Uns chamam sorte, outros chamam estrelinha. Uns elogiam o rasgo, outros falam em destino. São coisas que acontecem e também fazem com que o futebol seja um jogo tão imprevisível. Quando em 2000, com o nulo a não conseguir ser desfeito frente à Roménia na segunda ronda da fase de grupos do Euro, Humberto Coelho abdicou de Rui Costa para lançar Costinha aos 87′, nem todos gostaram da substituição. Aliás, quase todos não gostaram da substituição. No entanto, aquilo que na teoria seria uma alteração para segurar um ponto acabou por ser uma subtração que multiplicou por três os dividendos no final: o médio do Mónaco foi à área contrária, quis desafiar a sorte e marcou o golo que decidiu a partida aos 90+4′. Parecia estar escrito.

Afinal, a água (da chuva) não apaga brasas, nem quem as espalha (a crónica do Portugal-Rep. Checa)

Foi isso que permitiu que, na jornada seguinte, já com o primeiro lugar garantido, a Seleção rodasse toda a equipa e Sérgio Conceição marcasse um hat-trick frente à Alemanha. 24 anos depois, foi um dos seus filhos, Francisco Conceição, que resolveu o encontro de Portugal na estreia no Europeu – naquele que foi o segundo golo mais tardio da Seleção em fases finais, só superado pelo tal de Costinha em Arnhem. No entanto, entre esse momento em que dois suplentes acabados de sair do banco decidiram a partida (foi Pedro Neto que fez o cruzamento para o 2-1 do ala do FC Porto) e o início da partida, houve todo um jogo de 90 minutos com altos e baixos entre o que era suposto e o que na verdade aconteceu. E é em cima disso que Martínez, que preferiu destacar o espírito de resiliência e a personalidade da equipa, vai trabalhar para o próximo encontro frente à Turquia que pode não só valer qualificação como um passe de gigante para o primeiro lugar.

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“Este jogo não é para avaliar do ponto de vista tático, técnico e físico. Mostrámos resiliência”, defende Martínez

O que foi Portugal

  • O último teste frente à Rep. Irlanda acabou por prevalecer, com a Seleção a desenhar uma linha de três defesas na estreia no Europeu ao contrário dos quatro defesas com a Finlândia e a Croácia. Ainda assim, havia uma nuance que enganou a própria realização do jogo: ao contrário do que apareceu no figurino tático das equipas antes do início do encontro, não foi Diogo Dalot que recuou para central mas sim Nuno Mendes pela esquerda. “Já jogou nessa posição contra a Suécia e é importante para hoje. Precisamos de criar espaços, de controlar o jogo e evitar que os alas tenham um papel importante no jogo. As equipas neste Europeu são objetivas, preparadas e há muito jogo de ataque”, frisara Martínez.

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  • Com apenas dois médios que se transformavam em três com os movimentos de Cancelo para dentro numa réplica com nuances daquilo que o lateral fazia no Manchester City de Pep Guardiola, Palhinha acabou por ser sacrificado em detrimento de Vitinha e Bruno Fernandes. Assumidamente, a ideia de Portugal no corredor central do setor intermédio passava mais por aquilo que podia fazer em posse do que com aquilo que tinha de fazer sem bola, o que fazia com que a linha ofensiva fosse a primeira a pressionar mais alto para obrigar a um jogo direto que dava vantagem aos centrais nacionais.

  • Apesar de algumas falhas nos testes que Portugal foi fazendo, o tridente ofensivo habitual voltou a ser aposta de Roberto Martínez, com Bernardo Silva a ter de forma mais frequente movimentos para dentro para deixar o flanco para as subidas de Diogo Dalot e Rafael Leão mais por fora a dar largura ao ataque de Portugal a olhar também para as transições, deixando Ronaldo em posição mais central na área mas com liberdade para sair do seu raio de ação para trazer consigo também defesas na marcação.

O que foi e o que devia ter sido Portugal

  • Houve uma aposta ganha no meio-campo em posse que não prejudicou a capacidade de recuperação. Por um lado, Vitinha assumiu o controlo, esteve sempre a mostrar-se ao jogo, testou por três vezes a meia distância (deu um salto enorme com Luis Enrique neste particular, não no número de tentativas mas nos terrenos que pisa para arriscar), fez oito recuperações com mais três ações defensivas no meio-campo contrário e acabou como MVP. Por outro, e depois de um arranque onde jogou 15/20 metros atrás do que era suposto, Bruno Fernandes “cresceu”, teve logo um passe para golo não concretizado por Ronaldo, fez várias conduções progressivas e foi “empurrando” a equipa para a frente.

  • Nuno Mendes foi uma opção ganha, de tal forma que, acompanhado pelas ações de Rafael Leão, deixou Portugal como uma equipa quase coxa que esteve 45 minutos apenas inclinado a atacar pela esquerda. Mais: Nuno Mendes não só cumpriu como central pela esquerda como esteve em evidência quando se convertia em lateral e avançava no flanco. Em contrapartida, João Cancelo, naquilo que era pretendido neste figurino, não foi a unidade extra que criou superioridades nem pelo meio nem pela esquerda, tendo um jogo importante sem bola mas com menor protagonismo nas ações que a equipa precisava, acabando por regressar ao lado direito com a saída de Dalot e a entrada de Gonçalo Inácio.

  • O posicionamento de Bernardo Silva, neste sistema e com estes protagonistas, não acrescentou muito a Portugal. Aliás, pelo contrário – nem o jogador do Manchester City teve a influência que podia e devia, nem os movimentos para dentro criaram particulares dificuldades à densa muralha defensiva checa, nem as ações de Rafael Leão no flanco contrário conseguiram os desequilíbrios necessários com a entrada do último passe para finalização na área. A falta de velocidade na circulação de bola e na procura dos espaços em alguns momentos “emperrou” a dinâmica coletiva mas o ataque ficou refém daquilo que não se conseguiu fazer em termos individuais apesar das oportunidades criadas.

O que devia ter sido e será Portugal

  • Mais do que ter ou não resultado o 3x4x3 contra a Rep. Checa, a mudança de sistema tático estará em cima da mesa tendo em conta a forma de jogar da Turquia, que abdica de ter dois avançados mais na frente e joga com um ’10’ (que foi Kökçü, do Benfica) atrás da referência única ofensiva além de usar jogadores mais de corredor central como falsos alas que oferecem a oportunidade aos laterais para darem a largura subindo nos respetivos flancos. Mais: a própria forma como Vincenzo Montella monta a equipa oferece mais espaços para as transições do que a formação checa, que apesar do golo marcado e do remate de Soucek ao lado andou mais preocupada em não sofrer do que propriamente em marcar.

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  • Seja pelos movimentos de Kökçü, pelo raio de ação de Çalhanoglu ou pelo jogo entrelinhas de Arda Güler, é provável que a posição ‘6’ tenha como aposta alguém com maior capacidade de recuperação e dimensão física como Palhinha ou Rúben Neves do que alguém que se destaca mais pela capacidade de construção – o que não quer dizer que Vitinha não joguem, apenas que o faça mais à frente como ‘8’. É nessa perspetiva que o tridente ofensivo poderá sofrer mexidas, com jogadores mais explosivos nas transições e com maior capacidade 1×1 para desequilibrar a forma de defender da Turquia.

  • Os esquemas táticos de Portugal terão de reassumir uma maior preponderância. A Seleção terminou o encontro frente à Rep. Checa com 13 cantos a favor mas sem conseguir desequilibrar nesse particular, algo que tinha sido uma nota dominante nos últimos três particulares realizados antes da viagem para a Alemanha. E não se pode dizer que tenha sido apenas o poderio no jogo aéreo dos checos a dissipar essa característica, bastando recordar o golo de Rúben Dias com a Finlândia ou o de João Félix frente à Rep. Irlanda, conjuntos que também primam pela capacidade física e altura da maior parte dos jogadores.