissões, portanto do ponto de vista da mitigação — há outros colegas que trabalham já na área da adaptação e nos impactos do clima. Ainda é, obviamente, uma ciência bastante diversificada.

Hoje, como cientista, docente e investigador especializado nas questões do clima, é mais otimista ou mais pessimista relativamente ao futuro do nosso planeta?
Acho que isso nos levanta uma questão que vai bem além da ciência — e que tem a ver com as políticas que são implementadas. Há uma questão que me parece absolutamente fundamental: é uma ilusão nós pensarmos que a tecnologia e que a ciência resolvem o problema climático. São absolutamente fundamentais e cruciais, porque é a partir da ciência que nós conseguimos olhar para cenários, perspetivar o que vai acontecer, que conseguimos calcular a própria eficácia das políticas e medidas que é necessário implementar, as tecnologias que nos permitirão sair dos combustíveis fósseis e apostar na eficiência energética, nas fontes de energia renovável. Portanto, tudo isso é absolutamente crucial, como ajuda da ciência. Mas a decisão é efetivamente política, e também uma decisão à escala individual, do ponto de vista daquilo que é ou não o nosso olhar para um consumo que não é compatível com um planeta que tem limites — isso é muito claro — que nós já estamos a ultrapassar. Temos uma sociedade muito desigual, quer em cada um dos países, quer entre países, e portanto há aqui várias crises como que estou a lidar — uma crise climática, uma crise de recursos, uma crise de biodiversidade —, todas elas interligadas, mas que passam, claramente, por ter políticas nas empresas, nos países, nas autarquias e obviamente uma mudança de paradigma individual nossa — também não devemos sempre passar as responsabilidades todas para cima. O que sinto é que nós, em muitos casos, acabamos por usar soluções paliativas e não soluções radicais e estruturantes. Vamos, por exemplo, à questão de um setor fundamental do ponto de vista do conforto das pessoas, da sua qualidade de vida e do seu bem-estar, que é a questão dos edifícios eficientes: ter conforto em casa no verão e no inverno. Tenho vários programas a apoiar situações em que habitualmente a classe média, média-alta, pode concorrer, pode fazer os investimentos e depois concorrer ao Fundo Ambiental para investimentos que eram para painéis fotovoltaicos, para bombas de calor. Mas não está ao alcance daqueles que mais precisam. O Vale Eficiência não funcionou. Estamos agora precisamente a discutir novamente, 20 meses depois, uma estratégia nacional de combate à pobreza energética — mas em que as soluções têm de ser estruturantes. Não é com mil e poucos euros que eu dê a uma família, e inclusivamente de forma limitada, porque se for uma casa arrendada não posso intervir, se calhar, nessa casa.

E o arrendamento representa uma grande parte da habitação, pelo menos nas grandes cidades.
Exatamente. Nós temos em pobreza energética 1,8 a 3 milhões de pessoas em Portugal. Estamos a falar de quase 30% da população. E em pobreza extrema cerca de 700 mil pessoas. Ora, eu preciso aqui é de soluções estruturais do ponto de vista do isolamento, do ponto de vista daquilo que é realmente mexer na habitação de forma profunda.

A partir das construtoras, também?
Exatamente. É isso que eu sinto: em muitos casos da redução das emissões, e também na própria adaptação climática, nós estamos sempre em soluções que não são as de longo prazo, mas são aquelas que remedeiam, durante algum tempo, alguns casos.

Também se adequam aos ciclos políticos, de poucos anos.
E são sempre respostas… Por exemplo, a subida do nível do mar, que é um problema relativamente complexo, porque também tem a ver com eu não ter areia, sedimentos suficientes, que chegam pelos rios até às praias. Portanto, tenho as praias, às vezes, com ondulações muito fortes em determinadas alturas do ano, e ficam sem areia. A solução é sempre ir buscar areia a zonas próximas para colocar. E são milhões de euros que se gastam nesta tarefa. Mais uma vez, escondo a cabeça debaixo da areia para, mais tarde, voltar a ter o problema em cima da mesa e voltar a ter de ir buscar mais areia.

O ambientalista português já participou em várias edições das cimeiras das Nações Unidas sobre as alterações climáticas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas também há aí um ponto que gostava de focar e que tem a ver com a atenção que a sociedade, que o público em geral, tem dado a estes assuntos, que tem sido crescente. De facto, nos últimos anos, o discurso de defesa do clima tem sido marcado por um certo catastrofismo apocalíptico, muito marcado por fenómenos como Greta Thunberg, as greves nas escolas, os movimentos radicais tipo Extinction Rebellion. Nos últimos meses, a ocupação das escolas e o atirar sopa para quadros. Este tipo de abordagem parece-lhe eficaz?
Diria que sim e que não. Muitas dessas ações chegaram a todo o mundo e, portanto, do ponto de vista de as pessoas as terem identificado, sem dúvida. Agora, a própria Extinction Rebellion, no Reino Unido e não sei se até a uma escala mais global, veio dizer este ano que vai parar temporariamente com este tipo de ações, para refletir se efetivamente elas são ou não eficazes do ponto de vista de proporcionarem a mudança. Eu compreendo muitas dessas ações no sentido em que se eu já vou com um aumento de temperatura de 1,1ºC, 1,2ºC, se vejo tudo continuar na mesma em termos de políticas e medidas, apenas com uma ou outra mudança, longe de se fazer aquilo que é absolutamente necessário e que sairá muito mais barato à sociedade, aos estados… Ou seja, se do ponto de vista político não há realmente coragem para agirmos, eu compreendo que haja, inclusivamente numa geração mais jovem, esse alerta, porque são eles que vão ter essas consequências. Mas o que estamos a verificar é que isso obviamente cria divisões grandes. E nós queremos ter todas as pessoas envolvidas nesta luta climática. Em vez de trabalhar para um futuro comum e melhor, se começo a cultivar divergências entre estas diferentes abordagens, estou a perder tempo. Portanto, acho que deve haver aqui um repensar muito sério deste ecossistema dentro do ambientalismo, em que há uns com ações mais visíveis e extremas, e outros às vezes também com uma conduta pouco incisiva. A Zero está ali um bocadinho no meio. Nós temos muito trabalho que não é conhecido. Por exemplo, nós temos vindo a contactar todos os partidos sobre a Lei de Bases do Clima, que a 1 de fevereiro acaba por representar um ano de estar em vigor e em que muita coisa está ainda em falta.

Puré de batata contra quadros e invasões de campo de futebol. Quem são os ativistas climáticos que só param com “sentenças de morte”

Por regulamentar.
Por regulamentar, e esse trabalho não se vê. Mas por outro lado, também temos participado…

Também se mascaram de Zorro.
Exatamente, temos participado em algumas manifestações, temos feito algumas ações. Não é difícil encontrar esse equilíbrio, mas é preciso encontrá-lo.

Concretamente sobre aquela questão de atirar sopa para cima dos quadros, que se tornou bastante célebre nos últimos meses: deixa-nos todos a falar de ambientalismo ou deixa-nos todos furiosos com aqueles jovens, porque estão a estragar os quadros?
Acho que essa é realmente a questão que eu estava a procurar mencionar. Isso acaba por ser uma distração e uma divisão, apesar de ter ganhos de visibilidade e nem sempre, pelo curto espaço de tempo que a própria comunicação dá, se percebe o racional que está por trás. É, se calhar, muito mais fácil percebermos o bloqueio das portas de uma petrolífera, como aconteceu em Portugal, porque estou a tocar na empresa…

O alvo é o certo.
O alvo é o certo. Enquanto ali é um alvo que nos obriga a uma construção mais complicada e que interfere com alguns sentimentos muito próprios de cada um em relação ao próprio posicionamento na arte. Uns, numa primeira fase, não perceberam e depois aceitaram, mas a maioria — não tenho dúvidas em relação a isso — acabou por ter um olhar muito negativo sobre esse tipo de ações. Portanto, é preciso que nós consigamos juntar e não dividir — e não perder tempo, acima de tudo, quando a emergência climática está aí. Temos de ter todos no mesmo barco e o crucial é, realmente, ver a forma mais eficaz de garantir que os governos implementam as políticas certas.

"Acho que deve haver aqui um repensar muito sério deste ecossistema dentro do ambientalismo, em que há uns com ações mais visíveis e extremas, e outros às vezes também com uma conduta pouco incisiva."

Estas manifestações recentes de jovens em escolas portuguesas, que até visavam muito diretamente o ministro da Economia, parecem-lhe uma forma eficaz de garantir a atenção do Governo? O ministro recebeu-os.
Diria que sim. Acho que o alvo do ministro não parece que tenha sido o melhor. A ocupação das escolas sem dúvida, e esse alerta. Acho que se for, então, aproveitado pela escola ou pelos alunos como um momento de reflexão sobre o que está em causa, e todos ganharmos aqui uma discussão, que é necessária, de estarmos a par do que, com rigor, se está a passar em termos das alterações climáticas à escala global, e no nosso próprio país, essas ações nas escolas têm todo o sentido. Em relação ao objetivo, à reivindicação da saída do ministro, sinceramente acho que foi um pouco ao lado, apesar de, obviamente, dentro daquilo que são os segmentos — nós também estivemos na manifestação, e muitas outras organizações estiveram na manifestação que se fez durante a COP27 — termos aí visões diferentes. Mas o que nos une é esta necessidade de alertar para uma catástrofe que não é catástrofe. Aliás, esse é o grande problema. Explicando um bocadinho melhor: o mundo não vai acabar em 2030. O grande problema das alterações climáticas é que nós vamos sentindo a mudança devagarinho.

Costa Silva depois da reunião com ativistas climáticos: “Estava à espera que houvesse propostas”

Estamos a cozer em água a aquecer…
Estamos a cozer numa água que vai aumentando a temperatura muito devagar. É crucial nós termos um discurso de emergência, mas que não deve ir além daquilo que é o que nós sabemos que a ciência nos diz sobre o que vai acontecer.

Tem esperança de que esta nova geração possa dar um passo decisivo? Há alguma tensão entre, por um lado, haver uma atenção maior ao assunto nesta nova geração e, por outro, muitas vezes as preocupações parecerem pouco centradas na realidade. Na altura da ocupação das escolas, um dos ativistas organizadores do movimento deu uma entrevista e disse que a sua principal reivindicação era tirar os combustíveis fósseis do PRR — e quando lhe perguntaram em quê, ele disse que não o tinha lido. Como vê estas situações?
Acho que essa é uma forma de aprendizagem deles próprios. É crucial a credibilidade de todo e qualquer movimento — quer movimentos mais de jovens, quer de outros —, e ela constrói-se à custa de muito trabalho, de muita literacia crucial para que nós tomemos posições que sejam credíveis. Que as saibamos justificar. A Zero faz esse trabalho todos os dias, e mesmo assim temos falhas, porque não é fácil seguir tudo aquilo que está a ser decidido na Europa no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e que tem a ver com energia e clima, com aquilo que se são as políticas nacionais e com todo um conjunto de detalhes que, também, um ou outro nos passa. Mas há pelo menos grande parte desse esforço. Onde acho que está o erro é que nós estamos a dar muita atenção, sem desprimor, à juventude — e temos que dar muito mais atenção e pôr muito mais pressão, não apenas da parte da juventude a fazê-lo, mas também de todos nós, junto daqueles que estão na minha geração, nos cinquentas, nos quarentas, nos sessentas, porque são esses que estão nos núcleos de decisão. É absolutamente crucial. Aquela ideia que nós tínhamos de que os jovens serão diferentes em relação à abordagem do clima quando chegarem, quando tiverem poder.

Mas ainda não chegaram.
Não chegaram e não há tempo para chegarem! A pressão dos jovens é, e bem, sobre os políticos — mas, se nós quisermos mudar, os políticos, com a pressão de toda a sociedade, têm de mudar já.

Francisco Ferreira diz que as empresas não podem estar em rankings de sustentabilidade enquanto continuarem a oferecer carros e lugares de estacionamento aos funcionários

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Queria terminar com uma questão que tem a ver com a tensão entre a grande escala e a pequena escala. Às vezes há uma angústia grande nas pessoas que querem contribuir para um planeta melhor, mas que sentem que mesmo que abdiquem de uns talheres de plástico o planeta continua na mesma porque se continua a usar combustíveis fósseis. Esta angústia também afeta um ambientalista?
Claro que afeta. E nalguns casos nós vemos — vou usar a palavra em inglês — um enorme greenwashing em muitas das coisas que nós temos de ultrapassar rapidamente. E é difícil fazermos, muitas vezes, a escolha certa. Aqui, gostava de olhar para as empresas. Como é que uma empresa pode estar nos rankings da sustentabilidade se não oferece o passe? Se oferece, sim, o lugar de estacionamento para o carro, se oferece o carro, se oferece as portagens e o combustível e não tem uma política séria de mobilidade? Uma das áreas que acho que está pior em termos de decisão no Governo é a área dos resíduos. Tenho agora uns novos copos que dizem lá que têm um bocadinho de plástico e cujo destino certo é o lixo indiferenciado, quando no fundo eu deveria ter era, em muitos eventos onde uso esses copos, copos de vidro reutilizáveis, laváveis.

Ou um copo de plástico que pudesse ser reciclado.
Sim, que às vezes é mais fácil. Apesar de ser plástico. Mas, idealmente, é investir em copos, mesmo de plástico, que podem ser lavados e usados outra vez.

Por exemplo, que pequenas coisas faz? Usa o carro no dia a dia?
Eu tento mesmo não usar o carro. Vim para aqui de comboio e de bicicleta. Mas tive de levar o carro até à estação de comboios e esse é o meu dia-a-dia quando vou para a universidade, porque não há ligações — só há três por dia entre Palmela, que é o sítio onde eu vivo, e Penalva. Faço esse esforço. Acho que as principais áreas em que podemos e devemos intervir são a área da mobilidade, a área da alimentação — não precisamos de ser vegetarianos, mas, por razões de saúde e por razões ambientais, nomeadamente climáticas, comemos demasiada carne e demasiado peixe — e, depois, também uma outra área crucial, que tem a ver com o uso da água, que também significa um uso de energia. Também aí, conseguir poupanças é importante. Mas acho que há uma responsabilidade de quem nos proporciona as soluções. Por exemplo, nós não termos recolha porta-a-porta, que é a mais eficaz, e continuarmos a insistir e a insistir em mais e mais ecopontos, em que as pessoas depois põem o papel todo no lixo indiferenciado, ou não pagam por aquilo que produzem, não é o caminho. Entre as várias falhas que temos tido dos últimos governos, volto a dizer: a área dos resíduos é uma das mais prementes. Na área do clima, temos muitas questões em aberto, nomeadamente o hidrogénio, as energias renováveis, as incompatibilidades com o ambiente, ou melhor, a necessidade de compatibilizar essas políticas com as políticas de conservação da natureza e outras, mas a área dos resíduos é neste momento aquilo que mais nos diz respeito e que é também crucial à escala das políticas e das empresas.

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