Não sei se a Europa estava preocupada. Mas estivesse ou não, Rui Rio resolveu sossegá-la. Foi assim que em Zagreb, na reunião do Partido Popular Europeu, anunciou que os maiores partidos parlamentares portugueses, PSD e PS, estavam de excelente saúde, e que portanto, ao contrário de outras democracias na Europa, o regime em Portugal passa muito bem. Há aqui várias coisas curiosas. A primeira é a identificação do bem-estar do regime com o dos dois maiores partidos: sim, os nossos partidos, como Luís XIV, acham mesmo que o regime são eles. A outra coisa diz respeito ao diagnóstico de Rui Rio. Não contesto as suas qualificações. Mas talvez conviesse à Europa ouvir uma segunda opinião.

Para Rio, a excelente saúde do PSD e do PS medem-se pela percentagem de cadeiras em S. Bento ocupadas pelos seus deputados: 81%. Em Portugal, segundo Rio, o sistema partidário não se fragmentou, e os novos partidos têm uma representação residual. É de facto assim. Mas em que parte esse número de deputados se deve aos votos dos eleitores, e em que parte se deve ao método de apuramento dos mandatos? Sabemos que um deputado do PSD ou do PS vale muito menos votos do que um deputado dos outros partidos. Com outro sistema eleitoral, talvez a percentagem de mandatos atribuída ao PSD e ao PS fosse outra, e mais difícil a tarefa de tranquilizar a Europa sobre a estabilidade da partidocracia portuguesa.

Se Rui Rio, em vez do número de deputados, tivesse recorrido ao número de votos, a inquietação na Europa talvez ainda fosse maior. Em 1991, PSD e PS tiveram 4,5 milhões de votos em conjunto, o que correspondia a 54% dos eleitores inscritos. Em 2019, os mesmos partidos reuniram 3,3 milhões de votos, equivalente a 30% dos inscritos. Entre 1991 e 2019, os dois partidos perderam 1,2 milhões de votos e baixaram a sua representatividade em 24 pontos percentuais. Quando Rio faz as contas apenas aos deputados, está a confessar que o actual domínio representativo do PS e do PSD depende sobretudo da abstenção eleitoral, isto é, de os cidadãos decepcionados com esses partidos deixarem de votar, em vez de escolherem outros. A abstenção – 51,4% em Outubro de 2019 – é hoje a chave do regime português.

Rui Rio podia ter também falado à Europa das eleições internas no seu próprio partido. Para a distrital de Lisboa, com duas listas concorrentes, terão votado 1760 pessoas. Ou seja: entre os 2,9 milhões de habitantes do distrito, o PSD tem 1760 pessoas disponíveis para participar num dos actos mais decisivos da vida do partido, que é a escolha dos seus dirigentes. Há em Lisboa associações de estudantes com tantos ou mais eleitores: por exemplo, para os órgãos sociais da Associação Académica da Faculdade de Direito, em 2015, votaram 1757 pessoas, quase tantas como para a distrital de Lisboa do segundo maior partido parlamentar. O número de militantes em situação regular no PSD é outro dado interessante: menos de 17 000. O PSD é um pequeno partido, que só parece grande devido ao lugares que ocupa no Estado. É aliás do Estado que vivem estas modestas organizações: legalmente, através dos subsídios pagos ao partido ou aos seus eleitos, e por vezes também ilegalmente, como em Oliveira de Azeméis, onde o fundo de maneio da câmara municipal terá sido alegadamente usado para pagar contas da concelhia do PSD.

Eis os partidos: máquinas com uns poucos milhares de activistas, que vivem agarradas ao Estado central e autárquico, e que dependem do sistema eleitoral e da abstenção para manterem um domínio parlamentar cada vez mais fictício. É nisto que assenta o regime português. E foi isto que Rui Rio resolveu exibir ao mundo como exemplo de saúde política.

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