1. Estávamos a 20 de outubro, à beira do fim-de-semana. António Costa e Azeredo Lopes não cabiam em si de contentes com o que tinha acontecido dois dias antes na Chamusca. O primeiro-ministro — o político mais habilidoso dos últimos anos, certo? — era mais comedido e limitava-se a felicitar a Polícia Judiciária Militar (PJM) e a GNR de Loulé pelo resgate do material militar roubado dos paióis de Tancos a 28 de junho. O ministro da Defesa esse, fiel à sua personalidade exuberante, não fazia a coisa por menos: “O Governo regista como extremamente positivo o facto de o conjunto de material de guerra ter sido recuperado e o facto de ser a primeira vez em democracia, que eu me recorde, de o material roubado ter sido recuperado”. Foi um momento histórico, portanto. Digno de ser recordado pelas gerações futuras face à extraordinária capacidade de investigação da PJM.

Passado quase um ano sabemos que os acontecimentos na Chamusca (um nome ironicamente apropriado) foram, de facto, históricos mas não pelas razões que Azeredo Lopes gostaria. A PJM, uma polícia que é tutelada pelo ministro da Defesa, inventou e orquestrou o tal momento histórico. Citando Azeredo: “pela primeira em democracia”, uma polícia negociou com um dos alegados assaltantes a recuperação do material roubado, colocou as armas num terreno baldio da Chamusca, inventou uma chamada anónima para o seu próprio piquete, ‘descobriu’ as ditas armas e emitiu um comunicado a anunciar à Opinião Pública a espetacular descoberta. Pelo meio, e de acordo com declarações prestadas perante um juiz de instrução criminal, um dos operacionais desta ‘inventona’ diz que Azeredo Lopes soube de tudo desde o início e escutas da investigação da Polícia Judiciária indicarão que o chefe de Estado Maior do Exército também estava a par.

Este conjunto de factos tão extraordinários quanto trágicos, levam a uma pergunta inevitável: ninguém é responsabilizado pela chacota geral de que está a ser alvo o Exército, em particular, e as Forças Armadas, em geral? Aparentemente, não. A exceção é o diretor da PJM, coronel Luís Vieira, colocado em prisão preventiva por ter sido alegadamente o cérebro da ‘inventona’ mas que só foi exonerado após a pressão de Luís Marques Mendes na SIC.

2. Certo é que o ministro da Defesa já deveria ter sido demitido pelo primeiro-ministro pela forma amadora e hilariante com que Azeredo Lopes geriu todo este processo. Trata-se de um ministro que perante um assalto que coloca em causa a segurança nacional (ler descrição do material roubado aqui) começa por desvalorizar o caso ao assegurar “que não é a maior quebra de segurança do século”. Passa imediatamente a seguir para o domínio do surrealismo ao colocar a hipótese de o furto nem se ter verificado. Abandona o campo surrealista à primeira oportunidade, classificando o ‘achamento’ da PJM em Chamusca como um acontecimento histórico. E agora tem pendente sobre a sua cabeça a suspeita de que esteve sempre par das manobras da PJM, correndo o risco de ser constituído arguido como co-autor de, entre outros crimes graves, associação criminosa e denegação de justiça e abuso de poder.

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Este seria um autêntico filme de terror para qualquer ministro de um país democrático — menos para um ministro de António Costa e do Governo da Geringonça.

Nada disto surpreende se conhecermos um pouco o trajeto de Azeredo Lopes. Um homem da Universidade Católica que já foi de direita pura e dura pelos lados do CDS na fase pré-Cavaco, passou a frequentar os salões do PSD para ser indicado por Luís Marques Mendes para presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — sempre como independente. Na ERC fez parelha com Estrela Serrano para fechar os olhos ao domínio ilícito, ilegítimo e imoral da comunicação social por parte de José Sócrates, preferindo, sim, atacar os poucos que tentavam escrutinar o poder quase absoluto do agora principal arguido da Operação Marquês. Antes de ser escolhido por António Costa, era chefe de gabinete de Rui Moreira na Câmara do Porto. Ao fim e ao cabo, José Alberto Azeredo Lopes vai a todas.

3. O facto de Azeredo Lopes ainda se manter em funções numa altura em que está sob suspeita criminal — e, pior, o setor que tutela está claramente descredibilizado pela suas próprias ações e omissões — diz bem da prática de relativização e desresponsabilização que o primeiro-ministro António Costa impôs na vida política portuguesa, com a cumplicidade institucional de Catarina Martins e de Jerónimo de Sousa.

Neste caso do assalto a Tancos, António Costa segue a mesma estratégia que atingiu o seu auge na gestão da crise dos fogos florestais de 2017 que vitimizaram mais de 100 cidadãos. Começou por também relativizar a importância do caso, chegando mesmo a dizer, no final de uma cimeira europeia, que nenhum homólogo europeu alguma vez se manifestou “intranquilo com esse assunto.” Apoiou depois a tese de Azeredo Lopes que, “por muito estranho que possa parecer, o ministro da Defesa Nacional não sabe se há falta vigilância em Tancos. Aloca ao Exército a tarefa de manter a segurança no local”, lê-se numa entrevista bastante elucidativa ao Diário de Notícias/TSF.

Essa é verdadeiramente a tese geral da governação de António Costa: um ministro nunca é responsável por nada; no máximo, nem sequer existe. Como se viu com Azeredo Lopes nas cerimónias do 5 de Outubro.

O mais extraordinário, contudo, é António Costa culpar, pasme-se!, o Governo de Passos Coelho. Imitando de forma preocupante José Sócrates, que ao longo dos seis anos da sua governação teve a distinta lata de responsabilizar o Governo de Durão Barroso de todos os males que o seu próprio Executivo criava ou não conseguia resolver, Costa chegou a culpar recentemente em entrevista à TVI o antecessor de Azeredo Lopes por não ter adquirido “equipamento de segurança” para Tancos porque “porventura já estaria a funcionar e o roubo não teria existido.”

Um Passos Coelho vestido de Diabo da Austeridade dá sempre jeito a António Costa para esconder as asneiras dos ministros que escolheu para o seu Governo. Chama-se a isso ser habilidoso — uma aparente virtude política. O problema é que os habilidosos estão mais preocupados em salvar a sua pele do que a pensar no país.

É por isso que esta relativização e desresponsabilização política merece uma forte censura. Não por Azeredo Lopes — cuja saída é inevitável. Mas essencialmente pelo mal que o Governo está a fazer à já de si frágil relação de confiança entre eleitores e eleitos — e, por arrasto, à credibilidade da própria democracia representativa.